Ao longo da história, um dos debates mais titânicos da filosofia política colocou em confronto duas antropologias fundamentais: a hobbesiana, que vê com um pessimismo antropológico o homem como lobo do próprio homem, e a rousseauniana, que nos concebe como bons selvagens apenas corrompidos pela sociedade. Ambas têm os seus perigos: a primeira justifica o autoritarismo em nome da ordem; a segunda, um voluntarismo moralista com reduzida adesão à realidade.

Incontáveis conversas giram, mais do que entre exposições ideológicas articuladas, sobre uma questão de fé (ou a falta dela) na humanidade. Em quem é o herói ou o vilão de cada história.

É neste impasse que se inscreve o caso da demolição das barracas. Uma dança macabra em que argumentos se digladiam para decidir qual a injustiça maior. De um lado, pessoas que vivem na plena miséria. Do outro, famílias com vidas também bastante difíceis, que aguardam há anos por uma solução habitacional. Diga-se, não é, conceptualmente, um debate diferente daquele sobre quem deve aceder prioritariamente às creches, aos hospitais ou aos apoios sociais.

Eis o dilema então: se se realoja quem construiu ilegalmente, é injusto para quem cumpre a lei e espera anos na fila por uma casa; mas, se se expulsa sem alternativa, produz-se uma violência institucional inaceitável. O debate parece paralisado exatamente porque qualquer escolha nos deixa, moralmente, simultaneamente certos e errados.

Porém, quando é que este debate se tornou tão desesperançado que passe apenas por estabelecer uma hierarquia de sofrimento que decida se é moralmente mais correto passar à frente na fila ou ficar na rua? Ou, dito de outra forma, porque é que é possível argumentar que há um capital político superior na punição do que na tentativa da resolução dos problemas? Mais perturbador ainda, porque é que esta indignação se tornou global e a mesma raiva é expressa em várias línguas, em países com condições de vida tão diferentes?

Para quem tem pouco, o adágio tradicional invoca a sua sabedoria: ou há para todos ou não há para ninguém. Para quem um pouco mais tem, as redes sociais provocam um exercício permanente de comparação com ideais inalcançáveis que não podem dar outro resultado que não seja uma frustração acumulada, dia após dia. Para muitos outros, vive-se num vazio identitário profundo, num mundo em constante mutação tecnológica e social, onde as referências comuns se tornam difíceis de consensualizar. As democracias nunca calcularam bem o custo emocional do progresso. A liberdade individual, despida de papeis sociais lineares – sejam eles religiosos, familiares ou profissionais - vem acompanhada de uma desorientação social demasiadas vezes desvalorizada.

Esta indignação ultrapassa fronteiras porque as estruturas de vida não são assim tão dissemelhantes na sua essência: insegurança material, sentimento de injustiça, solidão e falta de sentido de pertença não diferem substancialmente por alguma variação nas condições de vida de partida. As redes sociais aceleram e condensam esta experiência comum, tornando visível uma indignação partilhada que atravessa as diferentes geografias.

Quando se vive num estado permanente de desconforto, connosco e com os outros, natural ou promovido, é sempre mais fácil transformar um mal-estar difuso numa indignação dirigida para um inimigo comum, do que convocar os bons anjos da nossa natureza humana fundados na empatia e na comunhão cívica.

O oportunismo justiceiro floresce porque não tem de oferecer um futuro ainda não concretizado, basta-lhe prometer um passado confortável e conhecido. Pode tanto ser a saudosa década de 90 em Portugal, ou o “Make America Great Again”. Não tem, assim, de se enfrentar o cinismo e a descrença que tanto dificultam uma mobilização para a única coisa que se assemelha a uma solução: sermos capazes de gerar consensos coletivos para responder às necessidades que são de todos, signifique isso melhorar o acesso a creches, casas ou hospitais.

Perante dilemas impossíveis precisamos pouco de quem use o seu talento para culpar ou usar as várias vítimas desta equação, das suas falhas morais ou desilusões. Nem sequer de mais promessas de soluções imediatas que todos sabemos não existirem. O que precisamos, e é o mais difícil, é de quem tenha a coragem de defender um horizonte habitável onde todos sintam que podem caber.

Uma reconstrução do comum, que veja além da mera possibilidade de sobrevivência lado a lado. Uma oportunidade de reconciliar liberdade e pertença, modernidade e raízes, progresso com memória. Não para voltar atrás, mas para poder continuar a avançar. As medidas demoram. O sentido, não pode esperar.

Quem sabe seja esta uma das lições a retirar desta situação: que em terra onde não há pão, podem derrubar-se todas as barracas, mas se não reconstruirmos um sentido, acabaremos todos sem razão.