
Há mais de oitenta anos que são desenvolvidos modelos de informatização e automatização. Um certo sentido do ridículo fez com que a maior parte das pessoas que se dedicavam a essa pesquisa evitasse chamar-lhe "Inteligência Artificial”, ou AI. Acompanhando o espírito dos nossos tempos, os novos tecnolordes Musk, Thiel, Zuckerberg ou Bezos despejaram centenas de milhões nas redes sociais, na academia e na imprensa para promover o “boom” da “Inteligência Artificial” e normalizar esta expressão. Mas o seu projeto ideológico não é inovador.
AI são principalmente máquinas de síntese de textos (e em menor escala, máquinas de análise e classificação de imagens e padrões para os carros “autónomos” e deepfakes). Estas máquinas são incapazes de produzir nova informação, não “pensam” no que estão a escrever, usando apenas a probabilidade do que é que estará escrito a seguir, de acordo com as bases de dados com que foram programadas. Como tal, não está iminente uma tomada de consciência por parte de uma nova entidade que nos quer destruir como um Exterminador Implacável à la James Cameron. O que temos é propaganda, cujo objetivo principal é acelerar despedimentos, alimentar especulação financeira e desviar investimento e recursos para uma nova fuga para a frente das elites económicas e políticas.
A principal ilusão da AI para o grande público nem são as probabilidades que constroem textos e listas em geral coerentes, mas sim a fase de aprimoramento da resposta, uma nova camada de tinta que produz uma linguagem quase humana. Chamam-lhe "Inteligência Artificial”, mas o seu nome verdadeiro é Modelo de Linguagem de Grande Escala. Os mais famosos modelos são o ChatGPT, o Claude, o Gemini, o DeepSeek ou o MechaHitler (Grok).
Considerando o estado desastroso da informação na internet hoje, os modelos de linguagem já começam a sofrer de uma espécie de doença das vacas loucas. Tal como as vacas nos anos 90 adoeciam ao serem alimentadas por farinhas de osso e de carne de outras vacas, também os modelos de linguagem estão a degenerar ao serem programados com base em dados da internet, onde já há tanta quantidade de dados produzidos por outros modelos de linguagem, em particular o ChatGPT, que os erros podem avolumar-se até à incompreensão. Tal como a doença das vacas loucas também contaminava humanos, a AI está definitivamente a contaminar-nos.
As promessas que os tecnolordes e os políticos que alinham no furor da AI têm para nós são em geral falsas - as boas como as más. Os modelos de linguagem não vão acabar com a Humanidade nem substituir tarefas essenciais das sociedades e acabar com trabalho inútil. Estão na verdade a criar trabalho precário, mal pago e escondido, entre outros, pelas pessoas que têm de verificar que as respostas dadas pelos modelos são em linguagem polida e não o MechaHitler de Elon Musk a fazer apelos a genocídios judaicos e violações em massa. Isto não significa de maneira alguma que não haja já milhões de pessoas a ser despedidas no furor de que o ChatGPT ou outro modelo de linguagem as substitua. Muitas são recontratadas por menos salário pouco tempo depois.
Os modelos de linguagem atuais não produzem conhecimento além do que já está dentro das bases de dados que os programaram. Assistimos a declarações de negacionistas climáticos de que os modelos de linguagem resolverão a crise climática, mas isso é redundante. Os modelos que tenham como base textos científicos e décadas de negociações climáticas sabem como resolver a crise climática, que é de conhecimento público há décadas - acabar com a indústria fóssil no muito curto prazo. Os modelos que tenham como base pseudociência e conteúdos avulsos extraídos da internet despejarão lixo como resposta. Se o que entra na programação dos modelos é mau, o que sai só pode ser mau. A questão não é uma AI ser demasiado inteligente e acabar connosco, a questão é que não há inteligência envolvida. No entanto, os modelos de linguagem estão a começar a ser utilizados de forma generalizada, com algoritmos desconhecidos e privados, gerindo enormes quantidades de dados. É garantido que haverá má interpretação de dados e de pedidos que causarão danos irreparáveis (na saúde, em dados criminais, em sistemas energéticos, na atribuição de apoios sociais, como já aconteceu em vários países). As consequências ficarão sem culpados, já que os bilionários que disseminam a AI externalizam a sua responsabilidade por tudo isto com o aval das elites políticas.
A disseminação dos modelos de linguagem em grande escala corresponde a um projeto ideológico dos tecnolordes, vendendo a ideia de que os humanos são apenas versões orgânicas de computadores, reduzidos estritamente àquilo que podem produzir. No capitalismo, a principal promessa da AI que conta é a possibilidade abstrata de tornar uma série de empregos redundantes ou desnecessários. O que interessa não é sequer torná-los redundantes ou desnecessários, mas simplesmente criar a ilusão de que podem abrir a porta ao despedimento de milhões, sem sequer ser preciso provar como é que a AI substituiria essas pessoas. É o eterno regresso ao “aumento da produtividade”, substituindo na teoria trabalho por tecnologia. Para instalar este projeto ideológico em grande escala teria de ser normalizado o roubo generalizado de dados e o fim da privacidade, com sistemas de vigilância e punição permanente para os mais pobres. Isto nada tem que ver com um grande avanço tecnológico ou com qualquer disparate de consciência global, a mesma proposta é a mesma de sempre: tornar os ricos mais ricos à custa de quem trabalha.
A escala do projeto ideológico com base em “Inteligência Artificial” é catastrófica: substituir centenas de milhões de pessoas que trabalham em saúde, educação, justiça, ciência, serviços públicos e imprensa com a promessa vaga da automatização que permite despedir em massa. Este projeto ideológico implicaria ainda uma expansão massiva de datacenters e infraestrutura de redes, disparando as necessidades energéticas e materiais em plena crise climática. Aos tecnolordes e iludidos políticos que os apoiam interessa pouco que os modelos de linguagem da AI não consigam substituir a maior parte dos empregos que pretendem destruir. Os médicos dos tecnolordes continuarão a ser pessoas, como os seus professores, advogados e serviços de informação. Para a maior parte da população do mundo o que se poderia esperar de tal projeto é mais pobreza e uma degradação incomparável de quaisquer serviços públicos e privados, entregues a papagaios automáticos construídos com bases de dados contaminadas por outros papagaios automáticos.