Todas as notícias em primeira mão
Todas as notícias em primeira mão
Todas as notícias em primeira mão

Quem quer comprar metade de um poço sem fundo?

Esta tentativa de venda é uma encenação para dentro: para o eleitorado que quer ver a TAP vendida, mas também para aquele eleitorado que quer continuar a ver a TAP “nossa” por causa das caravelas dos ares e da bandeira nos céus.
Quem quer comprar metade de um poço sem fundo?

O governo quer vender metade da TAP, à qual o primeiro-ministro, representante do vendedor (=nós, os contribuintes), resolveu chamar “poço sem fundo”. Para quem trabalha em vendas, a qualificação é inevitável: é um péssimo vendedor. No antigo mercado do Bolhão, não distante da residência familiar de Montenegro, e com a típica franqueza de quem lá vendia, isto seria o equivalente a dizer: “Tenho aqui metade desta m€r#a para vender, queres comprar, carago?”

Menos de metade.

Mas não é só isso: o nosso Estado convida o comprador a pagar os 3,2 mil milhões euros que o Estado lá despejou sem que isso se tenha repercutido numa melhoria palpável na vida dos portugueses – numa combinação de palavras do atual primeiro-ministro com as de um ex-governante desse tempo e atual líder do PS. Mas o pacote do nosso vendedor inclui mais surpresas: além de ressarcir o Estado ao máximo pelo seu investimento ruinoso, o comprador tem de se comprometer a meter ainda mais dinheiro lá dentro, modernizar o poço num “novo” aeroporto sujeito a muito maior concorrência, dar dividendos ao Estado… ah! E, claro, ser bem obediente ao Estado, esse sócio maioritário, todo-poderoso e infinitamente sábio na arte de gerir quatro companhias aéreas públicas – sem contar com as suas outras aventuras empresariais que acabaram em desastre.

Só que os esquemas deste Estado não acabam aqui. Sabendo que o Tribunal de Justiça Europeu já se pronunciou, em 2019, contra as restrições sugeridas para a privatização da TAP – como a imposição de manter a sede em Portugal e o hub especificamente em Lisboa – por serem contrárias ao direito de livre estabelecimento no mercado único europeu, a solução encontrada por este governo é a de ter a maioria acionista. Nenhum caderno de encargos poderia garantir essa restrição, e se o fizesse seria ilegal. Mas mantendo 50,1% na mão, garante-se a chantagem patriótica em assembleia de acionistas. E isto revela uma outra coisa: não há verdadeira intenção de privatizar o resto.

Se dúvidas restassem, basta recordar o caso Jerónimo Martins: quando a empresa que a detém mudou a sede para os Países Baixos por razões fiscais e de flexibilidade jurídica que não existem em Portugal por opção dos nossos políticos, essa decisão foi tomada por maioria em assembleia de acionistas. Mas não foi por isso que começámos a ter de fazer compras de mercearia em Roterdão em vez de no Pingo Doce do Rato ou da Cedofeita. Se o nosso Estado acha que a única forma de manter as sedes das empresas e dos “unicórnios” em Portugal é pela força de uma maioria acionista estatal, então é porque ainda não entendeu como funciona o mercado único europeu.

Na verdade, esta tentativa de venda é uma encenação para dentro: para o eleitorado que quer ver a TAP vendida, mas também para aquele eleitorado que quer continuar a ver a TAP “nossa” por causa das caravelas dos ares e da bandeira nos céus. Isto é um número de circo para os deputados, não é para o mercado.

Que forma é esta de convidar grupos aeronáuticos profissionais e cotados em bolsa, a deitar dinheiro num poço sem fundo, sabendo que quem manda na profundidade do buraco continua a ser o Estado? Esta privatização não está feita para o negócio e para valorizar a TAP aos olhos do comprador, mas está virada para a política de comício e propaganda. Para um primeiro-ministro que fala tanto da reforma do Estado, este anúncio de privatização é um falhanço monumental – antes sequer mesmo de começar.

Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo

Veja também