Os números mais recentes indicam meio milhão de pessoas em fuga e mais de duas mil mortes às mãos dos terroristas que desde 2017 aterrorizam a província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. A motivação dos terroristas não é clara, mas existem indicações de que o grupo é composto por jovens locais revoltados com o Governo, não se compreendendo, no entanto, porque é que atacam a população local. A possível correlação com o nacimento de um grande projeto de exploração de gás na região também não está esclarecida. O certo é que o terror está a alastrar-se, com decapitações, morte indiscriminada de civis e destruição de comunidades, num conflito cada vez mais difícil de conter. O apelo por ajuda internacional é urgente, uma vez que é um país e toda uma região circundante que estão em risco, até porque os terroristas já iniciaram também ataques na Tanzânia com o objetivo de instalar um Estado Islâmico na região. Neste pedaço de história, o jovem Issoc conta-nos a sua história de fuga surpreendente. Algumas descrições podem chocar as pessoas mais sensíveis.

Quando aconteceu e onde estavas quando fugiste dos ataques dos terroristas?

Eu morava na província de Cabo Delgado, em Quissanga, e estudava no ensino público, na 10ªclasse. Eu morava na parte de cima de Quissanga e quando os malfeitores entraram começaram logo a disparar. Ali, as pessoas esquecem o irmão, a filha, a mãe e começam a correr, os idosos que não conseguem fugir morrem ali mesmo. Quase me apanharam naquele dia 24 de maio de 2019, mas eu continuei sempre a correr.

Foi um ataque surpresa?

Sim, foi de repente. Não esperávamos que eles entrassem em Quissanga. E quando uma pessoa começa a fugir nem sabe para onde está a ir para se salvar. A pessoa não consegue ajudar ninguém, deixa a mãe, o pai, os idosos que não aguentam fugir e morrem ali mesmo. Foi assim mesmo, cada um tentava salvar a sua vida.

O que conseguiste perceber da situação enquanto fugias?

Eu vi eles matarem pessoas e levarem duas irmãs minhas, uma delas estava grávida, e até hoje não sabemos do paradeiro delas. Depois, quando estava a fugir, cruzei-me com uma mulher com uma criança de nove meses. Ela não conseguia segurar na criança e então como senti pena da senhora comecei a ajudá-las. A senhora não sabia do paradeiro do marido, mas começámos a fugir e fomos para a mata. Fugimos muito e depois tentámos dormir na mata, mas não conseguíamos e dormíamos em escala.

Cabo Delgado: «Eu vi os terroristas matarem pessoas e levarem as minhas duas irmãs»
Foto tirada por Issoc durante a sua fuga. Os terroristas queimam os transportes para a população não fugir.

Chegaste a ver os terroristas e a vê-los matarem pessoas?

Sim. Na verdade, isso deixou-me muito pálido. Vi-os matarem um vizinho meu, a cortarem-no em pedaços. Aquilo deixou-me muito esmagado. Vi-os a matarem pessoas, a destruirem as nossas casas, a fazerem muitas maldades.

Descreve-nos lá o que é fugir de terroristas para salvar a vida. O que sentiste?

Senti muito medo. E naquele momento quase não sentia pena de ninguém porque eu queria correr. Agora até me sinto muito mal por não ter ajudado aquelas pessoas que estavam a precisar, mas tenho de levar em consideração que naquele momento eu estava a tentar salvar a minha vida. Senti muito medo, muito medo.

Conseguiste perceber quantos terroristas estavam a fazer o ataque?

Eram cerca de 25 terroristas.

Os terroristas costumam recrutar jovens. Alguns amigos ou conhecidos teus se juntaram a eles?

Amigos meus não, mas conheço alguns jovens que se juntaram porque eles oferecem uma quantia em dinheiro e como os jovens não têm emprego alguns ficam felizes com aquele valor. Conheço quatro jovens que se juntaram nesse momento.

Eles juntam-se por dinheiro, mas têm de matar conhecidos, os vizinhos…

Eu não sei bem, mas eles têm coragem de queimar as próprias casas onde viviam por causa de dinheiro. Você ver matar um vizinho por um conhecido com quem conviveu… Eu sentia pena.

Eles cobrem-se para não serem reconhecidos, mas todos tinham os olhos vermelhos, parece que é alguma droga que eles ingerem para não sentirem piedade.

Conhecias esses quatro jovens antes de se juntarem aos terroristas. Eles eram rapazes normais ou já manifestavam alguma maldade?

Não, eram rapazes envolvidos com drogas e álcool. Mas um deles não estava e nunca pensei que fizesse isso.

O que eles fazem?

Eles cortam a pessoa pedaço a pedaço. Está a ver como uma pessoa corta a carne? É o que eles fazem com as pessoas. Não têm piedade, não sei porquê. Não sei se fazem por vontade ou por dinheiro.

Quando fugiste viste 25 terroristas. Eles pareciam normais ou estar sob o efeito de alguma substância?

Os olhos deles eram vermelhos, parecia que tinham ingerido alguma coisa. Eles cobrem-se para não serem reconhecidos, mas todos tinham os olhos vermelhos, parece que é alguma droga que eles ingerem para não sentirem piedade.

Quando fugiste de forma repentina o que conseguiste levar contigo? Carteira, telemóvel…?

A única coisa que consegui levar foi apenas a roupa que tinha. Até agora onde estou não tenho documentos. Mesmo querendo frequentar os estudos não tenho como começar. Não tenho rendimento, não tenho como começar os meus estudos. E o único sonho que eu tinha era acabar os meus estudos, tentar ter um emprego e ajudar a minha família. Na minha família não tenho nenhuma pessoa que trabalha no Estado. Todos estamos a tentar sobreviver.

Quando os terroristas chegaram até conseguires sair da tua cidade quanto tempo foi?

Eles entraram às 16h30 de sábado. E nós andámos um dia na mata e dormimos lá um dia. Imagina andar na mata sem ter o que comer, o que beber e sem ter vontade de nada. A sentir tiros, balas, a bombardear as nossas casas. Quando cheguei aqui na cidade de Pemba não conseguia dormir. Eu saí de Quissanga a 24 de maio e cheguei aqui a Pemba a 26 de maio. Cheguei aqui à cidade através daquela senhora que eu ajudei com o filho, porque eu não tinha dinheiro no bolso para chegar aqui.

Cabo Delgado: «É uma tragédia humanitária. São crianças, mães, jovens que veem os seus familiares serem degolados»
Campo de deslocados créditos: LUSA

E tens contacto com essa senhora?

Tenho, sim. Eu agradeço àquela senhora por me ter ajudado. Os malfeitores, a única coisa que pensam é matar-te.

Quanto tempo andaram fugidos na mata, tu, a senhora e a criança?

Andámos um dia a fugir na mata e chegámos a uma aldeia chamada Namanje, mas não havia ninguém nessa aldeia e voltámos e dormimos na mata. Andámos cerca de 200 km na mata.

E o que é que comeram e beberam durante essa fuga?

Não comemos nada, não sentíamos fome, porque quando uma pessoa tenta tirar a tua vida não se sente fome, a única intenção ali é só mesmo correr.

Além das tuas duas irmãs quem é que eles levaram mais?

Eles levaram muitas pessoas. Levaram jovens também para os obrigar a juntarem-se a eles e praticarem os ataques. Levaram as minhas irmãs e até agora não sabemos nada delas, nem do parto da criança nem nada.

Sabes porque é que eles fazem essas atrocidades? Tens alguma explicação?

Não sei exatamente porque é que eles fazem isso. E não querendo especificar, quando os terroristas entram numa aldeia e fazem o ataque as forças de segurança não chegam. Só quando os terroristas saem é que as forças de segurança chegam. Também acho isso suspeito.

E a tua restante família como está?

Nós erámos dez irmãos na família. Levaram estas duas irmãs, o meu pai está numa ilha e a minha mãe morreu de ataque cardíaco dois dias antes dos ataques, porque já havia ameaças e ela não aguentou. Nós fugíamos e depois voltávamos para Quissanga e a minha mãe não aguentou todo este percurso. Enterrámos a minha mãe numa quinta-feira e no sábado à tarde eles entraram mesmo em Quissanga. Eu fugi completamente sozinho, mas aqui na cidade, em Pemba, agora estamos sete refugiados e um irmão está em Niassa. Eu costumo falar com a minha família só por telefone, porque custa muito dinheiro visitar a família. A cidade de Pemba é muito grande.

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Tens medo de não se ver um fim à vista neste conflito?

Tenho muito medo, muito medo. Já estamos há quatro anos nessa situação. A vida aqui na cidade é muito difícil. Tem muita população. Temos de nos desenrascar para comer, é muito difícil conseguir um emprego ou alguma coisa que traga rendimento.

Consegues esquecer as imagens que viste ou elas estão sempre presentes?

Nas primeiras semanas não conseguia dormir, tinha muitas lembranças e pesadelos com as pessoas que vi mortas. Às vezes sonho ou recordo aqueles momentos, às vezes consigo dormir. A vida está a andar pouco a pouco.

E agora em Pemba o que fazes, estás a tentar estudar ou trabalhar?

Estou a tentar trabalhar um pouco, fazer trabalho de jardinagem, para arranjar dinheiro e arrendar uma casa. A comida é-me oferecida num apoio e estou a dormir numa palhota. Mas a vida está a começar a andar. Havia um projeto que estava a procurar jovens deslocados para fazerem uma formação para esclarecer o que se passa em Cabo Delgado. Fiz uma formação de dois meses que me encorajou a ter vontade de voltar para casa. Eu agora vou exercer a função de ativista, para tentar ajudar aqueles irmãos que estão a vir de outras aldeias que foram alvo desses ataques.

E pensas voltar a Quissanga?

Eu penso, sim, porque é a terra que me viu nascer, crescer. Conheço toda a história de lá, não é possível esquecer.

O que esperas do futuro agora?

A única coisa que eu espero na vida é poder continuar os meus estudos. Só eles me podem ajudar a ter um futuro. A única coisa que eu gosto é de estudar, mas aqui na cidade não tenho como estudar. Quero estudar e tentar abrir um pequeno negócio para sustentar a minha família. E espero muito que a guerra em Cabo Delgado acabe. Eu quero ser professor para tentar ajudar os jovens, tentar transmitir aos jovens o que eu vivi, porque a vida é uma oferta que Deus dá e tira. Se você não sabe cuidar daquele presente que Deus te dá a vida também não vai ser boa para ti. Eu gosto muito de estudar e gostaria mesmo de ser professor.