O terceiro livro que Joana Marques publica é um compêndio de algumas das crónicas que escreveu ao longo dos últimos dois anos. Tempos inusitados, estranhos e rocambolescos, marcados pela COVID-19, pois claro, uma pandemia onde “todo um conjunto de incoerências foram aparecendo” e que abriu portas (para alívio da também guionista) para que se pudesse fazer humor sobre o assunto. Desde o apelo para salvar o Natal à custa de mais infeções até aos pouco científicos Médicos Pela Verdade, passando pela ascensão ao estrelato de virologistas cujos nomes nunca antes tínhamos ouvido, diz a comediante em entrevista ao SAPO. Apesar de falar da doença que nos obrigou a ficar trancados em casa semanas a fio, com alguns textos que a autora espera que fiquem para a posteridade como uma espécie de “registo humorístico” da pandemia, Apontar é Feio está longe de se centrar no tema, porque o planeta continuou a girar e os seres humanos continuaram a comportar-se… como seres humanos.

Com a típica acutilância e mordacidade a que nos habituou com o Extremamente Desagradável, a humorista aproveita as 207 páginas da obra para, entre muito mais, apontar o dedo ao “Serviço Nacional de Seja-o-que-Deus-Quiser”, nome orwelliano criado pela mesma para designar o nosso SNS, ou relembrar-nos a importância que os cheeseburguers tiveram no sucesso de Cristiano Ronaldo, sem esquecer o filme à Steven Seagal (ou será mais uma telenovela mexicana?) do assalto ao “Palácio do Kebab”, que fica por “terras do Cais do Sodré”. À mistura, acrescenta Joana Marques a meio da conversa que com ela tivemos, há que contar com uma boa pitada de observações tão mundanas, como o “entusiasmo que os homens passaram a demonstrar por certos gadgets das limpezas domésticas, dos aspiradores robôs às máquinas de lavar”, e que, segundo ela, se explica porque “quando a coisa é mais tecnológica isso chama-lhes a atenção”, sendo que pode estar aqui “um bom truque para as mulheres nunca mais fazerem nada em casa”.

A entrevista com a humorista esticou-se no tempo e levou-a a confessar que na escola, especialmente quando entrou para a universidade, achou quase tudo “desinteressante”. “Os tempos mortos”, ou seja, as aulas, eram aproveitados para escrever, o único exercício que realmente a divertia, ao ponto de num exame de físico-química ter transformado uma resposta de duas linhas num texto de página inteira em que divagou criativamente sobre uma perseguição policial a João Vale e Azevedo. Quanto ao resto, a tudo o que surgiu na sua vida e a transformou numa das humoristas mais conhecidas de Portugal, parece querer resumir tudo a uma frase: “Eu nunca tive tempo para fazer grandes planos… fui deixando andar.”

Inevitavelmente, começámos o «interrogatório» a Joana Marques na esperança que nos desse respostas sobre o que levou ao atual clima de polarização em que os humoristas, gradualmente, acabaram envolvidos, transformados por muitas pessoas numa espécie de vilões dos filmes de James Bond. Ao fim e ao cabo, é dúbio declarar que alguém merece levar uma bofetada em plena noite dos Óscares por causa de uma piada, seja ela boa ou má.

“Eu analiso muitas vezes os narcísicos, as pessoas que se autoelogiam muito, pois tenho um certo fascínio por elas. Elas estão lá em cima e eu estou cá em baixo, a tentar alertar que se calhar o que estão a dizer é um bocado exagerado, um bocado ridículo.”
A guionista e humorista no estúdio da Rádio Renascença, onde tem lugar a rubrica Extremamente Desagradável Créditos: Tomás Monteiro

Numa das páginas do livro esboça esta interessante visão sobre a arte de criar comédia. Palavras suas: “O que é que é que oferece melhor matéria para fazer humor? Um cromo como o Marco do Big Brother ou um cromo no sentido de melhor aluno da Nova que ganhou um bolsa de milhares de euros na Sorbonne? Da mesma forma que, para fazer uma sátira sobre um fim-de-semana em Portugal, falar de lindas praias, delicioso peixe ou a imponente Torre dos Clérigos é inútil. O que corre bem e merece elogio não serve o humor, que procura sempre a falha.” Nunca se questionou sobre se esta fórmula não pode estar, inadvertidamente, a criar um ambiente em que nos rimos dos outros porque isso também nos faz sentir que somos melhores do que eles, moralmente e até intelectualmente superiores?

Não consigo concordar com essa ideia. É difícil saber o que leva cada pessoa ao riso, o que é que cada um encontra de engraçado em determinado assunto para o fazer rir. Pelo que também é difícil saber se existe essa tal superioridade moral. Isto seria mais fácil de responder se os «cromos» com os quais fazemos humor fossem sempre aqueles que falham, seja a pessoa que caiu na rua ou aquela que está dentro do Big Brother e não sabe falar português de forma correta. Se fosse esse o caso, seria fácil ter essa interpretação. Mas se pensarmos que no dia a seguir o «cromo» pode ser o António Costa ou o José Sócrates – que durante muito tempo se comportou como se tivesse uma grande superioridade moral –, então, creio, já não se pode julgar isso.

Eu sei que não faço assim [compor humor com o intuito de criar um sentimento de superioridade], mas tal como numa obra literária é impossível controlar a interpretação que cada pessoa vai fazer dela. No humor é exatamente igual e eu sei perfeitamente qual a minha intenção quando estou a escrever: não sinto que esteja numa torre de controlo a ser superior a todos, a apontar as suas falhas, até porque faço muitas vezes o exercício de começar primeiro por mim, de me incluir nesse radar que deteta falhas – ele apita primeiro para mim. Parece-me que deixo isso bem claro, e bastantes vezes, o que acaba por anular a ideia de que “esta pessoa está ali num trono a olha para a plebe”. Não tenho é uma forma de saber se as pessoas que consomem o meu humor o fazem porque sentem isso.

Eu analiso muitas vezes os narcísicos, as pessoas que se autoelogiam muito, pois tenho um certo fascínio por elas. Na sua cabeça são as maiores, quando falam tecem as maiores loas sobre si. Acho-as muito engraçadas. E nestes casos, no que respeita ao sentimento de superioridade, elas é que estão lá em cima e eu estou cá em baixo, a tentar alertar que se calhar o que estão a dizer é um bocado exagerado, um bocado ridículo.

Todavia, uma coisa que me irrita é quando se brinca com alguém e surgem figuras que, depois de ouvirem uma rubrica ou lerem um texto, vão chatear essa pessoa, insultá-la e tentar gozar com ela de qualquer forma.

Trata-se de um fenómeno que, potenciado pelas redes sociais, se banalizou…

Eu preferia que as pessoas não o fizessem, porque isso já não está a gerar valor algum. Quero acreditar que a análise que faço – e as pessoas, obviamente, podem não gostar dela – gera algum valor, sob a forma de [mais e novas] piadas sobre aquele assunto. Se elas são ou não engraçadas, isso já é relativo.

Mas este movimento popular [de acosso ou insulto] também ocorre na minha direção. Os visados que não gostam do que disse ou escrevi têm os seus fãs…

E de repente surgem dois grupos, semelhantes a claques de futebol, a digladiar-se verbalmente entre si, via online.

Exatamente. Mas se for uma claque que até me diz coisas engraçadas, então ela está a gerar algo interessante. Se alguém me lança uma piada que pode parecer ligeiramente ofensiva, mas onde se nota que há ali um exercício criativo e com graça, isso para mim faz parte e vejo como uma picardia normal. Deixa é de fazer qualquer sentido quando o assunto se torna mais grave do que aquilo que realmente é, seja para que lado for –por acharem que aquilo que disse é gravíssimo ou, em sentido contrário, quando se julga que a pessoa de quem eu falei merece ser achincalhada. Isto é algo que acontece mais nas redes sociais, não fora delas.

Brincar com a seitana? “Há alguns anos, para que uma piada se tornasse numa polémica era preciso ser algo que mexesse com as nossa entranhas, agora basta ser sobre uma sandes feita de vegetais.”

O que está a contar enquadra-se num fenómeno que se tornou global nos últimos anos, com muitos profissionais do humor a receberem insultos virulentos e a sentirem que a sua liberdade de expressão (de fazer comédia) pode estar comprometida. Por outro lado, há quem também se sinta vítima de discriminação ou de bullying por parte de alguns humoristas, apelando a que existam limites: alguns, mais extremados, até pedem penalizações criminais. O que sucedeu, no seu entender, para se chegar a este tipo de polarização?

Não consigo ter uma resposta para isso. Sempre houve reações muito acaloradas a piadas e sempre houve temas considerados muito delicados ou ofensivos. Contudo, lembro-me que quando existiam grandes polémicas elas normalmente estavam associadas a temas fraturantes, como a religião, a doenças graves, à morte de alguém, a grandes desgraças como um acidente de avião – sendo que ao fim de um ou dois dias já existiam piadas relacionadas com o acidente.

No entanto, há um caso recente que parece ser paradigmático do que está agora a suceder. Apercebi-me que existia uma polémica no Twitter sobre uma piada feita por um humorista, pelo que fui procurar saber o que era, julgando que era algo mais hardcore, mais agressivo. Acabei espantada porque a piada, afinal, era sobre os Santos Populares em Lisboa terem à venda aquilo a que chamam de “seitana” [uma versão em seitan da bifana]. Estavam a insultar o humorista [o Guilherme Duarte] com o argumento de que ele não se preocupava com o planeta, e por aí fora… Há alguns anos, para que uma piada se tornasse numa polémica era preciso ser algo que mexesse com as nossa entranhas, agora basta ser sobre uma sandes feita de vegetais.

Isto é um bom exemplo de como as pessoas parecem ter a pele mais fina e se ofendem com cada vez mais facilidade. O maior problema é que além de se sentirem ofendidas – sendo que isso é um direito de cada um e eu também me posso sentir ofendida com algumas coisas – tentam dar mais um passo e impedir essa pessoa de trabalhar [de continuar a fazer comédia]. Acho perigoso, porque a censura é precisamente isso. Quando tendemos a censurar aquilo de que não gostamos acabamos por usar, sem ter noção disso, o mesmo raciocínio e os mesmos métodos dos ditadores. Criticamos e achamos horrível e condenável o tempo do lápis azul [os censores do Estado Novo usavam um lápis dessa cor no corte de textos, imagens e desenhos que se destinavam a ser publicados na imprensa]. E, de repente, sinto que a pouco e pouco nos estamos a aproximar disso. As pessoas estão a começar a ter um instinto ditatorial que eu acho esquisito, e muito dele em relação ao humor.

Já se está a equiparar uma piada a uma agressão verbal, a uma forma de bullying. São coisas muito diferentes e é perigoso juntá-las, até porque isso retira importância ao problema do verdadeiro bullying que existe. Eu tenho dois filhos e temo o bullying, sei muito bem o que ele é… aquela coisa repetida sobre o mais fraco, etc. Acho que o humor está longe de ser isso.

Sobre a Greta Thunberg, por exemplo, as pessoas podem pensar, pelo que escrevo, que a odeio ou algo do género. Nada disso, estou simplesmente a exagerar para que aquela história tenha graça.

Como se faz comédia nos dias de hoje sem cair na armadilha de um cinismo extremo? Não me estou a referir a uma conceção socrática do cinismo (impertinência, uma atitude mordaz e anticonvencional, as quais eram entendidas como virtudes), mas sim ao lado negativo do cinismo, pautado por uma descrença na sinceridade dos outros, nas suas motivações e ações.

Prefiro a versão socrática do cinismo, mas percebo que o cinismo possa ser visto pelo seu lado mais pejorativo. Eu não transporto essa visão negativa para a minha vida pessoal. Considero que sou cínica a escrever, mas isso é algo que acaba aí. Quando vou à papelaria não estou a pensar que as pessoas são todas terríveis. Mas claro que no meu trabalho [como guionista e comediante] exagero um pouco: é o velho truque de recorrer à caricatura.

Sobre a Greta Thunberg, por exemplo, as pessoas podem pensar, pelo que escrevo, que a odeio ou algo do género. Nada disso, estou simplesmente a exagerar, a fazer dela quase como uma vilã [em jeito de caricatura] apenas para que aquela história tenha graça. Só que depois, fora daquele período em que faço o meu trabalho, não fico a pensar no assunto e tampouco tenho essa visão cínica sobre ela. Consigo fazer essa separação, mas também não sei se um dia ficarei mesmo viciada no cinismo e não conseguirei parar. Por agora acho que ainda consigo ter um comportamento normal e uma visão otimista (quão baste) das coisas.

Essa separação também se aplica aos influencers que povoam as redes sociais? Faço a pergunta porque eles parecem ser um dos seus alvos preferidos?

Claro que sim. Aliás, em relação a eles prefiro ver o lado divertido ao lado preocupante. O lado preocupante também pode existir e podemos levar isto mais a sério e refletir sobre os tempos que vivemos, pois parece existir a ideia louca de que temos de mostrar tudo e já nada é privado. Creio que algumas pessoas perderam a noção dos limites. Cada pessoa define o seu, mas há algumas para quem o limite está completamente esbatido e filmam-se na casa de banho, no hospital com a perna partida, quando se divorciam… estão a filmar tudo. Têm uma necessidade constante de partilhar e mostrar tudo ao mundo, sejam coisas boas ou más.

Um sociólogo ou um psicólogo olha para este fenómeno e tem muitas coisas a dizer e a investigar sobre este tipo de comportamento humano. Para mim (e este é o meu lado cínico) a única coisa que interessa é aquilo que faz rir mais, não estou interessada em refletir sobre o estado da nação. Tento retirar o sumo cómico que existe nestas pessoas, mas não fico a pensar no futuro da humanidade através delas.

“Tudo o que era de ciências era uma dificuldade e desinteressante. Eu tentava, mas ao fim de pouco tempo já estava a pensar noutra coisa. Aproveitava o tempo das aulas, já que tinha de estar ali quieta durante uma hora, para ir escrevendo sobre outras coisas… ou passar recados aos meus amigos. Escrever divertia-me.”

A sinopse do livro Apontar é Feio refere, em jeito de brincadeira, que se trata de um caderno de apontamentos que se inspiraram numa estratégia sua para tomar notas na escola. Ou seja, “enquanto lá à frente o professor dava a matéria, ia escrevendo sobre assuntos irrelevantes”. Há algo de verdadeiro neste comentário e, indiretamente, está a quer dizer que o ensino escolar em Portugal é aborrecido e não puxa (explora) pela criatividade dos alunos? Foi o que lhe sucedeu?

Depende [risos]. Lembro-me que existiam uma ou duas disciplinas de que gostava muito, sobretudo quando os professores eram bons – sendo que a disciplina de português era uma delas. Mais tarde, na universidade, achei tudo desinteressante, mas existia a vantagem de que as aulas eram muito teóricas e não era obrigatório ir. Eu via qual era a bibliografia da disciplina e depois estudava tudo em casa para fazer as frequências, até porque a certa altura coincidiu com quando eu já estava a trabalhar: a certa altura já tinha mesmo muita pouca disponibilidade para ir às aulas. Ou seja, não tenho grandes recordações das aulas na faculdade, elas não foram muito marcantes.

Antes de ir para a universidade quais eram as disciplinas que não «puxavam» por si e como contornava a falta de vontade em estar sentado na sala de aula, a ouvir a matéria dada pelo professor? Aí já não dava para faltar.

Foi mais na fase do secundário, em que temos muitas cadeiras que inevitavelmente não nos interessam. Para mim, tudo o que era de ciências (físico-química ou matemática) era uma dificuldade e mesmo desinteressante. Eu tentava, mas ao fim de pouco tempo já estava a pensar noutra coisa. Todavia, aproveitava o tempo das aulas, já que tinha de estar ali quieta durante uma hora, para ir escrevendo sobre outras coisas… ou passar recados aos meus amigos. Escrever divertia-me.

Lembro-me de num exame de físico-química existir um daqueles gráficos em que se tem de relacionar o tempo e a distância a que um carro se desloca… o problema é que não percebia nada daquilo. Para aproveitar o tempo decidi criar uma história com aquele gráfico e pensei para mim própria: “vou dizer que dentro do carro vai o [João] Vale e Azevedo, que na altura era uma figura muito proeminente nas notícias [ex-presidente do Benfica, condenado em tribunal por vários crimes, incluindo desvio de dinheiro]”. Tenho ideia de o professor passar por mim, olhar para aquilo e pensar “porque é que esta pessoa está a escrever uma página inteira de uma coisa que devia ser de duas linhas?”.

Eram estes «tempos mortos» que eu aproveitava para ir escrevendo. Escrever é o exercício que realmente me diverte e, felizmente, neste momento consigo fazer disso uma profissão.

Conseguiu, pelo menos, que esse professor de físico-química lhe desse uma boa nota pelo esforço criativo?

Eu acho que não. Não me lembro da nota que tive, mas creio que foi uma daquelas positivas sofríveis. Talvez uma nota de 51%, sendo que quero acreditar que 1% foi pela composição. Aquilo foi um bónus para ele. Um professor de físico-química está sempre a ler coisas iguais, um pouco aborrecidas, e de repente tem à sua frente uma página A4 sobre uma perseguição da polícia ao Vale e Azevedo… Quero acreditar que aquilo o animou.

“Durante muito tempo nem sabia que a profissão de guionista existia. Quando era mais nova via os programas do Herman José na televisão e achava que ele, de livre e espontânea vontade, se lembrava e dizia aquelas coisas. Nunca pensei que já existia um texto escrito para aquilo.”

Desde os 21 anos que é guionista e escreve textos de humor. Começou muito jovem. Isso estava nos seus planos, foi um desejo que alimentou ou houve uma «conjunção de planetas» e a oportunidade surgiu inesperadamente?

Não planeei nada. Em miúda nem pensava nisso. Aliás, durante muito tempo nem sabia que a profissão de guionista existia. Quando era mais nova via os programas do Herman José na televisão e achava que ele, de livre e espontânea vontade, se lembrava e dizia aquelas coisas. Nunca pensei que já existia um texto escrito para aquilo.

Só mais tarde, quando percebi que existia a profissão de guionista, é que achei que pudesse ser interessante. Mas não sabia o que fazer para lá chegar, não existia um curso superior que proporcionasse essa saída, pelo que fui para Ciências da Comunicação [na Universidade NOVA de Lisboa], embora sem grande interesse pelo jornalismo: a minha esperança é que abrissem lá umas cadeiras que a faculdade prometia, como guionismo… mas depois nunca abriam. Passei o curso todo não muito interessada naquilo.

Acabei por fazer um curso mais prático na ReStart [escola cuja formação se centra nas artes criativas e nas novas tecnologias] que já era de escrita de um guião. Ora, uma das professoras era da Produções Fictícias e acabou por me convidar para ir lá estagiar, mas fui para lá sem uma função pré-determinada: era mais para ver o que depois poderia fazer.

E é quando surge a sua primeira grande oportunidade para escrever humor, para a Ana Bola e a Maria Rueff.

Foi o primeiro trabalho, mais a sério, que fiz. Na altura a Ana Bola e a Maria Rueff tinham uma rubrica na TSF, e pela primeira vez estava a escrever algo que era da minha responsabilidade.

Como já referi, tudo isto surgiu sem o ter planeado. Não digo que houve um alinhamento de planetas, porque sou pouco dada a astrologia e outros tipos de esoterismos.

Mas em astronomia, que é uma ciência exata, as conjunções de estrelas, planetas e luas encontram-se bem estudadas, elas obedecem às regras da física e não sucedem por acaso, embora sejam acontecimentos raros. No seu caso, estava mais a questionar se conseguiu estar no sítio certo no momento certo.

Assim visto, houve, sim, esse lado de coincidência, de estar no sítio certo na altura certa e ter ido parar à Produções Fictícias. Estando lá passei a conviver com muitas outras pessoas que eram guionistas com experiência, e foi aí, já a trabalhar, que aprendi mais. Depois foi o caso de umas coisas sucederem às outras. Eu nunca tive tempo para fazer grandes planos… fui deixando andar.

“É mais fácil escrever para mim e por todas as razões. […] Eu sou a responsável. Outra pessoa, provavelmente, não iria querer dizer muitas das coisas que eu digo, o que me obrigaria a fazer alterações.”

Quando chegou aquele momento em que disse “estou farta de escrever humor para os outros, quero dar a cara pelo que faço e sair do anonimato?”

Esse momento nunca aconteceu. Calhou acontecer essa transição, mas nunca houve um momento “estou farta”, nunca senti isso e continuo a não sentir. Não foi um lado meu com o qual tivesse rompido, profissionalmente. O momento em que comecei a escrever humor para depois o dizer foi no Canal Q [que pertence à Produções Fictícias], no programa Altos & Baixos [estreou em 2012 e durou três anos, tendo feito dupla com Daniel Leitão, o seu atual cônjuge e com quem teve dois filhos]. Eu e o Daniel eramos os guionistas de nós próprios, até porque não existia orçamento para mais: faltava o dinheiro para ter guionistas e apresentadores. Tínhamos de fazer tudo e isso acabou por ser uma boa escola, pois dava para experimentar e fomos aprendendo enquanto fazíamos o programa. Mais tarde, na rádio, quando fui para a Antena 3 [igualmente em 2012], também escrevia as minhas coisas.

Hoje em dia, o meu problema é o não ter tempo para outros projetos, enquanto guionista. Não tenho problemas em escrever para outras pessoas, desde que me identifique com o estilo e ache que faça sentido.

Antiga foto promocional do programa Altos & Baixos, protagonizado pela dupla Joana Marques e Daniel Leitão.

No entanto, conseguiu arranjar tempo para fazer parte do grupo de autores do programa Isto é Gozar Com Quem Trabalha, do Ricardo Araújo Pereira.

O Ricardo Araújo Pereira também é guionista do programa e escreve connosco. Aliás, ele prefere assumir-se em primeiro lugar como guionista, embora eu ache que ele consegue ser um excelente ator. No total somos oito a escrever. Daí que, e ao contrário do que fazia no início da minha carreira, não esteja neste momento a escrever por encomenda para alguém.

Qual a grande vantagem de se apresentar aquilo que se escreve, sem intermediários?

Admito que é mais fácil escrever para mim e por todas as razões. Na rádio, como sou eu que vou ler o texto, ao escrever não tenho de colocar indicações de como é suposto ser a apresentação. Poupa-se no intermediário e acredito que ajuda para o resultado final ser a própria pessoa a escrever para si.

Além de que não há incómodos sobre aquilo que eu escrevo. Eu sou a responsável. Outra pessoa, provavelmente, não iria querer dizer muitas das coisas que eu digo, o que me obrigaria a fazer alterações.

“A minha sorte é ainda ninguém ter tido paciência para aquilo que faço. […] É algo que leva tempo, implica que uma pessoa abdique de duas, três ou quatro horas da sua vida para ver coisas que parecem ser muito desinteressantes: sobretudo quando se vai para aquelas matérias mais irrelevantes, mas pelas quais eu tanto gosto de navegar.”

Quase todos os textos humorísticos que escreve e narra durante o Extremamente Desagradável têm como referência acontecimentos que fazem notícia no dia-a-dia, dos mais impactantes aos mais corriqueiros. Tendo em conta que vivemos numa época em que o mundo real muitas vezes se assemelha a uma enorme e estranha paródia, com um catálogo de episódios, incidentes e personagens tão caricaturais e burlescas que parecem superar a ficção, não paira a ideia de que destilar humor a partir de tudo isto até é relativamente fácil?

Sim, também me parece que é relativamente fácil. A minha sorte é ainda ninguém ter tido paciência para aquilo que faço, pois obriga a algum trabalho. É que apesar dessa facilidade, porque de facto existe no mundo real muita matéria que pode ser usada, não deixa de ser algo que leva tempo, pois implica que uma pessoa abdique de duas, três ou quatro horas da sua vida para ver coisas que, à partida, parecem ser muito desinteressantes: sobretudo quando se vai para aquelas matérias mais irrelevantes, mas pelas quais eu tanto gosto de navegar.

Há tanta coisa que só por si já é engraçada, mas depois é preciso comentar aquilo e tentar adicionar qualquer coisa mais, porque senão bastaria ver ou ler o que se passou e a pessoa só teria de se rir disso. Eu tento acrescentar algo que seja tipicamente meu, daí que goste quando alguém me sugere um tema (e recebo muitas sugestões) e em seguida essa mesma pessoa me diz que gostava de saber o que a Joana (eu) poderá dizer sobre ele. Ou seja, há algum interesse por parte do público em escutar a minha análise sobre determinado assunto. E enquanto esse interesse existir eu cá me safo.

No entanto, às vezes tenho mesmo de comentar um assunto do momento e que já todos viram. Nesses casos, o desafio, para mim, é dizer alguma coisa sobre aquilo que ainda ninguém disse.

Ou seja, face a tanta concorrência tem mesmo de fazer um trabalho humorístico que não pareça atabalhoado e que não soe a repetitivo. Só que isso é algo que nem todos os comediantes conseguem…

Creio que tem um bocadinho a ver com o olhar, com a capacidade de se ter um olhar treinado. Um olhar que seja capaz de ir à procura do ridículo ou do que correu mal, e isso é algo que – felizmente para mim – muitos não têm. Por exemplo, muita gente vê uma mesma entrevista e nem repara que certa pessoa está sempre a repetir a mesma frase. Há pequenas coisas que escapam, mas quando se consegue encontrá-las e juntá-las acabam por resultar em algo que tem graça.

“Não quero ver aquilo que faço só como um trabalho, gostaria de manter aquele lado meio infantil de «olhem, estou a divertir-me e no final do mês ainda me pagam». É importante existir este lado lúdico quando se faz humor.”

Tem uma agenda profissional bastante preenchida. Desde 2019 que integra a equipa de As Três da Manhã (Rádio Renascença), onde tem a famosa rúbrica Extremamente Desagradável, é uma das guionistas do Isto é Gozar com Quem Trabalha, escreve todas as semanas para a revista Visão e agora é júri do programa Ídolos? Não tem receio de que tudo isto a desgaste e lhe roube tempo para conseguir imaginar outras ideias, outras formas de criar humor, sem cair na armadilha de repetir as mesmas fórmulas e arquétipos?

Tenho consciência disso. É por isso que vou passar a fazer algumas pausas, para gerir melhor tudo isto. A minha dificuldade é que aquilo que estou agora a fazer são coisas que gosto mesmo. Pelo meio vão aparecendo desafios aos quais não quero responder com um “não” e vou acumulando. Por exemplo, quando o programa do Ricardo Araújo Pereira passou da TVI para a SIC [na TVI tinha o nome de Gente Que Não Sabe Estar] aceitei o convite… e acredito que cem por cento das pessoas que estivessem no meu lugar também o aceitariam.

Mas neste mês de janeiro estive um mês fora da rádio e a minha rubrica esteve parada nesse tempo. No verão voltará a estar parada dois meses. O objetivo é tentar fazer as coisas que gosto e sentir que são úteis – no sentido de as pessoas gostarem delas –, mas fazê-las durante períodos mais curtos, para não chegar a um grau de loucura em já não se acha piada a nada. No final de dezembro do ano passado, com tanta coisa que tinha, fiquei tão cansada ao ponto de nada parecer ter graça. Só que eu não quero ver aquilo que faço só como um trabalho, gostaria de manter aquele lado meio infantil de “olhem, estou a divertir-me e no final do mês ainda me pagam”. É importante existir este lado lúdico quando se faz humor, senão o resultado é um trabalho tipo o de escritório, aborrecido. Ir fazendo coisas diferentes também é importante, para não cair na armadilha da rotina e do repetitivo, o que talvez explique porque acabo por aceitar outros projetos. O problema é quando tudo acontece ao mesmo tempo…

”Surgem seis ou sete textos no livro sobre a pandemia. […] Há um sobre o período em que festejámos loucamente o poder voltar a uma esplanada: o que é meio estranho, porque estávamos tão contentes por uma coisa que sempre foi tão banal, como se aquilo fosse algo espetacular.”

Num dos textos de Apontar é Feio escreveu isto, sobre a pandemia. “Até aquelas pessoas que nunca programam nada, que se gabam de «viver ao sabor do momento», gostam de saber quando é que isto acaba. Porque o sabor deste momento não é grande coisa, sabe um bocado a ranço – como aquela manteiga que tenho no frigorífico. […] A única certeza que temos é que não é o fim. […] Não sei se estou a participar num daqueles calhamaços do José Rodrigues dos Santos ou num volume de Apontamentos Europa-América que despacha Os Maias em quarenta páginas.” Basicamente, está a descrever a perda da noção do tempo e o sentimento de incerteza em relação ao futuro que muitos experienciaram durante confinamento. Como se consegue escrever com humor sobre uma pandemia que ainda se arrasta no tempo e que nos deixou com os nervos à flor da pele?

Esse texto foi escrito durante o tempo em que estávamos semanas seguidas fechados em casa, no meu caso a fazer rádio à distância e a escrever uma crónica por semana. Foi um exercício um pouco difícil porque não existia grande assunto [nos média], era sempre o mesmo. Surgem seis ou sete textos no livro sobre a pandemia, embora em vertentes diferentes. Esse texto é sobre o perdermos a noção do tempo, mas há outro sobre o período em que festejámos loucamente o poder voltar a uma esplanada: o que é meio estranho, porque estávamos tão contentes por uma coisa que sempre foi tão banal, como se aquilo fosse algo espetacular. Escrevi mais um sobre aquela altura em que nos disseram que era preciso salvar o Natal, e que foi uma coisa um bocadinho incompreensível, porque estavam a dizer-nos que era preciso fazer um grande esforço para salvar a época natalícia, mas depois podíamos infetarmo-nos todos uns aos outros. Ou ainda a final da Liga dos Campeões, que veio para a Lisboa como um prémio para os profissionais de saúde. Foi todo um conjunto de incoerências que foram aparecendo. A pandemia, portanto, ofereceu muitos temas [com o qual se podia fazer comédia], incluindo os negacionistas que surgiram em grande força e a famosa venda ao postigo.

Nas primeiras semanas, quando os números cresceram e só se falava em pandemia e mais pandemia, perguntávamos na rádio sobre como é que faríamos para ter um assunto com o qual fazer humor, mas acabámos por conseguir dar a volta. Em Portugal acabaram por surgir muitas personagens novas e interessantes, do ponto de vista humorístico, que de repente se transformaram em superestrelas mediáticas, como o Pedro Simas. Os virologistas, de repente, tornaram-se famosos, agora são os comentadores da guerra na Ucrânia. Além do mais, tivemos as manifestações dos antivacinas, surgiram grupos como os Jornalistas pela Verdade e os Médicos pela Verdade, pelo que acabou por se fazer algo divertido graças a eles.

Parece que estamos a falar de algo que já passou e faz parte do passado, mas a 17 de fevereiro deste ano a Direcção-Geral da Saúde registou 51 falecimentos por COVID-19, e a 1 de junho foram assinaladas 47 mortes pelo mesmo motivo. Fica-se com a ideia de que se quer esquecer o assunto e seguir em frente.

É verdade. Mas também porque deixou de ser um assunto tão interessante do ponto de vista jornalístico [o tom de voz usado por Joana Marques é de sarcasmo], além de que as pessoas ficaram cansadas do tema. A pandemia existe, com menor ou maior força, mas não a sentimos tanto porque não há tantas medidas ou proibições como antes.

Em relação ao meu livro, e apesar de alguns dos meus textos sobre a pandemia já datarem de há algum tempo, senti que fazia sentido que surgissem, porque desta forma fica o registo humorístico sobre a pandemia, sem ser o registo sério que sobre ele foi e será feito. Acho que isso também é importante.