
A democracia portuguesa tem as suas raízes na Revolução de Abril de 1974, e é frequentemente apresentada como um sistema pluralista, onde todos os cidadãos têm voz e todos os partidos podem disputar o poder em pé de igualdade. Mas a realidade, quase 50 anos após a Constituição de 1976, é bem diferente. Portugal vive uma democracia formalmente plural, mas funcionalmente bloqueada — em que a igualdade de oportunidades entre partidos é apenas uma promessa não cumprida.
Não se pode, contudo, esquecer que a história democrática de Portugal começou bem antes de Abril. A monarquia constitucional do século XIX, particularmente a partir da Carta Constitucional de 1826, já incorporava elementos de um sistema representativo, com eleições, parlamento bicameral e liberdades fundamentais consagradas — ainda que imperfeitas e limitadas pelo contexto da época. Se esse regime não tivesse sido interrompido abruptamente pelo golpe republicano de 1910, talvez o país tivesse seguido um percurso evolutivo mais estável e gradual rumo à consolidação democrática, evitando tanto o caos das primeiras décadas da República como a longa noite do Estado Novo. A história oficial tende a esquecer que a monarquia constitucional portuguesa foi, com todas as suas limitações, uma forma embrionária de democracia liberal. Ao negar essa herança, empobrece-se o entendimento da nossa história política e apaga-se uma alternativa legítima ao modelo republicano vigente.
Curiosamente, a própria Constituição de 1976 — tantas vezes apresentada como um marco fundacional absoluto — foi buscar inspiração a modelos anteriores, nomeadamente à Constituição monárquica de 1822, ao recuperar a ideia de soberania popular e da centralidade da representação nacional através de uma assembleia legislativa. Ou seja, mesmo na ruptura, há continuidade. Ignorar este fio histórico é amputar parte da memória constitucional portuguesa.
Comunicação Social: o primeiro campo de exclusão
Antes mesmo de os votos serem contados, os pequenos partidos enfrentam o primeiro grande obstáculo: o silêncio mediático. A legislação portuguesa reconhece o direito à igualdade de tratamento entre partidos, especialmente em tempo de campanha. Porém, o acesso aos debates televisivos, que moldam decisivamente a percepção dos eleitores, é desigual, arbitrário e altamente discriminatório.
Nos principais debates, promovidos por estações privadas e até mesmo pela RTP — canal público financiado com dinheiro de todos os contribuintes — os partidos chamados, são quase sempre os mesmos. Em geral, apenas os “grandes partidos” com representação parlamentar são convidados, deixando de fora forças emergentes, alternativas cívicas ou partidos que, apesar de não terem assento, têm intenções de voto ou propostas relevantes.
Este critério, por mais "pragmático" que se alegue, fere o pluralismo democrático. Como podem partidos novos ou sem assento parlamentar alcançar representação se nunca lhes é dada visibilidade suficiente para serem conhecidos? Este ciclo vicioso mantém o poder nos mesmos centros e alimenta a sensação de que "o sistema está feito".
Ser pequeno não é sinónimo de irrelevância: as ideias contam, não só os votos
Um dos maiores erros do sistema político-mediático português é a associação automática entre dimensão partidária e relevância política. Parte-se do princípio (implícito, mas persistente) de que apenas os "grandes" partidos têm ideias dignas de debate. Mas isso é falso, antidemocrático e intelectualmente preguiçoso.
Ao longo dos últimos anos, foram precisamente os pequenos partidos — e até candidaturas independentes — que trouxeram ao debate temas que os partidos maiores evitavam, por conveniência ou por medo de perder votos centristas.
Alguns exemplos:
- O PAN (Pessoas–Animais–Natureza) pôs na agenda política a defesa animal, o ambiente e a agricultura sustentável, temas outrora periféricos, hoje centrais. No entanto convém relembrar as propostas sobre o ambiente e o mundo rural apresentadas pelo PPM, na altura liderado pelo visionário Arq. Gonçalo Ribeiro Teles.
- O Livre destacou, entre outras coisas, a transição ecológica justa, a democracia participativa e políticas inspiradas nas experiências nórdicas e centro-europeias.
- A Iniciativa Liberal provocou o sistema ao exigir uma reforma profunda do Estado e ao colocar liberdades económicas no centro do debate político.
- O Nós, Cidadãos! defende uma reforma profunda do sistema político, com círculos uninominais e maior participação directa dos cidadãos. Propõe um modelo de democracia mais transparente e responsável, longe da partidarização crónica do Estado.
- O PPM – Partido Popular Monárquico, além de representar uma pequena parte do segmento monárquico da sociedade portuguesa, tem defendido. de forma coerente, a descentralização, o desenvolvimento regional, a tradição cultural e valores históricos portugueses. A sua longevidade é prova de resistência num sistema que raramente lhe dá palco.
- A Nova Direita, enquanto nova força ideológica, coloca em debate alguns valores conservadores clássicos como a identidade nacional e soberania, inserindo-se numa tendência europeia de direita populista, mas com expressão legítima junto de uma parte do eleitorado.
- O ADN – Alternativa Democrática Nacional, surgiu em torno de causas como a liberdade individual, a oposição a medidas sanitárias restritivas durante a pandemia e uma crítica forte ao "excesso de Estado". Tem colhido apoio entre eleitores que se sentem traídos pela gestão da crise e a conformidade dos partidos tradicionais.
São sinais de mal-estar que os grandes partidos ignoraram por demasiado tempo.
Estes partidos, embora sem representação parlamentar (ou com uma representação simbólica), são parte legítima do espectro democrático e trazem ao debate temas e perspectivas que os partidos maiores muitas vezes preferem ignorar. A sua exclusão dos grandes debates, especialmente em canais públicos como a RTP, não é apenas injusta — é antidemocrática.
Ideias transformadoras quase nunca nascem no centro do poder. São as margens — os movimentos cívicos, os pequenos partidos, os cidadãos organizados — que abrem caminho para o futuro. E quando esses espaços são sistematicamente ignorados, a democracia perde vitalidade, pluralismo e capacidade de renovação.
Método de Hondt: a distorção dos votos
Mesmo quando conseguem votos, os pequenos partidos enfrentam o segundo obstáculo: o método de Hondt, que, embora classificado como proporcional, favorece fortemente os partidos maiores, sobretudo nos círculos eleitorais de pequena dimensão. Círculos como Bragança, Portalegre ou Évora elegem apenas dois ou três deputados, tornando quase impossível qualquer força minoritária conquistar um lugar, mesmo que obtenha milhares de votos.
O sistema transforma a proporcionalidade num mito. Um partido pode obter 4% ou 5% a nível nacional — o suficiente para eleger deputados num sistema verdadeiramente proporcional — e acabar sem qualquer representação no Parlamento. O voto perde o seu valor. E o eleitor perde a sua motivação.
Círculos uninominais: devolver poder ao eleitor
Uma reforma muitas vezes proposta — mas sistematicamente ignorada pelos grandes partidos — é a introdução de círculos uninominais, que permitiriam aos eleitores escolher directamente o seu representante. Ao contrário do actual sistema de listas fechadas, dominado pelas direções partidárias, os círculos uninominais responsabilizam cada deputado perante os seus eleitores e não apenas perante os chefes de partido. Este modelo favorece a proximidade, a transparência e a responsabilização política.
Nos círculos uninominais, os candidatos são eleitos individualmente em zonas geográficas concretas, o que reforça o vínculo entre o eleito e os problemas reais do seu território. Para além disso, o sistema reduz a partidarização do Parlamento, permitindo que surjam vozes independentes ou representantes de movimentos locais com apoio direto das suas comunidades. Isto não significa o fim da proporcionalidade — é possível combinar círculos uninominais com compensação proporcional, como acontece na Alemanha ou na Escócia.
Uma democracia saudável precisa de representantes comprometidos com os cidadãos, e não apenas com os aparelhos partidários. Os círculos uninominais seriam, nesse sentido, uma lufada de ar fresco para a política portuguesa.
E lá fora, como é? A Europa com sistemas mais justos
Olhemos para a Europa. Em países como:
- Países Baixos, o sistema é proporcional puro: qualquer partido que ultrapasse 0,67% dos votos elege um deputado. Resultado? Parlamentos diversos, que espelham de forma mais fiel a vontade do eleitorado. A existência de coligações é normal, saudável, e obriga à negociação e compromisso político.
- Suécia, com um limiar mínimo de 4% dos votos para eleger deputados, combina estabilidade com inclusão. O sistema incentiva o voto útil, mas não bloqueia novas forças políticas de entrarem no Parlamento.
- Alemanha, embora imponha uma cláusula de barreira de 5%, permite a eleição de deputados por círculos uninominais, garantindo representação regional a partidos que não têm expressão nacional. A diversidade parlamentar é um valor, não um problema.
- Bélgica, por seu lado, adopta um sistema proporcional avançado e uma estrutura de representação regional e comunitária. Apesar da sua complexidade política e linguística, o sistema permite a convivência democrática de dezenas de partidos, assegurando representação a praticamente todas as correntes ideológicas. Coligações amplas são comuns e funcionais.
A lição da Bélgica é clara: a pluralidade política não é inimiga da estabilidade — é o seu verdadeiro fundamento.
Em todos estes países, a pluralidade é aceite como parte da democracia, não como uma ameaça à governabilidade. Portugal, ao contrário, parece ainda preso à mentalidade de blocos: ou se está "dentro" do sistema, ou se é condenado à irrelevância.
Um sistema que ninguém quer reformar
A verdade inconveniente é esta: nenhum partido que chegou ao poder desde 1976 quis alterar este sistema. Nem PS, nem PSD, nem CDS, nem mesmo forças mais recentes com peso parlamentar. Todos beneficiaram do método de Hondt e da exclusão mediática dos adversários menores. Reformar o sistema seria arriscar perder o conforto do duopólio ou oligopólio.
Esta resistência à mudança é uma forma de perpetuação do poder por meios legais, mas eticamente questionáveis. A democracia não está apenas ameaçada quando se suspendem eleições — também está em risco quando os mecanismos eleitorais e mediáticos são viciados a favor de alguns.
Abstenção: o povo já percebeu o jogo
A consequência está à vista: abstenção recorde, eleição após eleição. Em algumas legislativas, mais de metade do eleitorado ficou em casa. Não se trata apenas de desinteresse: é um grito silencioso de cansaço democrático. Os cidadãos estão fartos de escolher entre opções limitadas, em eleições onde o seu voto pouco ou nada altera.
A alternância entre os mesmos partidos não tem trazido mudanças estruturais. Muitos eleitores, desiludidos, preferem a abstenção ao voto inútil. Quando o sistema fecha portas à novidade, à crítica e à diferença, o povo recusa-se a jogar esse jogo.
Que democracia queremos?
Portugal precisa urgentemente de:
- Reformar o método de apuramento dos votos, para garantir proporcionalidade real;
- Impor regras claras e equitativas para a presença nos debates televisivos, especialmente no serviço público;
- Apoiar o pluralismo e a diversidade ideológica, aceitando que mais partidos não significam instabilidade — significam representatividade.
Só assim se poderá reconstruir a confiança no sistema político, reduzir a abstenção e devolver ao povo a sensação de que o voto importa, conta e pode mudar alguma coisa.
Caso contrário, continuaremos a votar... sem realmente escolher.
Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais e vice-presidente da Causa Real
O autor escreve com o antigo acordo ortográfico