O padre madeirense Martins Júnior, que esteve suspenso 'a divinis' durante 42 anos, morreu na noite de quinta-feira aos 86 anos, conforme noticiou o DIÁRIO ontem à noite.

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A morte do pároco da Ribeira Seca provocou uma onda de homenagens.

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Entre as homenagens, destaca-se o tributo emotivo da escritora e historiadora Raquel Varela, autora do livro 'O Canto do Melro' sobre a vida do religioso.

"Morreu o Padre Martins. Perdi um do grandes amigos de sempre. Estou abalada, triste e até incrédula, ainda", escreveu Raquel Varela numa reflexão profunda sobre a vida e obra do padre. A historiadora considera que "Portugal perde hoje - não tenho dúvidas - a figura central que condensa a revolução dos cravos".

Para Raquel Varela, o padre Martins Júnior foi muito além do que habitualmente se destaca na sua biografia. "Muitos falarão do padre que esteve junto dos pobres contra a hierarquia da Igreja, não é pouco, mas não é único. Recordarão o seu compromisso com a cultura, ensino da literatura, da poesia e da música. Referirão a sua dimensão política, há outros casos, maiores. Ele foi tudo isso mas foi mais", afirma.

O que tornava especial o padre da Ribeira Seca, segundo a historiadora, era a forma como "usou tudo o que aprendeu na Igreja para construir não a dominação mas a emancipação. Pegou nessa porção mágica, o saber organizativo da Igreja - e fez dela não um veneno obscurantista, como era, mas o elixir da vida".

Raquel Varela relembra o percurso atribulado do padre, desde o discurso na Sé em que disse que "Deus não está com quem se ajoelha em fofas almofadas vermelhas", passando pelo exílio no Porto Santo, até à guerra colonial onde se recusou a "fazer de Nossa Senhora a Padeira de Aljubarrota".

O verdadeiro laboratório democrático aconteceu na Ribeira Seca, "um ermo sem água, luz, escola, estradas", onde "aboliu a confissão, que era usada para chantagem e denúncias à PIDE" e onde "criaram uma democracia participativa em que todos em Machico, reuniam, discutiam e decidiam tudo".

"Nunca foi paternalista com o povo, sempre ensinou que o caminho era reunir, pensar, agir", sublinha a historiadora, recordando como enfrentou até tentativas de assassínio por parte de milícias de extrema-direita, criando em resposta "um comité de auto defesa, de operários e estivadores e lavradores que, ao toque do sino, largavam o trabalho para defender-se da FLAMA, organização terrorista".

A singularidade do padre Martins Júnior, na perspectiva de Raquel Varela, residia no facto de ter "casado a fé com a utopia, o cristianismo com o marxismo - a teologia da libertação -, mas aqui, ao contrário do Brasil, foi mais longe porque esse encontro se deu na maior revolução da Europa do pós-guerra".

"Ele foi um Jesus histórico em acção concreta no século XX, não como um novo Messias, por favor, como ele odiava idolatrias", esclarece, frisando que "não era Messias, não era salvador. Ele foi, até o fim, um educador e um organizador".

A historiadora vê na figura do padre Martins Júnior um "manual anti-fascista para os tempos que correm", criticando o facto de hoje só termos "políticos figuras públicas, especialistas em comunicação, ou gestores do país com delírios omnipotentes", enquanto o padre "esteve cá a dizer, a vida toda - 'é mais fácil rezar do que pensar', votar de 4 em 4 anos não chega, é preciso organizar, agir".

O impacto duradouro do seu trabalho é visível ainda hoje: "Ali, ainda hoje, as bordadeiras escrevem ideias claras para programas políticos, têm voz própria, os operários tocam música, empregadas de limpeza de hotel escrevem poesia, camponeses fazem teatro. Ali houve uma democracia real."

Raquel Varela termina a sua homenagem com uma nota pessoal, recordando "os nossos passeios nas levadas, das ponchas na venda da Natália, das nossas conversas onde se podia falar de tudo", e partilhando uma memória do casamento que o padre celebrou para si e o seu companheiro: quando lhe pediram para os casar, o padre respondeu - "não precisam, já estão?!", aceitando depois fazer a cerimónia "com o jardim por chão e o céu azul por tecto".

A sessão de apresentação do livro 'O Canto do Melro' que estava prevista para este domingo em Grândola foi cancelada devido ao falecimento, mas Raquel Varela mantém o compromisso de estar na feira do livro no dia 21 de Junho "para falar sobre ele e homenageá-lo".

Nascido em Machico no dia 16 de Novembro de 1938, José Martins Júnior foi ordenado padre a 15 de Agosto de 1962 e celebrou a sua última missa a 5 de Fevereiro de 2023, tendo afirmado que durante o seu percurso serviu "o povo de Deus e não a Igreja Católica".