O recente apelo da ministra da Saúde, convocando bombeiros, o INEM e a Cruz Vermelha para um “esforço adicional”, não é um pedido. É a certidão de óbito de um modelo de governação. É a confissão pública de que o Estado, após décadas a gerir a decadência, já não tem soluções, apenas recursos humanos para consumir.

Não nos iludamos: este grito de desespero é a colheita do que foi semeado. É o resultado de um Serviço Nacional de Saúde cujos alicerces foram sendo minados até ao ponto de o deixarem, ele próprio, em risco de queda iminente. A ironia quis que, em 2022, a própria ministra socialista da Saúde caísse; primeiro, na via pública à porta do ministério; depois, do próprio governo. A queda foi literal e simbólica. A sua frase, “sejam mais resilientes”, proferida em proximidade com acusações de “cobardia” a profissionais em luta, foi o início do fim. O tempo do sacerdócio acabou. Morreu o “amor à camisola”, sacrificado no altar da negligência estatal. As palmas da pandemia ecoaram vazias e foram a marcha fúnebre no funeral dessa abnegação.

A saúde, para quem nela trabalha, é hoje uma profissão com limites claros. A exaustão tem um nome, burnout, e tornou-se a norma num sistema que corrói por dentro quem ainda o segura de pé. Pedir-lhes “esforço adicional” é, por isso, o sintoma final de que o modelo atual colapsou. Um colapso que não é uma abstração política, mas uma realidade medida em vidas: materializa-se nas 17 horas de espera numa urgência; traduz-se nas mais de mil mortes evitáveis num único mês de inverno; e confirma-se na propaganda de “pacotes-relâmpago” de 350 vagas extra para médicos que nem moscas atraem e que os próprios sindicatos médicos carimbam como “propaganda sem substância”, enquanto a IGAS já reconhece óbitos por atraso no socorro.

Fica a dúvida: se dirigentes, tidos por competentes, realmente acreditam que estes remendos cosméticos resolvem algo, ou se o objetivo é outro: ensaiar um desmantelamento à inglesa, deixando-nos com um sistema caro e de filas intermináveis? Porque se o desígnio não é esse, então a inação torna-se inexplicável. E se o próprio Estado, perante isto, admite que já não consegue garantir a saúde, talvez seja hora de ter a conversa que a maioria da classe política, agarrada a um “totem” do SNS com 50 anos, se recusa a ter.

O objetivo nunca deveria ser preservar uma sigla, mas sim garantir o essencial: o acesso universal a cuidados de saúde de qualidade e em tempo útil. Perseverar no erro não parece ter sido uma boa opção. É neste ponto que a conversa se torna proibida: a de questionar se o nosso modelo de saúde, financiado por impostos e dependente de um Orçamento de Estado esgotado, é a única via. Mencionar sequer os modelos de seguro social e contribuições que funcionam em tantos países europeus é um “tabu” visto como heresia.

Não são panaceias, claro, mas a recusa obstinada em debater o fundo do problema, enquanto se aplicam remendos, é precisamente o que nos trouxe até aqui. Ainda assim, a recusa em debater estruturalmente o futuro tem responsáveis. Décadas de governação, com um peso esmagador para o Partido Socialista, transformaram o SNS nesta entidade frágil. Uma situação que os profissionais na linha da frente já perceberam ser irrecuperável se for mantida esta linha estratégica de remendos.

Enquanto esta discussão fundamental não for tida com seriedade, condenamo-nos a permanecer na cauda da Europa; não apenas geograficamente, mas numa décalage temporal que nos deixa a debater problemas que outros países já ousaram resolver. A solução não virá de mais abnegação, mas de uma reestruturação corajosa. Não precisamos de mais heróis para aguentar sistemas insustentáveis; precisamos de um sistema sustentável, para os profissionais que o operam e para os utentes que deveriam conseguir tratar.

A exaustão dos nossos profissionais não é um sinal da sua fraqueza. É o alarme ensurdecedor de que o sistema falhou. E perante um colapso, a resposta sensata não é pedir aos escombros que se reergam por milagre, mas sim iniciar uma reconstrução séria. A temida ministra da “queda” e da “resiliência” deixou o aviso. A do “esforço adicional”, ao que parece, trouxe a pá.

Talvez seja preciso estar de fora do SNS para verbalizar aquilo que, por dentro, o esgotamento e a prudência transformam num murmúrio. Parece que, em Portugal, quando a classe política fica sem soluções, seja para a falta de paz ou para a falta de saúde, a resposta é sempre a mesma: pedir mais pás. Senhora ministra, o seu pedido não é um esforço, e as suas recentes propostas não são uma solução. São uma pá. E ao entregá-la nas mãos dos profissionais, está a pedir-lhes que cavem a sepultura do sistema que um dia juraram servir.

Se o Governo reconhece que o modelo faliu, o passo lógico é convocar um debate nacional transparente e com dados comparativos internacionais, para redesenhar o financiamento da saúde em Portugal. Qualquer coisa menos que isso será apenas mais uma pá.