A indigitação de Álvaro Santos Pereira para governador do Banco de Portugal desencadeou a habitual polarização, com a claque de cada lado a garantir que o seu candidato é o único com qualificações e garantias de independência. Uns e outros colocam em causa as qualificações do ainda governador e do futuro. Outros respondem à falta de independência de um com uma igual falta de independência de outro, comparando a beira da estrada com a estrada da Beira. Vamos por partes.
Comecemos pelas qualificações para o cargo. Tanto Centeno como Santos Pereira são pessoas tecnicamente qualificadas para o cargo de governador do Banco de Portugal. Preferindo Álvaro Santos Pereira por razões que explicarei mais abaixo, não me custa admitir que Centeno possa ser mais qualificado para todas as funções que se exigem de um governador do Banco de Portugal, até por ter tido experiência profissional no Banco de Portugal durante 13 anos antes de ser ministro. Portanto, não é certamente a falta de qualificações que justifica a não recondução de Centeno no cargo.
O problema é que para ser governador do Banco de Portugal não basta ser competente, é também preciso ser independente. Se há instituição que precisa de ser independente do poder político, não estar subjugada a agendas partidárias ou sequer deixar a mínima suspeita de que possa estar, essa instituição é o Banco de Portugal.
Tanto Santos Pereira como Centeno foram nomeados diretamente, sem concurso internacional (o pecado original), depois de terem sido ministros de governos liderados pelo mesmo partido do governo que os indigitou. Mas as semelhanças terminam aqui. Tudo o resto é tão distinto que só por sectarismo se podem comparar as duas situações.
Santos Pereira foi um ministro independente, com pouca força dentro do PSD e do próprio governo, durante dois anos. Acabou por sair precisamente por ser o elo politicamente mais fraco, substituído por um ministro próximo do CDS para segurar o partido mais pequeno na coligação. Depois disso candidatou-se a uma vaga na OCDE, onde o governo português não tem qualquer influência, e acabou por ser promovido dentro da organização até economista-chefe. Durante este período não foi apontado a qualquer cargo de índole partidária, nem se lhe conhece qualquer atividade partidária.
A história de Centeno foi bem diferente. Quadro do Banco de Portugal desde 2000, acabou preterido em 2013 pelo governador da altura, Carlos Costa, para o cargo de diretor do departamento de Estudos Económicos devido às suas intervenções públicas que violariam o dever de reserva. Dois anos depois torna-se ministro de um governo do PS, comprovando que as suspeitas de Carlos Costa sobre a sua falta de independência e dever de reserva estariam certas. Centeno nunca perdoou ao governador ter sido preterido e as relações entre ministro e governador foram tensas com vários episódios entre ambos.
Chegámos a 2020 e havia a necessidade de nomear um novo governador do Banco de Portugal. Não era novidade para ninguém que Centeno aspirava a esse cargo desde os tempos em que lá tinha trabalhado. Tinha um problema, no entanto: era ministro das Finanças e seria o próprio ministro das Finanças a fazer a proposta de novo governador. Se passar de um governo para uma instituição independente já era mau, nomear-se a si próprio seria ainda pior. Centeno e Costa perceberam isso (ao contrário de alguns dos seus defensores hoje) e armaram um dos mais óbvios golpes de teatro da política portuguesa dos últimos anos: o “Caso Novo Banco”.
A nomeação para governador do Banco de Portugal seria em julho de 2020. Dois meses antes, António Costa e Mário Centeno simulam um conflito em torno da injeção de dinheiro no Novo Banco. Marcelo Rebelo de Sousa intervém para dar razão a Costa. Logo aí ficou acordado que Centeno sairia no final de junho depois de apresentar orçamento retificativo, um mês antes da indigitação do novo governador do Banco de Portugal (uma coincidência tão grande como a que Costa teria três anos mais tarde ao ser forçado a demitir-se pouco tempo antes da eleição para presidente do Conselho Europeu – a vida política portuguesa está cheia de azares felizes).
Centeno é substituído pelo seu secretário de Estado, que dias depois indica o seu antigo patrão no ministério para governador do Banco de Portugal. Costa esquece o conflito que tinha tido um mês antes e indigita o ministro que tinha acabado de demitir para governador do Banco de Portugal. Três anos e meio depois, quando Costa se demite a propósito do caso Influencer, indica como possível sucessor para um governo apoiado pela maioria absoluta do PS precisamente Mário Centeno, o ainda governador do Banco de Portugal.
Em resumo: um ministro de um governo PS simula um conflito semanas antes da indigitação do governador para poder ser indicado para o cargo pelo seu ex-secretário de Estado e confirmado pelo seu ex-chefe de governo. Três anos depois é conotado para liderar um governo desse mesmo partido. Independentemente das suas qualificações, que garantias de independência pode dar alguém nesta situação?
Esteja do lado que estiver, quem olha para a história rocambolesca da nomeação de Centeno, de conflitos de interesse, de demissões simuladas para o conflito de interesses não ser ainda mais evidente, ninguém pode de boa fé, comparar esta história com a de Álvaro Santos Pereira, um ministro que chega como independente e sai ao fim de dois anos e depois passa 12 anos sem ligações partidárias, num cargo técnico ao qual acedeu por concurso.
Tudo isto seria mais fácil se a nomeação para governador do Banco de Portugal seguisse um concurso internacional e transparente. O governo teve tempo para tal, mas escolheu não o fazer. Merece ser criticado por isso, mas qualquer paralelo com o caso de Centeno só pode ser feito por ignorância ou sectarismo.
Carlos Guimarães Pinto escreve no SAPO quinzenalmente.