“Ié, ié, ié, a Bica é que é” já se ouve ao chegar a um dos bairros mais centrais da capital, “Campanhã é linda” ouve-se numa freguesia a norte, mas o grito ainda há de chegar à baixa da Invicta quando as rusgas desfilarem da Batalha aos Aliados. Por Lisboa, já se marchou no Pavilhão Atlântico e já se entoa o “aperta com ela” na apertada Vila Berta. No Porto, ainda se prepara o Baile de Verão e as rusgas têm desfile marcado para o dia 2 de julho. Até lá, ainda há um mês de festa para aproveitar.

Tanto no norte como no sul, mais do que as diferenças, as semelhanças são evidentes: os dois anos sem festas populares deixaram saudades e uma vontade que finalmente sai à rua sem se avistar contenção. “O Porto não é o Porto sem o São João”, afirma Abília Campos, vendedora de manjericos, alho-porro e martelinhos na Praça da República, a norte, claro. Bruno Vidal, ensaiador da Marcha do Alto do Pina, espelha a mesma ideia a sul: “O que é Lisboa sem as marchas e sem o Santo António?”. O diretor artístico da marcha vencedora de 2019 – o último ano em que houve competição – conta que “houve pessoas que participavam há 25 anos interruptamente a ligarem a chorar com pena de não haver marchas”.

Alto do Pina
créditos: PATRÍCIA DE MELO MOREIRA / AFP

Também Teresa Guilherme, a conhecida apresentadora de televisão, dança sincronizada com os 50 marchantes e afirma sobre os anos em que não foi ensaiar: “Fez-me muita falta este convívio, foi das coisas que me fez mais falta. No ano passado, ainda foi pior porque estava na expectativa que tudo corresse bem… este ano temos de aproveitar!”, conta com entusiasmo a madrinha da marcha do Alto do Pina, campeã em 2015 e 2019.

Teresa treina arduamente com todos os marchantes para que tudo saia na perfeição. Quem elogia o esforço e participação assídua dos padrinhos é o ensaiador em voz bem alta, num Complexo Desportivo do Casal Vistoso, que aplaude efusivamente o ensaio geral da marcha do bairro. A apresentadora de televisão é acompanhada por Madjer, a estrela do futebol de praia, que prontamente afirma: “Isto não é a minha praia, mas fazem-me sentir como se estivesse na praia, os ensaios são espetaculares e a forma como nos acolhem e trabalham connosco fazem-nos dar o nosso máximo”. Tal como no futebol, o pavilhão cheio ecoava, vestido de verde e amarelo, a torcer pelas suas cores e a aplaudir pelos protagonistas.

As letras e as músicas que ainda vão desfilar na Avenida da Liberdade, na noite de 12 de junho, véspera de Santo António, contam também a história dos últimos dois anos. Bruno Vidal diz que nem poderia ser de outra forma: “Não poderíamos passar por cima de uma pandemia, da dor e sofrimento de quem perdeu entes queridos”. Mas estes são dias de festa e que servem também para esquecer a falta de celebrações.

Alto do Pina
Teresa Guilherme e Madjer ensaiam com a Marcha do Alto do Pina no Complexo Desportivo do Casal Vistoso D.R.

Bruno garante, com um espírito de treinador de futebol e de quem torce pela equipa, que vão ser bicampeões e as bancadas rejubilam. “Já se nota o fervor nas ruas, a ansiedade para verem a marcha de novo, e isto vê-se no banho de gente e no amor que as pessoas têm à marcha, queremos fazer o Alto do Pina campeão”, reitera no fim do ensaio geral ao SAPO.

As rusgas sanjoaninas: muito trabalho e amor numa festa rija e popular

Quem também sonha em revalidar o título das festas populares é Campanhã, freguesia vencedora em 2019 – e também nos três anos anteriores – das rusgas. Muito menos conhecidas do que as marchas populares de Lisboa, as rusgas representam as freguesias da cidade do Porto. Não serem televisionadas, nem pela televisão local, como se queixam alguns dos participantes, parece ser um dos principais motivos para o desconhecimento desta tradição de São João.

Entre alho-porros, martelinhos, balões, as rusgas podem ser menos conhecidas, mas vivem-se com uma intensidade fervorosa e de alta competição dentro dos bairros e das coletividades que as organizam. Assim o é no Bairro do Falcão, em Campanhã. Pedro Moreira, o responsável pelos carros alegóricos, trabalha com o maior gosto e dedicação. O filho é o coordenador, a sobrinha Diana dança nas rusgas desde que nasceu e é uma das maiores aficionadas da tradição. Participam ainda os netos e os bisnetos de Pedro, mas, apesar de estarem várias gerações e familiares envolvidos, conta-nos emocionado que tem muito receio que esta tradição se perca, “que deixem isto morrer” e trabalha para que isso não aconteça.

Diana e Pedro
Pedro e Diana Moreira, tio e sobrinha, na associação que organiza a rusga de Campanhã D.R.

Normalmente no sábado a seguir ao São João [este ano ficou excecionalmente agendado para dia 2 de julho], grupos de cada freguesia do Porto vestem-se “à moda antiga” e desfilam a cantar e a dançar com carros alegóricos pela baixa da cidade, representando cada freguesia da cidade. A tradição é antiga e “recria o que acontecia na época dos anos 60 em que as pessoas saiam dos bairros e das aldeias, e também das zonas da periferia, para vir passar o São João”, explicam a duas vozes Pedro e Diana Moreira no café da Associação Cultural e Desportiva do Bairro do Falcão.

“Nós amamos isto, estamos sempre à espera de saber quando é a reunião para a rusga. Fomos tetracampeões e vamos para o penta! Está tudo muito empolgado”, conta com entusiasmo Diana Moreira.

Pedro nasceu nas Fontainhas – e tem de lá ir sempre no São João, “senão não é São João” –, mas viveu toda a vida em Campanhã. Hoje, mora noutro lado, mas afirma: “estou sempre aqui metido”. Antigo eletricista de profissão é ele que dá a alma às madeiras que transforma em carros. Diana, empregada de limpeza, é nestes dias figurinista e maquilhadora: “As roupas arranjamos umas para as outras, uma empresta uma saia, a outra um batom. Há um espírito muito bairrista”, e também não poderiam fazê-lo de outra forma. Grande parte da verba entregue pela Junta é gasta em madeiras: “O forte são os carros, temos muitas vezes pontuação máxima” e quando se fala neste tema o assunto é sério. “Durante a rusga vou à frente com os carros, se acontece qualquer coisa tenho de arranjar solução”, conta Pedro que explica que o nervosismo para que tudo saia perfeito é tanto que nem se diverte muito nesse dia.

“Fica tudo em silêncio e quando ouvimos ‘Campanhã’..., menina, o bairro vai abaixo. É logo outra festa”

Mas não têm faltado motivos de festa rija no Falcão: a madrugada de 24 “é a melhor noite do ano”, conta Diana. Há bailarico, festa e sardinhas. No dia da rusga, mais música, convívio e bifanas. No dia seguinte, à hora de almoço, a Rádio Festival anuncia o vencedor: “Fica tudo em silêncio e quando ouvimos ‘Campanhã’..., menina, o bairro vai abaixo. É logo outra festa”, conta empolgada Diana.

No total, entre o grupo de dança, os que vão nos carros, os figurantes e os que aparecem no próprio dia, são cerca de 200 a 250 que participam na rusga. “O bairro une-se em força e há gente que vem até de outros bairros”, conta Pedro. “É o dia todo de convívio, começa aqui, e entre comes e bebes, corre sempre bem”, acrescenta Diana. José Pedro Moreira, filho de Pedro e primo de Diana, é o organizador e este ano conta levar umas 300 pessoas, entre crianças e idosos que se juntam ao cortejo.

rusga
O carro alegórico da rusga de Campanhã que representa a Sé do Porto D.R.

No Porto, as rusgas ainda são um pouco amadoras, conta José Pedro, que diz que gostava de profissionalizar mais a tradição, principalmente para poder ter um espaço para guardar os carros de anos anteriores e ter um local para ensaiar quando chove – até então os ensaios acontecem no campo de jogos ao ar livre em frente à associação do bairro. Uma das maiores tristezas é o facto de a rusga não passar na televisão, mas o que pode faltar de divulgação e profissionalismo é inversamente proporcional à autenticidade e genuinidade com que se mantém esta tradição viva.

“Amo isto, mal começa a rusga entro com as pernas a tremer e depois começo a dançar e já vou em lágrimas até ao fim, gostamos mesmo muito disto. Não queria morar em mais lado nenhum do mundo”, conta Diana.

O amor ao bairro é o combustível de muitos participantes, seja nas rugas ou nas marchas, mas nem todos têm de pertencer ao bairro. A sul, a concorrência é muita e os requisitos maiores. No norte, basta ter vontade de participar e aparecer nos ensaios. No Porto, todos os que desfilam vão a concurso mas em Lisboa nem todos estão sujeitos a competição. Telma Silva vai descer a Avenida pela Marcha dos Mercados, que, tal como a infantil da Voz do Operário e como a Santa Casa da Misericórdia, representam a cidade de Lisboa, têm pontuação mas não competem. Telma começou a marchar em 2011, “na altura um pé esquerdo”, conta, mas explica que agora até é das mais antigas e que já ajuda outros a aprenderem as coreografias.

Telma e Filipa
Filipa Silva (à direita) e a irmã Telma Silva (à esquerda) vestidas a rigor na Marcha dos Mercados de 2019 D.R.

Nesta marcha, a grande parte das pessoas trabalham nos mercados e são vendedores de peixe, carne, fruta, hortaliças. Há também cabeleireiras, estudantes e outras profissões. Telma é auxiliar de educação na creche da Voz do Operário e entretanto já teve convites para participar noutras marchas a concurso, mas explica: “uma pessoa quando entra fica logo com o bichinho e depois conhecemos as pessoas e criamos ali uma família”. Os ensaios, no Mercado do Forno do Tijolo, em Arroios, são aos sábados e ajudam a conciliar esta paixão pelas marchas com a vida profissional.

Depois de dois anos sem marchas, “em que Lisboa perdeu cor”, Telma conta que “está tudo em ânsia”. “A minha comadre marcha pelo Bairro Alto e diz que está tudo ao rubro. Nos Olivais também dizem o mesmo”, explica. Depois de dois anos de vai-não-vai, Telma confessa que esteve reticente, mas recorda a grande comemoração que fizeram quando António Costa anunciou que se iam realizar as festas populares.

Santos Populares
créditos: PATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP

Casinhas do México na cascata do Porto e comida do Líbano no arraial de Lisboa  

Na cidade do Porto, os martelinhos, o alho-porro, os balões no ar, o fogo-de-artificio na Ribeira, ou, para quem tiver pernas, acompanhar o rio até à Foz fazem parte das tradições mais comuns. As rusgas ainda estão para chegar a mais portuenses, mas as cascatas povoam as memórias de muitos, e nesta altura do ano, já é costume ver-se estas obras seja em montras de lojas ou à porta de casa dos aficionados desta tradição.

Para não se perder e envolver toda a cidade, a Ágora, a nova empresa municipal responsável pela Cultura e Desporto da cidade, organiza a Cascata Comunitária. Teresa Branco é a responsável pela Oficina Brâmica, que promove esta iniciativa, e que tem como objetivo promover o acesso à cerâmica. “Há muitos espaços museológicos mas poucos espaços criativos, onde o cidadão anónimo possa fazer coisas criativas e a cerâmica é uma arte plástica extremamente acessível e de expressão ancestral”. Esta paixão pela arte junta-se às tradições da cidade para criar uma cascata de São João. De crianças a adultos, de portuenses a residentes estrangeiros, são muitos os que se juntam nesta oficina gratuita para compor uma grande representação da cidade: “Teremos mais de mil casas na mesma cascata”, conta Teresa, que vai armazenando desde 2016 as casinhas já feitas.

Além do trabalho com as crianças nas escolas, de manhã e de tarde, cerca de 15 pessoas mexem e remexem no barro até construírem as casinhas ou as figuras que preferirem. Manjericos, ovelhas, e claro, o São João, fazem parte das personagens principais. A leiteira, o sapateiro ou o ardina compõem o quadro, mas também há lugar para o bêbado e para outras “mais brejeiras”, como o cagão – personagem que ainda testa os limites do calão da conimbricense Teresa com este à-vontade bem típico do Porto –, fazem parte de um quase presépio de verão.

Teresa explica que, segundo o historiador Hélder Pacheco, o presépio pode mesmo ser o ancestral destas obras e terão origem no século XVII ou XVIII. Além disso, quem de Gaia estiver a ver o Porto, pode facilmente confirmar uma paisagem em jeito de cascata.

Na representação, tal como na cidade, alguns edifícios, como o Palácio de Cristal, a Casa da Música, a Sé, os Clérigos ou a Ponte D. Luís ocupam um destaque principal, mas há mais: casinhas mexicanas ou indianas. “A grande maioria das pessoas que participam na oficina são estrangeiros residentes, a maior parte jovens e muito interessados nas tradições. Aqui falam-se todas as línguas e as pessoas trazem a sua arquitetura e as suas representações de casas. Vemos uma cidade cada vez mais cosmopolita e multicultural e até é bem visível pelas cores”, conta Teresa.

“É importante valorizar o que é tão genuíno com figuras mesmo à Porto”. A grande cascata comunitária vai ser montada para a semana que vem e vai estar exposta no Mercado Temporário do Bolhão entre os dias 21 de junho e 4 de julho.

sardinhas
créditos: JOSE MANUEL RIBEIRO / AFP

As festas refletem as cidades e a forma como se têm desenvolvido e não há maior exemplo disso do que o Arraial P’ra Sempre, na Mouraria – saltamos sul, para este bairro no coração da cidade que desafia os conceitos da capital de quem conhece pouco Lisboa. As pequenas e labirínticas ruas cheias de movimento, em que as pessoas sempre em afazeres se misturam com o ritmo de passeio turístico e o frenesim do elétrico é alheio à quantidade de idiomas que ali se cruzam, são hoje um epicentro da multiculturalidade que vibra na cidade.

De esquina em esquina, as ruas enchem-se de comidas, cheiros, roupas e cores que já são de cá com esta diversidade que é celebrada no Arraial P’ra Sempre, organizado pela Renovar a Mouraria, uma associação de desenvolvimento local e integração de pessoas migrantes no bairro e na cidade.

O cheiro a sardinha assada, as bifanas, as cervejas e a decoração marcam a tradicionalidade de um arraial típico português, mas aqui há mais: couscous veganos, húmus, comida libanesa, marroquina e nepalesa compõem o menu. Nas colunas, uma programação cuidada, com músicas do mundo, fazem o Largo da Rosa ir dançando. Inês Andrade, coordenadora de projetos da associação e responsável pelo arraial, diz que esta festa tem dois grandes objetivos: “É uma oportunidade para ativar a diversidade cultural do bairro e promover o acesso livre à cultura. O arraial tem uma programação que espelha esta multiculturalidade, de forma a promover uma dinâmica de encontros que trazem voz, autoestima e confiança ao bairro. Além disto, é uma forma de angariação de receitas”.

Depois de dois anos sem eventos, “foi difícil a nível financeiro, e este ano tem um sabor especial”. Inês explica que, apesar de ter projetos financiados a 80% é necessário angariar o restante e estes eventos são fundamentais para equilibrar a tesouraria da associação.

Na montagem e organização da festa juntam-se cinquenta pessoas, muitas migrantes mas outras portuguesas. “No outro dia, um migrante que trabalha na organização perguntou se me podia dar um abraço porque sentia que esta era a família dele. É isto que nos faz continuar a trabalhar”. “Tínhamos muitas saudades de estar juntos”, conta emocionada no primeiro dia de arraial.

Além da multiculturalidade, a preocupação ambiental e ecológica presente neste arraial marca também uma Lisboa atualizada: copos reutilizáveis, reciclagem, compostagem, oferta de cinzeiros portáteis e incentivos ao consumo de água da torneira são alguns dos exemplos. Outras das diferenças que este arraial promove, e como aliás é o mote da Renovar a Mouraria, é que seja inclusivo para todos, e isto diz respeito também às famílias com crianças, sendo um arraial “além daquela doideira”, onde há espaço para os mais pequenos dançarem.

A pensar nos mais pequenos, também a Penha de França, promove o Arraial Penha Kids, para criar desde cedo esta ligação às tradições populares. Nesta freguesia, o arraial do Mercado de Sapadores, também apresenta um cardápio mais inclusivo com seitanas e espetadas veganas.

Manjerico e alho-porro para temperar as noites mais “rapioqueiras” do ano

Abília Campos começa por esta altura a montar a banca de manjericos, alho-porro e martelinhos na Praça da República. Há 22 anos que vende os artigos mais procurados da festa de São João. Já a mãe vendia no Bolhão, depois nos Clérigos e nos Leões. Abília e a irmã Alice ficam na banca das sete da manhã às nove/dez da noite. É cansativo, mas quem ouve Abília falar percebe que o faz com gosto.

Alice (à esquerda) e a Abília (à direita) junto à banca onde vendem alho-porro, manjericos e martelinho
Alice (à esquerda) e a Abília (à direita) junto à banca onde vendem alho-porro, manjericos e martelinho

Agora reformada, era empregada a dias, mas nesta época do ano, as clientes já sabiam: “o mês de junho é dedicado ao São João”, deixava as limpezas e montava a banca. “Alho-porro dizem que se deve pôr atrás da porta e deixar durante todo o ano e depois trocar por um novo na altura do São João”, conta. “Mas depois não fica a cheirar mal durante o ano?”, pergunto desconhecendo esta tradição, mas relembrando o cheiro do vegetal. “Não, não. Dizem que dá sorte”, explica.

Sempre de resposta pronta, à moda do Porto, diz que apesar da tristeza dos anos da pandemia, o negócio não correu mal. “Vendeu-se bem, principalmente manjericos e alho-porro. Martelinhos era proibido”, conta e antecipa logo as expectativas para este ano: “Isto está mau, mas as pessoas estão com muito desejo do São João, o povo está morto por ir para a rua”.

No dia 23 de junho também começa às sete e só vai embora no dia seguinte à noite. Na madrugada, chamam os maridos para poderem descansar algumas horas, mas apesar de quase septuagenária mantém o espírito jovem, pelo menos durante o mês de junho: “É lindíssimo, nós gostamos muito e brincamos, é muito bonito ver a alegria do povo. É uma festa muito rapioqueira”, conta Adília.

De fino ou de imperial na mão, a torcer por uma marcha ou por uma rusga, divirta-se no regresso das festas às ruas das cidades.