As alterações aprovadas no Parlamento ao "regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional" foram enviadas, esta quinta-feira, pelo Presidente da República ao Tribunal Constitucional.

São várias as dúvidas de Marcelo e os receios de que esteja em causa a “violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da segurança jurídica, da proporcionalidade na restrição de direitos e do acesso à justiça, igualdade e tutela jurisdicional efetiva, da união familiar, da vinculação da atividade administrativa à Constituição”.

Dúvidas constitucionais e processuais

A proposta é uma das três partes do primeiro pacote legislativo do Governo eleito em maio, a par da criação da Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras (UNEF) na PSP e da nova lei da nacionalidade. A UNEF já foi promulgada e a lei da nacionalidade, que levanta muitas dúvidas constitucionais, será discutida em setembro.

Sobre a lei de estrangeiros, as críticas dirigem-se à urgência imposta ao diploma pelo Governo, com atropelos processuais, e a alguns elementos que podem ser inconstitucionais.

Em causa estão os pareceres do Conselho Superior da Magistratura (CSM), e do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) - pedidos com um prazo de apenas dois dias e que não tiveram resposta -, mas também a não audição de constitucionalistas e associações de imigrantes, requeridas formalmente pelos partidos da oposição.

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Além disso, a nova lei reduz o direito de recurso aos tribunais para quem tiver decisões administrativas por parte da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), algo que pode fazer o diploma incorrer na "violação do acesso à justiça".

"Só é admissível o recurso à intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias" quando a atuação ou omissão da AIMA "comprometa, de modo comprovadamente grave, direto e irreversível, o exercício, em tempo útil, de direitos, liberdades e garantias pessoais, cuja tutela não possa ser eficazmente assegurada através dos meios cautelares disponíveis", lê-se.

Um coletivo de associações de imigrantes entregou na terça-feira ao Presidente da República um documento em que alerta que a forma como está redigida a proposta "permite que a realização de entrevistas e a apreciação dos pedidos de reagrupamento familiar fiquem condicionadas à capacidade administrativa da AIMA, em vez de garantir o cumprimento dos prazos legais e dos direitos fundamentais".

"Esta formulação cria risco de desigualdade no acesso aos procedimentos, de atrasos sistemáticos e de violação do princípio da tutela efetiva dos direitos (Art. 268.º da Constituição), especialmente para imigrantes em situação de maior vulnerabilidade" e não impõe prazos nem "obriga a AIMA a divulgar publicamente os métodos de calendarização, comprometendo a transparência administrativa, o controlo cívico e judicial".

Restrições ao reagrupamento familiar de imigrantes

O diploma permite reagrupamento familiar imediato de um imigrante com menores que já estejam no território nacional, que "tenham entrado legalmente em território nacional e que aqui se encontrem, e que com ele coabitem e dele dependam".

No resto dos casos, a lei permite o reagrupamento no caso de uma pessoa "com autorização de residência válida e que resida, há pelo menos dois anos, legalmente em território nacional". Na prática, esta medida adia em dois anos os pedidos de reagrupamento familiar dos mais de 300 mil imigrantes que obtiveram autorizações de residência, na sequência da figura jurídica das manifestações de interesse, um recurso que permitia a regularização de quem chegava a Portugal com visto de turismo.

Imigrantes assistem da varanda à visita do Embaixador do Bangladesh em Portugal, Ruhul Alam Siddique (ausente da foto), durante a ação de sensibilização nas ruas da Mouraria para consciencializar a comunidade residente daquele país para as medidas e comportamentos a adotar no período da pandemia
Imigrantes assistem da varanda à visita do Embaixador do Bangladesh em Portugal, Ruhul Alam Siddique (ausente da foto), durante a ação de sensibilização nas ruas da Mouraria para consciencializar a comunidade residente daquele país para as medidas e comportamentos a adotar no período da pandemia MANUEL DE ALMEIDA

Como esses pedidos só podem ser feitos dois anos depois do atestado de residência, os familiares serão sujeitos aos novos prazos de acesso à nacionalidade, a definir em setembro.

Para concluir o reagrupamento, é exigido aos requerentes "alojamento, comprovadamente próprio ou arrendado, considerado normal para uma família comparável na mesma região e que satisfaça as normas gerais de segurança e salubridade" e "meios de subsistência suficientes para sustentar todos os membros do agrupamento familiar, sem recurso a apoios sociais".

Além disso, os candidatos "devem cumprir medidas de integração, designadamente relativas à aprendizagem da língua portuguesa e dos princípios e valores constitucionais portugueses, bem como da frequência do ensino obrigatório no caso de menores".

Ao contrário dos três meses previstos anteriormente, cada pedido de agrupamento familiar "deve ser decidido no prazo de nove meses", podendo ser recusado por razões de "ordem pública ou segurança pública", bem como de "saúde pública".

Para as associações de imigrantes, "ao negar o reagrupamento de menores que se encontrem fora de Portugal, torna-se incompatível com o direito europeu e internacional", porque "exclui famílias legítimas, viola o princípio do interesse superior da criança, e enfraquece os mecanismos de integração e inclusão social".

Fim dos benefícios para a CPLP

Outras das medidas polémicas é o fim de um regime favorável para os cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que passam a ter de pedir na origem um visto de trabalho ou de residência para obterem autorização de residência.

ARMANDO FRANCA

Atualmente, por acordos bilaterais, os timorenses e brasileiros podem entrar em Portugal como turistas sem visto e depois requererem a autorização de residência. Os restantes cidadãos da CPLP devem apresentar vistos de turismo na entrada do país e depois pedir as autorizações de residência.

Isto tem motivado protestos de imigrantes lusófonos e levou mesmo o Presidente de Angola a considerar que o recuo legal provoca "algum incómodo":

"Os portugueses emigraram para todo o mundo e o mínimo que a gente exige é que Portugal não trate os imigrantes que escolheram Portugal (...) pior do que [os portugueses] foram tratados nos países que os acolheram ao longo dos anos".

No novo diploma, pode ler-se que "se o requerente estiver abrangido pelo Acordo CPLP e for titular de um visto de residência pode solicitar uma autorização de residência temporária" e os cidadãos lusófonos que "sejam titulares de visto de residência, podem requerer em território nacional, junto da AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo] autorização de residência CPLP".

Na prática, com exceção dos brasileiros e timorenses, os imigrantes lusófonos terão de pedir nos consulados portugueses o visto de entrada em Portugal e só depois serão abrangidos pelo acordo de mobilidade.

As queixas de atrasos nos consulados portugueses têm sido frequentes, mesmo já depois do reforço de quadros por parte do Governo.

Para as associações de imigrantes, "as alterações às condições de autorização de residência para cidadãos da CPLP representam um retrocesso num regime baseado em vínculos históricos, linguísticos e culturais".

"O regime CPLP tem sido um exemplo positivo de mobilidade intracomunitária e de integração regional, valorizado no quadro de acordos bilaterais e multilaterais" e "alterá-lo sem salvaguardas claras pode minar a confiança" e "comprometer os princípios de solidariedade lusófona".

Imigrantes altamente qualificados e investidores são únicos beneficiados

Os únicos estrangeiros favorecidos com este pacote legislativo são os imigrantes altamente qualificados, que passam a ser os únicos com acesso aos vistos de procura de trabalho, e os titulares de Autorizações de Residência para Investimento (os vistos 'gold'), que podem pedir o reagrupamento familiar sem os dois anos de espera dos restantes.

O visto de procura de trabalho "pode ser concedido ao titular de competências técnicas especializadas, habilitando o seu titular a entrar e permanecer em território nacional com finalidade de procura de trabalho", refere o texto.

Ora, segundo as associações de imigrantes ouvidas por Marcelo Rebelo de Sousa, "a restrição do visto para procura de trabalho a atividades altamente qualificadas está totalmente desalinhada com a realidade do mercado de trabalho português".

"A economia nacional, especialmente nos setores da agricultura, construção civil, hotelaria e cuidados, depende fortemente de trabalhadores pouco qualificados" e "este tipo de restrição promove uma migração elitista, centrada no chamado 'talento', ignorando o contributo essencial dos trabalhadores" com menos recursos.

O visto para procura de trabalho terá de ter uma data de agendamento em 120 dias e "confere ao requerente, após o início de atividade profissional naquele período, o direito a requerer uma autorização de residência, desde que preencha as condições gerais", refere o diploma.

Caso não obtenha a autorização, o imigrante será sujeito a uma "exigência de abandono imediato do país", o que as associações de imigrantes contestam por violar "o princípio da proporcionalidade, essencial ao Estado de Direito e consagrado na jurisprudência europeia sobre imigração".