O Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas existe para celebrar um país, com tudo o que ele é: língua, história, cultura, paisagem, gente. Celebra-se cá dentro e lá fora. É um dia de afirmação, de orgulho, de memória partilhada e de pertença. E, por isso mesmo, não pode, nem deve, ser transformado num púlpito para discursos moralizantes ou lições políticas que escolhem precisamente este dia para lançar suspeitas sobre quem o celebra com gosto.

As palavras de Lídia Jorge deixaram esse sabor amargo. “Por aqui ninguém tem sangue puro”, disse. E avisou que “os loucos” podem voltar para “guiar os cegos”. Sim, sabemos o que quis dizer. Sabemos que falava contra o racismo, contra a xenofobia, contra os extremismos que crescem na Europa e, em menor escala, também por cá. Mas a questão é esta: era mesmo este o momento para este tipo de discurso?

A resposta é simples: não. Não porque o conteúdo esteja totalmente errado, mas porque o enquadramento falha. O 10 de Junho não é um congresso ideológico. É uma celebração nacional. Um momento simbólico, que existe para unir e reconhecer uma identidade que, apesar das suas muitas nuances e contradições, tem valor e merece ser afirmada sem medo. Quando se utiliza este espaço para insinuar que qualquer orgulho nacional é terreno fértil para fanatismo, está-se a empobrecer o próprio sentido da data.

Portugal não é, nem nunca foi, um país obcecado com “pureza de sangue”. A nossa história é de mistura. Somos o resultado de séculos de cruzamentos, trocas, influências e diásporas. E ninguém está a contestar isto. Mas há uma diferença entre reconhecer a diversidade que nos formou e desconfiar de quem, com naturalidade, diz: sou português, com orgulho.

Esse orgulho não precisa de se justificar. Não é uma ameaça. Não implica exclusão. E, acima de tudo, não deve ser tratado com suspeita ou paternalismo.

O que começa por ser um discurso contra o extremismo pode, sem querer, tornar-se num discurso contra a identidade, e aí o risco é outro: o de alienar aqueles que vivem Portugal com um amor simples, enraizado, e que não sentem necessidade de provar a sua abertura ao mundo sempre que falam de si.

Não é preciso lembrar no Dia de Portugal que “ninguém tem sangue puro”. Isso é factual, mas também é irrelevante. O que nos une não é o sangue, é a experiência, a língua, a memória coletiva, as histórias contadas à mesa e o lugar onde aprendemos a ser quem somos. Se alguém diz que vem de x gerações de portugueses, não está a excluir ninguém. Está a dizer de onde vem. E isso também conta. Tal como conta a experiência de quem chegou há menos tempo, mas se sente igualmente português. Estas vivências não competem, somam-se.

Neste 10 de Junho, talvez o mais importante fosse simplesmente lembrar isto: é possível celebrar Portugal sem pedir desculpa. É possível amar o país sem ser um nacionalista radical. É possível reconhecer a história e a diversidade sem desconfiar da identidade. E é possível, e desejável, que os discursos institucionais saibam distinguir o lugar certo para cada mensagem.

Porque se há coisa que Portugal sempre teve foi esta capacidade de ser plural sem se desfigurar. E essa é a nossa verdadeira força.

Consultora de comunicação