Querem convencer-nos de que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é, por natureza, ineficiente e incapaz de responder às necessidades dos portugueses. A narrativa é sedutora: se o SNS não dá conta do recado, resta empurrar mais pessoas para soluções privadas e aumentar a despesa direta das famílias. Mas os factos contrariam este fatalismo. Com uma despesa pública em saúde historicamente contida (das mais baixas dos países desenvolvidos), Portugal alcançou uma esperança de vida entre as mais elevadas dos países desenvolvidos. Isto não acontece por acaso: é o resultado de décadas de investimento em cobertura universal, vacinação, cuidados de saúde primários e hospitalares que salvaram vidas e reduziram desigualdades.

A ideia de que mais despesa privada melhora o sistema ignora um princípio básico: saúde financiada à custa do bolso agrava a iniquidade. Pagamentos diretos criam barreiras de acesso, atrasam diagnósticos e penalizam quem tem menos rendimento ou vive longe dos grandes centros. A consequência é um sistema a duas velocidades, em que a doença se trata segundo a carteira, não segundo a necessidade. Não é só injusto — é ineficiente. Atrasos na procura de cuidados multiplicam custos futuros, aumentam complicações e pressionam ainda mais os serviços.

Sim, o SNS precisa de se reestruturar. Precisamos de deslocar o centro de gravidade do hospital para a comunidade, do analógico para o digital e da doença para a prevenção. Isto significa equipas comunitárias fortes, com capacidade para gerir proximamente doenças crónicas, saúde mental e reabilitação; significa triagem clínica e navegação do doente integradas, com rastreios e vacinação a funcionarem como portas de entrada; significa telemonitorização, teleconsulta e interoperabilidade real dos sistemas de informação, para que cada contacto crie valor e poupe tempo ao cidadão e aos profissionais. E significa, também, contratualização por resultados, literacia em saúde e uma política de dados que permita avaliar o que funciona e abandonar o que não traz benefício.

Nada disto se faz com a reduzida despesa pública e com a transferência tácita de responsabilidades para as famílias. Requer uma agenda reformista clara e investimento público sustentado: em pessoas (carreiras, formação, condições de trabalho), em infraestruturas (centros de diagnóstico e reabilitação de proximidade, cuidados continuados, paliativos), e em tecnologia (plataformas digitais, cibersegurança, registos clínicos únicos e utilizáveis). Investir no SNS não é “mais do mesmo”; é financiar a transição para cuidados integrados, previsíveis e centrados na pessoa, onde a prevenção evita doença e a comunidade resolve o que hoje entope urgências.

O Estado não se pode demitir. Entregar a saúde ao aumento da despesa privada não resolve problemas estruturais, apenas os desloca e aprofunda desigualdades. O caminho responsável é outro: reformar com ambição e investir com inteligência paraque o SNS continue a ser o maior gerador de valor social do país — um sistema que protege todos, sobretudo quando mais precisam.