
Foram estas as palavras de uma criança de nove anos no Machico, tentando proteger a mãe das agressões brutais do pai.
Mais do que um grito de desespero, este caso revela o espelho implacável de uma falência coletiva que já não podemos ignorar. A sociedade portuguesa precisa de enfrentar esta realidade com a coragem e a verdade que a situação exige.
Se este casoganhou dimensão mediática foi apenas porque existem imagens - mas quantos outros dramas se perpetuam no silêncio dos nossos lares?
Quantas vítimas permanecem invisíveis, sem câmaras que documentem o seu sofrimento?
A verdadeira tragédia não está no que vemos, mas no que permanece oculto.
Sem as câmaras de videovigilância, este caso teria seguido o destino de tantos outros: o silêncio cúmplice da indiferença. Não haveria revolta pública, o agressor permaneceria impune e a sociedade continuaria confortavelmente instalada na ilusão de que "isso não acontece aqui" ou "não é connosco".
A tecnologia forçou-nos a olhar para aquilo que preferíamos ignorar. Revelou uma verdade incómoda: quantas agressões ficam por denunciar?
Quantos agressores circulam livremente?
Quantas vítimas sofrem no anonimato enquanto nós desviamos o olhar?
O problema não é a ausência de câmaras - é a nossa capacidade de fingir que não vemos.
A detenção do bombeiro de 35 anos só aconteceu quando a vítima reuniu uma coragem dupla: a de denunciar e a de provar. Foi ao hospital armada não apenas de ferimentos, mas de imagens que tornaram inegável o que tantas vezes é negado.
Sem flagrante delito, foram as câmaras que fizeram justiça. O choque das imagens conseguiu aquilo que milhares de palavras de vítimas não conseguem: credibilidade imediata, ação policial e indignação pública.
Mas esta vitória é também uma derrota coletiva. Por cada caso filmado existem dezenas de outros que acontecem na penumbra dos lares, longe das câmaras, longe das testemunhas.
Aí, apenas o silêncio é testemunha - e o silêncio nunca prestou declarações.
Pode alguém ser mau marido e bom pai?
Esta pergunta, aparentemente simples, esconde uma das mais perigosas ilusões da nossa sociedade. Uma mentira que permitimos perpetuar para não enfrentarmos uma verdade incómoda: não existem bons pais violentos.
Em Machico, o agressor alternava entre abraçar o filho e agredir brutalmente a mãe - um teatro macabro que muitos ainda teimam em aceitar como possível. Mas esta dualidade é uma ficção cruel.
Cada criança que assiste à violência contra a mãe está também ela a ser agredida – psicologicamente e emocionalmente, de forma irreversível. Está a aprender que o amor se exprime através do controlo, que a violência é normal e que o silêncio é sobrevivência.
Os vizinhos, anteriormente, tinham visto marcas. Ela dizia que tinha caído.
Quantas vezes ouvimos esta desculpa esfarrapada? Quantas vezes fingimos acreditar para não termos de agir?
A questão não é se os vizinhos tinham obrigação de intervir - é se temos a obrigação de não sermos cúmplices. Quando suspeitamos, quando vemos, quando ouvimos gritos através das paredes, o nosso silêncio torna-se também ele violência. O silêncio mata tanto quanto os punhos.
A violência no namoro atinge mais de 66% dos jovens portugueses - uma epidemia silenciosa legitimada por uma cultura que romantiza o controlo e confunde possessividade com paixão.
Este é o laboratório onde se formam os futuros agressores. Cada "ela é minha" não contestado, cada "foi só um empurrão" desculpado, cada "ele faz isso porque te ama" repetido está a esculpir o próximo caso que chegará aos tribunais.
Quando não intervimos preventivamente, estamos a permitir que padrões de violência se cristalizem, se transmitam de geração em geração como uma herança maldita que ninguém quer reclamar, mas todos ajudam a perpetuar.
A pergunta nunca foi se podemos fazer a diferença. A pergunta é se conseguimos viver com o peso do silêncio que escolhemos.
Os números que nos deviam envergonhar
Das 30.461 queixas de violência domética registadas em 2023, apenas 4.141 resultaram em condenações. Isto significa que apenas 13% dos casos denunciados chegam a condenação - 87 em cada 100 agressores não enfrentam consequências judiciais.
Em 2024, foram registadas 30.086 novas queixas - 82 denúncias por dia. Mas apenas 2.000 a 4.000 pessoas são condenadas anualmente.
Esta é a traição do sistema: pedimos às vítimas que quebrem o silêncio, que confiem na justiça - e depois falhamos-lhes em 87% dos casos.
Uma rede nacional de esperança
É urgente criar uma rede nacional de apoio jurídico preventivo às vítimas de violência doméstica, aproveitando as delegações da Ordem dos Advogados e as instalações das autarquias, privilegiando a proximidade às vítimas.
Esta proximidade, deve materializar-se numa resposta coordenada entre a Ordem dos Advogados, autarquias e o Estado.
O apoio jurídico deve estar garantido, no mínimo, a partir da apresentação da queixa, porque é nesse momento que as vítimas mais precisam de orientação e proteção legal.
Esta rede deve funcionar no âmbito do apoio judiciário, assegurando consultas jurídicas e acompanhamento processual desde o primeiro momento.
Não podemos aceitar que as vítimas naveguem sozinhas pela complexidade labiríntica do sistema judicial português enquanto enfrentam, simultaneamente, a violência dos seus agressores.
A vulnerabilidade extrema destas pessoas exige uma resposta jurídica imediata, competente e humanizada, que transforme o sistema judicial num instrumento de proteção e não numa barreira adicional ao seu sofrimento.
O caso de Machico não pode ser mais um que cai no esquecimento mediático. Este caso tem de ser o ponto de viragem para uma resposta coordenada, eficaz e verdadeiramente protetora.
A Advocacia tem uma função social incontornável e devemos estar onde as vítimas precisarem do nosso apoio. Esta rede nacional deve espelhar o nosso compromisso de proximidade territorial e institucional, garantindo que nenhuma vítima de violência doméstica fique isolada ou desamparada.
Porque quando uma criança grita "Pai, pára de bater, por favor", toda a sociedade deveria estar a ouvir - e a agir.