
Em conversa com o SAPO, aquando da inauguração da exposição do World Press Photo em Portimão, Samar Abu Elouf conta como começou a trabalhar em fotografia e como é trabalhar num contexto de guerra: o impacto da sua profissão na sua família, os colegas que trocam as máquinas por sacos de farinha em Gaza e como tentava garantir, que em cada enquadramento com imagens de mortos e feridos, nenhum dos seus próprios filhos estivesse na imagem.
Desde o final de 2023, a fotojornalista do The New York Times vive em Doha, no Catar, com os filhos. A sua família, mãe, irmãs e sobrinhos, estão em Gaza, sem conseguir sair, e trocam constantes mensagens sobre os bombardeamentos e a fome. Pedem-lhe que não regresse com receio de que seja morta, como aconteceu a 211 jornalistas mortos desde 7 de outubro 2023, segundo dados compilados pela ONU. Outro relatório desta organização mundial denuncia que Israel está a matar à fome a população de Gaza, com um milhão de crianças em risco, e Samar conta como se sente culpada cada vez que come.
As imagens são a forma de a fotógrafa conseguir ter impacto e levar a mensagem do seu povo além-fronteiras numa altura em que estas se encontram fechadas à Palestina. Ao SAPO fala sobre o seu percurso, as primeiras séries do quotidiano em Gaza, as últimas da guerra, o impacto das imagens para os leitores ocidentais e do Médio Oriente e a esperança de que possa contribuir para algo.
Como começou a fotografar e como cresceu o interesse de fotografar o quotidiano em Gaza?
Comecei a fotografar em 2010. Tinha começado a estudar Contabilidade e percebi que não era aquilo que eu queria. Entretanto, comecei a trabalhar num centro de refugiados da ONU em Gaza. Trabalhei durante dois meses com crianças a desenhar, ler e cantar. Queria fazer algo como uma exposição com os trabalhos das crianças, mas não fazia ideia de como e comecei a procurar nas redes sociais, na Internet, comecei a falar com pessoas que me diziam para ir fazendo fotografias, mas não sabia como. E comecei a aprender. Estudei as regras das imagens, como tirar fotos, etc. em pequenos tutoriais na Internet. Mas não chegava, percebi que tinha de praticar e então comecei a ir para a rua tirar fotografias.
Esta parte foi complicada. Ninguém queria que eu fosse para a rua e andasse pela rua a falar com as pessoas. Tive muitos desafios, mas eu queria continuar a fotografar para documentar o que se passava à minha volta. Não pensava ser fotógrafa, queria só captar o que estava a acontecer naquele momento na Palestina.
Ser mulher, mãe e fotojornalista já é exigente em qualquer parte do mundo. Num contexto de guerra, como foi para si e como aceitou a família?
As pessoas não viam as mulheres a tirarem fotografias. Eu fui talvez das primeiras em Gaza. O meu ex-marido e a minha família não gostaram muito que eu não ficasse em casa, mas tudo mudou quando recebi o primeiro prémio [Samar ganhou o prémio Change the Picture Award 2012, organizado pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Palestinianos, com a imagem de uma menina a festejar o aniversário num campo de refugiados]. Depois, com o prémio, perceberam que o que estava a fazer era normal e que podia ter futuro. Começaram a acreditar no que estava a fazer.

É muito exigente. Além disso, na nossa sociedade, uma mulher faz tudo. Trabalho fora de casa, mas depois também cuido dos meus filhos, ajudo nos estudos, cozinho e faço tudo.
Claro que o contexto de guerra é muito difícil, eu estou sempre com medo, com medo de que os meus filhos possam estar numa das imagens que tiro. Eu não sei onde estão as bombas ou onde está sempre a minha família. Mas eu trabalho para eles também.
“Antes de tirar a foto, eu vejo se não estão lá os meus filhos”
Depois, há outros desafios. Não há sempre eletricidade. No início da guerra, só tínhamos seis ou oito horas de eletricidade por dia. Tinha de gerir o trabalho tendo em conta isso e nessas horas fazer o trabalho, enviar, cozinhar, lavar, etc.

Desde o final de 2023 que vive no Catar, um país com um nível de segurança muito alto, mas com outros desafios. Como é trabalhar agora à distância?
Agora, no Catar, eu não estou autorizada a trabalhar por questões burocráticas. Fiz o trabalho com os retratos de pessoas feridas em Gaza que estão a ser tratadas em Doha a pedido do The New York Times e com autorização governamental.
De resto, onde eu sinto que o meu trabalho é feito e onde eu me sinto livre para trabalhar, mesmo que seja debaixo de um bombardeamento, é em Gaza; porque é o meu país, conheço as pessoas, conheço os lugares, o mar e as ruas. Conheço tudo e sinto-me livre.
Agora, vivo noutro país e viajo às vezes, mas tudo é novo, tudo é diferente, não conheço as pessoas, nem as ruas, nem as histórias. Posso trabalhar em qualquer lugar, mas nada é como Gaza.
“Gaza é onde me sinto livre”
Em Gaza, conheço as histórias, vivo com as pessoas as suas vidas. Sento-me e falo com as pessoas. Conversamos muito e só depois tiro fotos. Às vezes vou e volto muitas vezes, as pessoas já me conhecem.
Como conheceu estas pessoas retratadas na série de trabalhos que mostra as pessoas feridas que estão a receber tratamento em Doha? E como organizou este trabalho?
Vivemos nos mesmos prédios em Doha. Conhecemo-nos lá, fomos sendo apresentados uns aos outros e conhecemo-nos bem. Agora, não há fronteiras abertas, mas, durante algum tempo, algumas pessoas feridas conseguiram ser transferidas para receber tratamentos no Egito e foram encaminhadas para o Catar.
O meu colega Fadi Al-Wahidi, que trabalhava para a Al Jazeera, também está a receber tratamento em Doha, depois de ser atingido no pescoço por um sniper israelita e ter ficado paraplégico.
Apesar da dificuldade para trabalhar em Gaza, chegam-nos imagens a todo o momento, seja na TV, nas redes sociais etc. O mundo está cheio de imagens. Acredita que estas ainda têm impacto?
Não, não acho. As imagens são todas muito iguais e já se tornaram banais: bombardeamentos, mortes, bombardeamentos, mortes. São dois anos de guerra e estas imagens tornam-se repetitivas e difíceis de suportar. Acho que no início da guerra as imagens tiveram impacto, mas estão a deixar de ter.
E o fotojornalismo pode quebrar esta tendência e ter mais impacto no meio de tantas imagens?
Sim, acredito nisso porque as imagens são diferentes. Mas agora muitos dos fotojornalistas em Gaza estão a trocar as câmaras por farinha. Precisam de comer e alimentar os filhos. Eu vejo muitos amigos a fazer isso e imagino o que isso é, eu sei o que significa a câmara para um jornalista.
E esperava este prémio e a reação à fotografia do Mahmoud Ajjour?
Não imaginava que as pessoas pudessem ver esta foto com tanto poder. Não é uma fotografia explícita de guerra e teve um impacto muito maior. Eu vi aquelas pessoas e acho que o público conseguiu ver o que eu via.
Trabalhando tanto para meios ocidentais como do Médio Oriente, acha que há culturalmente formas diferentes de olhar para as imagens?
Eu vejo uma imagem e fotografo, independentemente dos leitores. Acho que ver uma imagem é simplesmente humano e não europeu ou árabe. Eu sou palestiniana e as minhas imagens refletem a forma como eu vejo o mundo.
Aprendi que os países ocidentais não gostam de ver imagens com sangue, mas se a imagem tiver história, não penso muito nisso, eu concentro-me mais nas imagens das pessoas. Eu própria também não gosto de fotografar sangue, evidente. Sou uma pessoa e não sou uma máquina. Tenho quebras de tensão quando vejo muitos corpos mortos e nem sempre consigo fotografar.
“Se eu não consigo ver, as pessoas também não vão querer ver”
Na imagem de Mahmoud não há sangue, mas há muita história. É sobre humanidade. Qualquer pessoa que tenha um filho vai pensar como é que Mahmoud continuou a sua vida e qual o seu futuro. Gosto de procurar imagens que tenham humanidade.
Há coisas que as imagens não conseguem descrever?
Sim, muitas, a maior parte, diria. Quando estava em Gaza via todos os detalhes e agora com menos jornalistas no terreno, menos se sabe, diria que se sabe 1%. Eu estou sempre a falar com as minhas irmãs no WhatsApp e a cada segundo há bombas a cair. Estão sem comida. As notícias não passam a cada minuto ou segundo a dizer que caiu uma bomba ou que alguém morreu. Toda a noite há bombas a cair e pessoas a gritar, ninguém dorme há muitos meses.
“Há mais de dois dias que não há comida em lado nenhum em Gaza, uma imagem não descreve isto”
A minha mãe perdeu 20 kg, a minha irmã pesa agora 45 kg. Tudo está diferente, as casas e as ruas foram bombardeadas, mas as pessoas estão mortas, mutiladas ou muito magras. O que está a acontecer em Gaza é muito maior do que se mostra.
Apesar de eu comer e de não ouvir as bombas é como se eu sentisse tudo isso, porque eu sou de Gaza e a minha família está lá. Sinto culpa quando viajo e quando como e sinto que estou aqui com o objetivo de falar sobre a minha família e sobre as pessoas que estão em Gaza. Se estou fora e se deixei de poder exercer a minha profissão no terreno, tudo o que posso fazer é vir falar e ter esperança que algo mude.
Sente que as suas imagens podem contribuir para que outros sintam e percebam melhor o que se está a passar em Gaza?
Sim, sinto que faço algo por Gaza. O reconhecimento do prémio do World Press Photo é muito bom mas não consigo estar feliz porque a situação em Gaza é demasiado má. Sinto que o reconhecimento faz com que as pessoas conheçam as histórias e isso é importante. Os palestinianos não podem viajar, mas as suas histórias podem chegar a outras pessoas.
Eu sinto que as pessoas me apoiam e apoiam a situação em Gaza. Talvez os governos na maior parte do mundo tenham uma ideia diferente, mas as pessoas são muito queridas. As pessoas são empáticas e dão-me apoio.
“Eu tenho sempre esperança de que uma foto possa parar a guerra”
Talvez uma fotografia, talvez palavras, qualquer coisa, há uma esperança de tentar parar a guerra.