Numa democracia digna desse nome, criticar quem governa não é apenas legítimo, é indispensável. Para qualquer cidadão, será certamente inaceitável que um antigo ministro dos Transportes, José Luís Ábalos, ou o braço direito do presidente do Governo, Santos Cerdán, estejam a ser investigados por pertencerem a uma organização criminosa.

Muitos concordarão que Pedro Sánchez cedeu mais do que devia para se manter à frente do executivo, ao firmar alianças que desafiam os limites do admissível – do ponto de vista político e ético. Contudo, existe um abismo entre o cálculo político e a sabotagem deliberada das instituições democráticas, entre opções políticas e violações dos princípios constitucionais.

Comparar Espanha à Hungria de Orbán ou à Polónia do PiS – reduzindo-a a mais uma “democracia iliberal” – é uma caricatura. O artigo 7º do Tratado da União Europeia (TUE), concebido para proteger os valores do projeto europeu – democracia, estado de direito, direitos fundamentais – foi ativado contra estes Estados-Membros não por divergências ideológicas ou casos de corrupção, mas por violações sistemáticas: a captura dos tribunais, intimidação da imprensa, silenciamento das oposições, perseguição às minorias ou dissolução da separação de poderes. Em Budapeste, o autoritarismo deixou de ser um risco para se tornar um modelo.

Nada disso existe, hoje, em Espanha. Os tribunais mantêm a sua independência. Os meios de comunicação criticam com liberdade. As manifestações sucedem-se nas ruas. A democracia respira, com esforço, mas respira. Sánchez não está acima de crítica. A aliança com os herdeiros da ETA – o EH Bildu – é politicamente arriscada. A amnistia aos independentistas catalães, embora constitucional, impõe um preço institucional difícil de ignorar. Mas foram decisões tomadas dentro do quadro constitucional, sujeitas a controlo judicial e inscritas num processo de reconciliação. Discordar é legítimo. Tomá-las como prova de tirania distorce a realidade.

Convém lembrar que nem todas as vozes que invocam a “independência judicial” o fazem em nome da justiça – algumas apenas encobrem interesses partidários. Muitas associações judiciais alinham-se com sectores conservadores e assumiram o papel de parte interessada, em vez de árbitro imparcial. O direito à crítica é inviolável. Mas quando se confunde magistratura com militância, mina-se a confiança no próprio edifício institucional.

E o Partido Popular, hoje personificação da ordem constitucional, de todas as virtudes, carrega o peso de um passado pouco ético. Os casos Gürtel, Bárcenas ou Púnica não foram acidentes de percurso. Foram escândalos próprios de uma cultura de poder que se apropriou indevidamente de fundos, facilitou contratos opacos e promoveu uma corrupção política e moral que consumiu durante anos a confiança no Estado. Mas nem por isso justificariam a aplicação do artigo 7º do Tratado da União Europeia.

Isabel Díaz Ayuso, Presidente da Comunidade de Madrid, acumula sinais de promiscuidade entre o poder político e os interesses familiares – uma opacidade que, noutras democracias, teria exigido um escrutínio mais severo, tanto à esquerda como à direita. Alberto Núñez Feijóo, que se apresenta como rosto da regeneração ou é apresentado como restaurador da legitimidade política, tem também ele que responder pelo seu passado. Em 2013, vieram a público fotografias de 1995 que o mostravam a bordo do iate de um conhecido narcotraficante galego. À data, Feijóo fazia parte do governo regional da Galiza e pouco depois integraria o executivo de José María Aznar. Não se trata de atribuir culpas por associação. Trata-se de coerência. Ou da ausência dela.

Neste contexto de guerrilha política e mediática, devolver a palavra aos cidadãos é não apenas legítimo, mas necessário. As eleições são o oxigénio da democracia. Permitem clarificar, renovar, respirar. Porém, se o risco da perpetuação de um executivo esgotado existe, há também um perigo igualmente sério: a normalização de uma coligação entre PP e VOX, já ensaiada em várias comunidades autónomas. Nas mesmas, a retórica rapidamente se traduziu em censura cultural, apagamento da memória histórica, ataques às línguas cooficiais, retrocessos nos direitos das mulheres e dos migrantes. O que se testou regionalmente pode ser replicado à escala nacional.

O risco para a democracia em Espanha não vem tanto do desgaste do poder como da erosão dos seus pilares. O VOX não é uma força conservadora. É um projeto revisionista. Visa desmantelar os consensos constitucionais do pós-franquismo: descentralização, pluralismo, igualdade. Não ambiciona apenas o poder: quer refazer o regime. A sua linguagem é inequívoca, ambicionando a reabilitação de Franco, a deslegitimação de juízes progressistas e fazendo apelos à ilegalização de adversários políticos. Não é uma alternativa. É uma regressão com verniz constitucional. Se há algo que poderá ameaçar os valores do artigo 2º do TUE, não será a fragilidade dos equilíbrios parlamentares de Sánchez ou a desonestidade dos seus colaboradores, mas sim a agenda reacionária que o VOX propõe e que o PP legitima.

Num tempo em que o cinismo alastra e a fé nas instituições vacila, preservar a proporção dos factos é um ato de responsabilidade. É inegável que Sánchez cometeu erros. Rodeou-se de aliados pouco recomendáveis, cedeu a pactos que inquietam a consciência democrática. Mas não subverteu o estado de direito. Não instrumentalizou os tribunais. Não moldou a Constituição a seu gosto. Equipará-lo aos verdadeiros artífices da degradação institucional deturpa o debate. Enfraquece a denúncia dos regimes que, como o húngaro, erodem liberdades e concentram o poder. E normaliza aqueles que anseiam por uma Espanha tudo menos democrática.

Santayana terá dito que o fanatismo consiste em redobrar os esforços depois de ter esquecido o objetivo. Recordemos, portanto, que as eleições não são uma manobra de sobrevivência, mas a âncora do sistema. São o antídoto contra o radicalismo, o último recurso da legitimidade.

Sánchez não é Orbán. Espanha não é a Hungria. E, mesmo perante a narrativa que o PP e o VOX procuram impor, a democracia espanhola resiste – imperfeita, vulnerável, mas real.