Cleo Diára nasceu em Cabo Verde, na Cidade da Praia, onde viveu até aos 10 anos. Depois veio morar para a periferia de Lisboa, mais concretamente o Cacém, onde cresceu e estudou.

Cleo cresceu enquanto adolescente no Cacém, um dos subúrbios que melhor traduz esta Lisboa misturada e periférica, com gentes de muitos lugares e culturas.

José Fonseca Fernandes

Curioso é sabermos que noutra vida Cleo estudou finanças e contabilidade, no ISCTE, mas depressa percebeu que esta não era a sua praia. É quando descobre o gosto pelo teatro no grupo universitário “Mis-cutem”.

Cleo escutou-se e concorreu à Escola Superior de Teatro e Cinema onde entrou.

Mas nos primeiros tempos, no Conservatório de Teatro, Cleo sentiu-se um peixe fora das suas águas, porque não tinha lido nem visto nada do que os seus colegas falavam.

Porque todos eles e elas já chegavam ali com experiência nos palcos e com várias referências teatrais, num fartote de ‘name droping’ de autores e peças clássicas, mas Cleo, na altura, apenas tinha como grandes referências da representação… as telenovelas brasileiras.


José Fonseca Fernandes

Mas isso não a impediu de se afirmar na turma como uma atriz singular, que colocava muita verdade e entrega em tudo o que se propunha a fazer.

O ator e encenador Mário Coelho, que é seu colega e amigo desde esses tempos, recorda-a como “Um corpo que não tem uma única nota em falso. Uma criadora direta, autêntica, não polida.”

O que foi sempre uma mais valia e uma qualidade preciosa num lugar onde se aprende muito sobre o teatro, mas com a tendência de padronizar os corpos, os olhares e as vozes, com uma ideia muito vincada do que é o cânone teatral.


José Fonseca Fernandes

E, nesse aspeto, Cleo foi sempre revolução e originalidade. Talvez também por isso no fim do curso era das poucas da turma que tinha já trabalho nos palcos assegurado.

Cleo estreou profissionalmente no teatro em 2015/ e, desde aí, colaborou em projetos de inúmeros encenadores portugueses, como Rogério de Carvalho, Mónica Calle, Sónia Baptista, Pedro Baptista e Mário Coelho.

Dois anos depois, em 2017, a atriz experimenta pela primeira vez o cinema com o filme “Verão Danado”, de Pedro Cabeleira, que se tornou um companheiro de percurso e que até a levou a Cannes, tal como aconteceu com o filme “Diamantino”, de Gabriel Abrantes, mas já lá vamos...


José Fonseca Fernandes

É em 2020, - o ano do bicho e do confinamento -, quando Cleo firma uma irmandade artística poderosa com mais duas atrizes negras, Nádia Yracema e Isabél Zuaa, com quem formou o coletivo “Aurora Negra”.

Este movimento de resistência artístico começou com o espetáculo homónimo - “Aurora Negra” - vencedor da segunda edição da Bolsa Amélia Rey Colaço, e estreado no Teatro Nacional D. Maria II, e que nasceu da constatação da invisibilidade a que os corpos negros estão sujeitos nas artes performativas.

A partir daí, estas três irmãs artísticas lançaram-se numa construção” de uma “revolução negra e feminista”, que aborda a arte como uma possibilidade de reparação histórica sobre séculos de violências, abusos e apagamentos - que reverberam nas gerações atuais ou vindouras - e como agitação de consciências sobre a ancestralidade negra.


José Fonseca Fernandes

É por esta altura que Cleo troca o apelido “Tavares” por “Diára”, porque queria que o seu nome revelasse as suas origens crioulas e ancestralidades africanas. Já que Diára significa “presente” numa língua Bantu.

Depois de “Aurora Negra”, Cleo já subiu a cena com estas suas duas manas nos espetáculos "Cosmos" e "A Missão da Missão", com mais “narrativas e subjetividades negras” que até aqui não tinham protagonismo, nem lugar, no teatro português.

Cleo chega a citar a teórica feminista americana Bell Hooks para justificar o lado biográfico do seu trabalho, e as questões inerentes à sua identidade racial e memória colectiva:

“A biografia informa a prática e a prática a biografia”.

Qual o poder e o lugar da arte num país que voltou a perder um ministério exclusivo para a Cultura? Esta é uma das perguntas que lhe é lançada.

E que mais? 2025 parece ser o ano de Cleo Diára. Já que a atriz acaba de ser distinguida em Cannes com o prémio de melhor interpretação feminina na secção “Un Certain Regard” com o filme “O Riso e a Faca”, de Pedro Pinho.

Na ocasião, Cleo subiu ao palco belíssima, feliz e ao mesmo tempo espantada com a boa surpresa do prémio pela sua prestação nesta longa metragem que resulta de uma coprodução entre Portugal, Brasil, França e Roménia.



“Que fique bem assente que sou uma imigrante em Portugal num momento em que os imigrantes não são bem-vindos.” E acrescentou: "De modo geral, quero que todas as raparigas e mulheres negras da periferia nunca se esqueçam de que a utopia é o último estágio antes da possibilidade do real."

Terá sido esse o segredo de Cleo? Sempre acreditou na sua utopia, mesmo vindo da periferia, até chegar ao palco de Cannes? O episódio começa por aqui, com esta questão.

E Cleo é convidada a comentar o discurso crítico da escritora Lídia Jorge nos festejos do dia 10 de Junho, Dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas, sobre os movimentos de extrema direita e ressurgimento de uma vaga de racismo e xenofobia no país. De que forma o discurso de Lídia atravessou Cleo Diára?

José Fonseca Fernandes

Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de José Fernandes. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã da próxima sexta-feira, dia 27 de junho.

Boas escutas!