Sou Deputada há anos suficientes para saber que o chão comum que nos unia foi quebrado. Já está. Todos os dias a banalização da negação do Estado direito assume tantas formas e tão grotescas, que a reação e o combate pela reconstrução do que já fomos – ainda que imperfeitos – é um caminho desequilibrado.

Na casa da democracia berra-se e insulta-se. A misoginia, o racismo, a xenofobia, o capacitismo, a homofobia e os crimes de ódio têm palco entre risos e preparação de “tick tocks” com os verbos do nosso novo mundo: “arrasa”, “destrói”. De caminho, a extrema-direita afirma um novo homem virtuoso, o que humilha e não chora: “aqui ninguém chora”. O PAR podia ser um robô, não está ali para afirmar a República, para dizer coisas simples como “todas as crianças têm direito à escola”. Está ali para distinguir gramaticalmente substantivos e adjetivos. E assim temos um Parlamento que legitima o inaceitável no Regime de Abril.

Esperava-se que a direita democrática fosse direita democrática, que Luis Montenegro honrasse o Luis Montenegro que afirmou um “não é não” substancial, ao ponto de jurar que poderia o PSD abandonar os seus princípios, mas teria de ser sem ele.

No topo das preocupações dos portugueses estão temas como a saúde a habitação, mas a AD arrasta a solução dos problemas com um gigantesco sim à extrema-direita. Desde o dia um que fez da imigração o alfa e o ómega da sua agenda, inventando pressupostos para a urgência de medidas desumanas e inconstitucionais, reunido com o Conselho das Migrações depois de entregue proposta de lei e de ter reprovado, já no Parlamento, a rir, com o Chega, todas as audições de organizações de imigrantes e também as audições obrigatórias. Seguiu-se o inédito processo de urgência e, ao som do “habituem-se” gritado por Hugo Soares, aconteceu o que já foi impossível na aprovação relâmpago da lei que separa filhos e pais.

Ouvimos João Almeida dizer que acabou o tempo em que “nós” tratávamos imigrantes e nacionais da mesma forma (aquela imposição do artigo 15º da Constituição) e ouvimo-lo dizer que o país está a reconfigurar-se, já não o reconhece. Nunca tinha visto no CDS esta pontada súbita de teoria de substituição e parece-me evidente que não é no Príncipe Real que João Almeida se sente ameaçado na sua nacionalidade. O critério, de resto plasmado na obscena proposta de lei da nacionalidade, é cromático, é de sangue: querem, como nacionais, bisnetos de um português distante e não querem os que aqui estão há 5 anos por adesão. De onde vem a sensação de reconfiguração do país? Pergunto se João Almeida sentiria alguma reconfiguração se visse António Costa ou Francisca Van Unem numa rua qualquer do país e fossem ambos pessoas anónimas. Que sensação é essa? Não houve sobressalto geral. O limite do PAR é “fanfarrão”.

Porque já está.

E agora?

Agora será um tempo de resistência e de reconstrução lento. Muito lento. A história não se repete, mas dá-nos lições. Na Europa a direita democrática que concorreu com o monstro perdeu para o monstro. Luís Montenegro afirma que não cedeu, trata-se da “realidade”. Aderiu à realidade inventada e incutida pela extrema-direita numa comunidade que tinha problemas, mas que era muito mais coesa.

Leva muito, mas muito tempo, a recompor a verdade e a ser alternativa fiável. Isto vale para todos os democratas. Nesse esperar, até podemos encolher, enquanto a modernidade das redes sociais não dá trégua à coesão e infeta a política de mentira útil e endinheirada. Estou convicta de que a primeira receita para uma vitória a longo prazo da democracia toda, a substancial, é não ceder. Nunca.