A 16 de novembro, Dia Internacional da Tolerância, assinalam-se os 25 anos dos Princípios sobre Tolerância adotados pelos Estados-membros da Unesco. O mundo mudou muito. As causas são as mesmas ou diferem nestes 25 anos?

A tolerância é uma das principais conquistas que o ser humano pode e deve realizar no âmbito individual e pela sociedade. Nesse aspeto não há muitas diferenças com o passado, o Homem não mudou muito, mas as condições mudaram. O mundo tornou-se mais “pequeno”, as relações entre territórios passaram a ser muito mais intensas e assiste-se a um processo de globalização.

À medida dos interesses dos Estados e de algumas organizações poderosas, também assistimos a fenómenos de radicalização, por vezes com fundamentos pseudorreligiosos que escondem outras motivações mais grosseiras e que não consideram princípios essenciais à boa convivência humana, democrática, livre e tolerante.

Nos Princípios, os países signatários comprometem-se a defender os direitos fundamentais do homem, a dignidade e o valor da pessoa e a praticar a tolerância para a boa convivência. Com o mundo a polarizar-se (ou se é de A ou de B, não havendo margem para o intermédio) o que está a falhar?

A polarização deve-se essencialmente ao desconhecimento do outro. Não estar voltado para uma compreensão mundividente e por estar excessivamente concentrado numa visão sobre o “eu” ou sobre o “meu” grupo.

Na base desta polarização está a ignorância que gera o medo e os ódios. As sociedades constituídas por pessoas e grupos que têm esta perspetiva tendem a refletir isso mesmo, resultando numa tendência para os nacionalismos exacerbados, para entendimentos “à medida” do que é a religião; de criação de realidades paralelas e intrinsecamente falsas, que se sobrepõem à capacidade de análise crítica, à capacidade de negociação e de entendimento, ou mesmo à simples capacidade de compreensão.

Sérgio Gorjão
Sérgio Gorjão, secretário executivo da Comissão Nacional da UNESCO

E como se explica que num mundo globalizado e com acesso à informação como nunca tinha acontecido até agora cresça a intolerância perante a diferença? Não era suposto a sociedade ser mais culta e ponderada?

De facto, é estranho que hoje, mais que nunca, exista acesso a informação sem que esta se traduza em conhecimento. Isto decorre do facto de muita da informação ser de fraca qualidade, acolhida de forma unívoca, acrítica e facilmente circulante nas redes sociais virtuais, muito superficial e tendencialmente manipuladora; e porque as pessoas estão a perder ferramentas de análise, deixando, em muitos casos, que sejam algoritmos informáticos a decidir… daí que a ponderação seja menor.

Se compararmos o lapso entre a informação e a “sabedoria”, aí a situação ainda é mais crítica porque para construir sabedoria é preciso experiência, realização interior, introspeção, humildade… uma capacidade de montar, desmontar e remontar a “realidade” de forma holística, criativa e com um sentido de continuidade entre o passado, o presente e o futuro. Esta perspetiva tridimensional da nossa visão está bastante comprometida no presente.

A banalização da informação (no extremo a banalização de tudo, até da violência e do ódio) tem vindo a roubar tempo para um pensamento mais profundo, para uma tomada de consciência e tem contribuído para cimentar crenças em “princípios” erróneos (que emergem sem a base que deveria ser o conhecimento, a tolerância, a liberdade, a equidade, a igualdade de oportunidades, etc.).

Quais são os maiores motores da intolerância? Raça, religião, nacionalismo, homofobia..?

Sem dúvida que o maior motor da intolerância é a ignorância… o não estar consciente ou imbuído de um espírito de fraternidade, de uma compreensão profunda de que o “outro” é exatamente igual a mim… o não perceber o nosso lugar na natureza.

Da ignorância ao medo e ao ódio são passos muito curtos. É da ignorância espessa (o não entender de que “Eu” não sou mais nem menos que os outros e de que tudo é interdependente) que nascem as fobias, e que muitas vezes, em vez de as tratarmos, acabamos por as fazer crescer devido à importância que lhe damos. Aqui serve bem a alegoria do D. Quixote lutando contra os moinhos…

A raça, a religião, os nacionalismos, são apenas veículos para exprimir esta insegurança, este falso sentimento de diferença e este desconhecimento profundo.

«Hoje, mais que nunca, exista acesso a informação sem que esta se traduza em conhecimento. Isto decorre do facto de muita da informação ser de fraca qualidade»

A Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância do Conselho da Europa avisa, no seu último relatório anual, que o racismo, a discriminação racial e a intolerância estão a aumentar. Os políticos parecem ignorar este movimento na sociedade. Não deveria haver mais firmeza para combater os discursos de ódio?

Tem havido e terá se der aprofundado essa determinação e compromisso claro. Há que saber controlar bem esta situação numa perspetiva social e de longo prazo. Isso começa nas escolas, em casa e na sociedade. Deve, também, haver políticas positivas que estimulem o debate sobre a tolerância, mas também poderá haver necessidade de medidas de contenção de epifenómenos, sem que se caia no extremo da censura ou no cercear das liberdades e garantias básicas dos cidadãos.

Há pouco tempo duas universidades e várias instituições de ensino secundário em Lisboa e Loures foram vandalizadas com dizeres racistas e xenófobos. É apenas um exemplo. Portugal está a tornar-se intolerante e racista ou apenas antes tal não era manifestado?

Para responder a esta pergunta haverá que fazer mais estudos e em vários ângulos de abordagem. Pode dizer-se que agora é mais fácil conhecer estes fenómenos e a sociedade está mais desperta para esta realidade. O facto desses “escritos” serem feitos em estabelecimentos de ensino prova bem que é aí que terá de começar o processo inverso. É uma relação de causa-efeito, mas o que é esperado da sociedade (incluindo das escolas) é que reaja positivamente, ou seja, que se torne consciente e atenta a esta situação.

Mas recentemente vimos uma situação caricata em que um grupo alargado de pessoas não queria aulas de cidadania nas escolas, onde se ensina precisamente a ser bons cidadãos, a ser tolerantes. Como se explica uma coisas destas?

Opinião muito pessoal: mais uma vez esta situação ocorre por puro desconhecimento…. É uma espécie de manifesto anti-qualquer-coisa. Os argumentos não colhem e a meu ver nada obsta criação deste novo conteúdo escolar. Aliás, nada deve obstar às aulas de história, de filosofia, de direito, de saúde, etc… A aula de cidadania vem nessa continuidade e é essencial à consciencialização de que fazemos parte de um todo. Temos direitos, deveres, liberdades e garantias consignados em princípios básicos e constitucionais. Não somos uma democracia à la carte. De forma consciente todos temos possibilidade de pensar justificadamente de uma forma, ou de outra, mas terá de haver um campo comum. Sinceramente só percebo o receio destas (poucas pessoas) pelo seu desconhecimento ou desconforto face à abordagem de temas supostamente “sensíveis”. O que será útil é podermos ter uma ideia clara e flexível de como se compõe a sociedade, logo, recorrendo a um ditado popular “cego não é aquele que não vê, mas aquele que não quer ver”.

Os partidos nacionalistas de extrema direita estão a ganhar palco na Europa. Isto pode traduzir-se num retrocesso na tolerância ao diferente? Que perigos mais estão à espreita?

É extremamente preocupante que um número significativo da população (nomeadamente dos jovens em idade escolar) não conheça História. A História da humanidade está cheia de eventos violentos, de regimes opressivos, de escravatura, etc… Chegamos ao século XX, muita coisa mudou. A diferença da sociedade de 1901 para a do ano 2000 é abissal. Pelo meio ficaram guerras a uma escala nunca antes vista, mas também é neste momento que se consubstanciam instituições internacionais de controlo e de compromisso entre os Estados, promovendo a paz, o bem-estar, a saúde, o conhecimento e a educação, numa perspetiva de diálogo intercultural. É neste campo que teremos de estar inequivocamente.

É natural que haja ciclicidades, mas não será natural não termos capacidade de reagir face a ameaças já conhecidas na nossa história.

Dia Internacional da Tolerância: «Na base da polarização está a ignorância que gera o medo e o ódio»

Que papel as redes sociais estão a ter e o que estão a provocar na sociedade particularmente no que toca à tolerância/intolerância das pessoas?

As redes sociais podem ser bem usadas, ou mal usadas. O problema não são os mecanismos digitais de comunicação, mas sim a forma como os pomos à nossa disposição, ou a forma como permitimos que isso nos afete. Se dizemos que preservamos a nossa liberdade, então porque é que permitimos que as redes digitais nos controlem?

As redes sociais digitais podem ser um veículo de transmissão de ideias em ambos os sentidos, porém, há que cuidar que o tempo é limitado, por vezes até muito escasso, e temos de ter tempo para pensar no que realmente importa…

As pessoas têm vivido apáticas e afastadas de causas. É hora de se afirmarem e tomarem uma posição, ou devem ignorar e não alimentar questões, por exemplo, nas redes sociais?

É sempre hora de tomar consciência e de assumirem compromissos. Não sei se a aparente apatia de hoje é diferente da apatia de algumas décadas em que a maioria pensava que as coisas da política eram “lá para eles”… Depois há períodos que são mais mobilizadores, mas também têm alguma euforia. O 25 de Abril em 1974 foi um desses momentos históricos. A maioria da população não se envolvia em discussões políticas, mas esse foi um momento de grande esperança que tocava a todos, simbolizava, acima de tudo, o fim de uma guerra fratricida e o alcançar de uma certa libertação. Quanto ao alimentar de questões nas redes digitais… vale o que vale, e muitas vezes vale pouco… A maior parte não passam de reclamadores ociosos de sofá. A prática faz diferença… o serviço altruístico de causas é, felizmente, uma realidade de muitos e é isso que vale a pena realçar.

Nunca o Dia Internacional da Tolerância fez tanto sentido. O que é necessário transmitir às pessoas?

Que acreditem no seu potencial e nos outros, que comecem esse processo de transformação em si mesmos e nas suas casas… estarem atentos e verificar se há incongruências entre aquilo em que dizem acreditar e as sua ações e pensamentos. Ter a humildade de corrigir erros em nós e também ter coragem de reconhecer esses erros na sociedade. Contribuir e exigir medidas para uma sociedade melhor, mais justa, mais livre e mais consciente. Investir no “pensar” desapegadamente; não permitir que as chamadas “redes sociais digitais” nos dominem… desenvolver conhecimento e espírito crítico; desenvolver um sentimento de solidariedade e de respeito pelo outro.

“If you tolerate this then your children will be next” (“se tolerares isto os teus filhos serão os próximos”) é o refrão de uma das mais famosas canções da banda rock galesa Manic Street Preachers. Vale a pena evocar esta música para fazer despertar a consciência de que todos somos iguais.