Depois do desastroso final de mandato da sua antecessora e do currículo que merecia um reconhecimento quase universal, a notícia da escolha de Amadeu Guerra para o lugar de Procurador-Geral da República mereceu os mais diversos aplausos ou louvores. Muitos – incluindo-me nesse grupo – expressaram o seu otimismo para os tempos vindouros, esperando um Ministério Público mais capaz na execução das suas atribuições, com simultânea eficácia na comunicação da sua atuação.

Mais do que um pior do que está não fica, imperava a certeza de uma mudança positiva nos múltiplos objetivos que no curto, médio e longo prazo se exigia que o ex-Diretor do DCIAP atingisse.

Nas últimas semanas o PGR tem sido notícia pelas mais variadas razões, destacando-se a tímida sugestão de que caberia a José Sócrates provar a sua inocência em julgamento, mas também o braço de ferro mantido com o sindicato dos magistrados do Ministério Público, demonstrando intransigência e falta de abertura, preferindo atirar para a ministra da Justiça uma outra batata quente (da falta de magistrados) que não era o cerne das reivindicações.

No primeiro caso, uma conceção antiliberal e antidemocrática do processo penal pôs a cabeça de fora, atirando para canto a óbvia responsabilidade de quem acusa dever fazer prova do que alega. No segundo, deu ares de um líder despótico, que ao invés de se colocar empaticamente ao lado daqueles que lhe cabe liderar, provocava uma mais que justificada greve, contra uma medida de gestão de quadros que potenciará e em grau relevante o já certo e comprovado desgaste de muitos dos procuradores por ele geridos, enquanto atira a especialização do Ministério Público para o século passado.

Fosse Lucília Gago a dizer que cabe a um arguido provar a sua inocência ou a exigir a um sem número dos seus procuradores desdobrarem-se além do razoável numa multiplicidade de tarefas, arrasando a crescente especialização do Ministério Público, que logo caía o Carmo e a Trindade. Já sem falar da forma, a roçar o amadorismo, como vêm sendo geridas as famosas averiguações preventivas, iniciadas à margem dos pressupostos legais e só noticiadas quando os alvos são aqueles que conhecemos. Com o atual PGR parece que tudo lhe é permitido.

Através de uma gestão mediática e comunicacional que só os últimos dias levaram a duvidar da sua eficácia, Amadeu Guerra tem conseguido ser notícia só quando e sobre o que quiser. Chamando, uma vez por outra, jornalistas ao Palácio de Palmela – se calhar já deu mais entrevistas em nem um ano de mandato do que nos seis anos da sua antecessora – e fornecendo os soundbites mais úteis para a visão que quer dar da sua gestão do Ministério Público, usa uma estratégia que não tem nada de novo e que tem deixado à margem do foco mediático muito do que de mau ou de errado acontece sob a sua esfera de ação e de direção. Um estado de graça que já vai longo.

Mas terão deixado de existir investigações a arrastarem-se e processos a não chegar a julgamento por inércia do Ministério Público ou de alguns dos meus magistrados? Será uma organização tão diferente das demais, onde quem gere pessoas acaba muitas das vezes por fazê-lo com abuso da autoridade que tem?

E se as diversas visitas de trabalho que fez pelas Comarcas do país, concluídas logo a meio da greve dos magistrados que dirige, mais do que servirem para “identificar, através do contacto direto com os magistrados que aí trabalham, as dificuldades por estes sentidas bem como estratégias para as ultrapassar”, tiverem servido, também ou sobretudo, para doutrinar ou para alguns reparos ou avisos mais contundentes?

Não seria de perguntar às gerações mais novas de procuradores como é que encaram as mudanças preconizadas pelo PGR e amparadas pelo Conselho que preside, ao ser-lhes exigido despachar, em simultâneo, processos de família e de crime quando antes se procuravam especializar em apenas numa dessas áreas? E não seria também de os questionar sobre como é que a adesão à greve dos últimos dias pode ter impacto numa futura primeira inspeção?

E se a greve realizada tiver conduzido à ineficácia da recolha de provas relevantes em diversas investigações, só porque o PGR não entendeu dever incluir nos serviços mínimos os atos tendentes à validação das escutas telefónicas e vigilâncias com registo de voz e imagem?

Volvidos mais de oito meses da posse de Amadeu Guerra como PGR, não era já tempo de a lua de mel com a comunicação social ter terminado?