Imagine que estamos em 2030. Uma pequena fábrica têxtil em Guimarães acaba de enviar a sua nova coleção primavera-verão para um retalhista em Estocolmo. O pagamento chega em segundos, em stablecoins e/ou euros digitais, sem taxas de câmbio a roer as margens, sem atrasos bancários, sem a espera ansiosa que tantos empresários conhecem bem. O dinheiro cai na conta imediatamente, pronto para reinvestir em algodão, em máquinas e nos salários do mês seguinte.

No fundo, o empresário têxtil em Guimarães quer apenas três coisas: liquidez imediata, custos baixos e segurança. Não importa se o pagamento viaja via SEPA, stablecoin ou euro digital desde que chegue depressa, na moeda certa e sem sustos cambiais.

O mais surpreendente não é a velocidade, mas sim quem processou o pagamento. Não foi um banco tradicional, nem sequer o SEPA, mas sim uma stablecoin regulada, ancorada no euro, operando numa rede global e, ainda assim, supervisionada pelas regras europeias.

Para entender como chegámos aqui, é preciso recuar uns anos.

As stablecoins nasceram como resposta à Bitcoin e Ethereum, são moedas digitais criadas para manter um valor estável, normalmente ancorado a uma moeda como o euro ou o dólar. O objetivo é simples, permitir pagamentos, poupanças e até empréstimos em ambiente digital, sem o risco constante de volatilidade descontrolada.

À data de hoje, o mercado das stablecoins ultrapassou os 255 mil milhões de dólares[1], com o Tether (USDT) a dominar cerca de 62% do mercado, seguido pelo USDC (24%) e outros tokens como o Ethena USD e o USDS. Esse crescimento mostra o papel das stablecoins não só em transações cripto, mas cada vez mais como “cola” do comércio digital global.

No entanto, se para um comerciante isto é quase invisível, para os reguladores e bancos centrais cada detalhe importa. Se a tecnologia é o motor, o combustível é a confiança.

Quando um euro “tokenizado” viaja de Estocolmo para Guimarães, há alguém (emissor, banco ou fundo) que promete que aquele token é lícito e está realmente assegurado por euros reais guardados em algum lado. Mas quem fiscaliza se esses euros existem mesmo? Quantas vezes por ano? É dinheiro em contas segregadas, ou em instrumentos mais arriscados?

Num mundo onde a desconfiança digital pode colapsar mercados em horas, quem oferece regras claras, fiscalização apertada e reservas auditadas, oferece o ativo mais precioso do nosso tempo: confiança.

O regulamento MiCA (Markets in Crypto-Assets), que exige aos emissores de stablecoins que mantenham reservas equivalentes ao volume emitido, sujeitos a auditorias regulares, relatórios públicos e testes de stress, surge como um potencial diferencial competitivo global. Ao estabelecer um quadro legal unificado para stablecoins e ativos digitais em toda a União Europeia, não só protege consumidores e empresas, como cria o que, na prática, é um selo de qualidade europeu para o dinheiro digital.

Então e o euro digital do Banco Central Europeu? Será um concorrente direto das stablecoins?

À primeira vista, pode parecer que sim. Afinal, o euro digital será um euro garantido diretamente pelo BCE, com a mesma legitimidade e valor que as notas e moedas que temos nas carteiras. Mas olhar para o euro digital e as stablecoins como rivais é um erro de perspetiva. Na realidade, eles são peças complementares do mesmo quebra-cabeças financeiro que está a ser desenvolvido na Europa.

O euro digital nasce de uma necessidade clara: garantir que, num mundo cada vez mais dominado por apps privadas, carteiras digitais globais e fintechs estrangeiras, o público europeu continua a ter acesso direto a dinheiro sem risco de crédito, emitido pelo próprio Banco Central Europeu.

É o euro que já conhecemos, mas digital, pronto para pagar um café em Paris ou um bilhete do metro em Lisboa, sem depender de bancos comerciais ou de intermediários privados. É também uma resposta estratégica para reforçar a soberania monetária europeia, num contexto onde stablecoins estrangeiras e moedas digitais de outros bancos centrais começam a circular globalmente.

No fundo, o euro digital garante que o dinheiro oficial europeu continua vivo e universal na era digital.

Já as stablecoins têm uma missão diferente e não menos importante. São o cimento digital que liga cadeias logísticas, contratos inteligentes e marketplaces transfronteiriços, sem as fricções típicas do sistema bancário tradicional, emitindo pagamentos automáticos entre máquinas, sem intervenção manual, facilitando liquidações instantâneas entre empresas, mesmo fora do horário bancário e que podem servir como colateral em operações de financiamento descentralizado (DeFi), algo para o qual o euro digital não foi desenhado.

No final, stablecoins não são apenas tokens que vivem numa blockchain. São o elo invisível que pode tornar as economias mais integradas, as PME mais competitivas e os consumidores mais confiantes no digital.

Para o empresário em Guimarães, pode ser a diferença entre ter fundo de maneio hoje ou daqui a três semanas, entre contratar mais 10 funcionários ou perder um contrato para um concorrente sediado noutro país europeu.

[1] https://www.coingecko.com/en/categories/usd-stablecoin