A crise dos partidos é a crise da democracia enquanto estes seguirem sendo – infelizmente – a principal forma de participação dos cidadãos na Democracia.  Urge encontrar formas alternativas de participação e reformar os partidos (por dentro) para que estes sejam mais abertos às suas bases e se potencie a influência das suas bases nas decisões internas. A este respeito, descer os limites dos referendos municipais e nacionais, aumentar o seu âmbito, potenciar e facilitar o acesso às ILCs, simplificar o processo – desburocratizando – eleitoral autárquico abrindo-o mais às listas de cidadãos e permitir a eleição de deputados independentes à Assembleia da República poderiam revelar-se ferramentas de reforma democrática muito importantes.

Recentemente, a Câmara Municipal de Lisboa executou um processo inovador, que advogo há muitos anos como uma das vias possíveis para a reforma da democracia, e que traz em si mesmo algumas virtualidades que poderiam aumentar a participação política dos cidadãos na vida da sua cidade. Poderia trazer, mas... Mas tal não vai acontecer dada a forma incompleta e muito superficial como o "Conselho de Cidadãos" (CCL) foi executado em Lisboa. Apesar desta má execução continuo a acreditar no conceito de uma assembleia de cidadãos e lanço neste texto algumas propostas concretas de melhoria e sabendo que esta foi uma edição experimental acredito que há tempo para corrigir estes erros assim haja vontade política e real adesão a este conceito e não uma simples medida executada para obter efeito mediático e de alcance temporário.

1. Talvez o maior erro do CCL tenha sido o ter partido de uma base de inscritos e não de cidadãos aleatoriamente escolhidos, tendo havido várias opções para o fazer, desde chamadas para números aleatórios, até ao envio de cartas para caixas de correio aleatoriamente escolhidas. É isso mesmo surge no relatório de execução deste primeiro CCL onde se escreve a dado ponto que "as tomadas de decisão derivam de pessoas sorteadas de forma aleatória, através de um processo de amostragem independente, proporcionando a elaboração de propostas mediante um processo deliberativo (Gerwin, 2018). Segundo Gerwin (2018), o ideal é que cada membro elegível da população, para participar numa assembleia de cidadãos, seja convidado a integrar este processo". Aliás, este processo de "selecção" enferma, ele próprio, de uma maleita: todos os especialistas neste tipo de painéis são unânimes: os participantes "não podem ser seleccionados": devem ser escolhidos a partir de uma base de cidadãos de forma aleatória (como, aliás, sucede nos EUA com a escolha dos jurados de alguns tribunais). E é também importante sublinhar (e isso não ficou garantido no CCL) de que não serão novamente chamados a intervir em novos painéis deliberativos porque na aplicação pura deste modelo os cidadãos são chamados apenas para "mandatos únicos e não renováveis" (Manuel Arriaga em "Reinventar a Democracia").

2. O segundo maior erro foi a duração do evento: "Este evento decorreu nos dias 14 e 15 de Maio de 2022, motivando a construção de propostas em torno do tema das alterações climáticas" (relatório do CCL) dois dias é um prazo demasiado curto e que contradiz as recomendações internacionais e ademais a participação no CCL não foi remunerada assim como também indicam as recomendações para este tipo de eventos: "A participação na assembleia de cidadãos é remunerada. Há dois motivos para tal. Primeiro, e tal como (por exemplo) os cidadãos que servem num júri nos Estados Unidos, os integrantes da assembleia de cidadãos estarão a abdicar do seu tempo livre para trabalhar em prol de todos nós. É, por isso, justo que sejam compensados pelo seu trabalho. Segundo, a remuneração dos participantes é uma medida importante para assegurar que cidadãos com menores recursos económicos estarão proporcionalmente representados na assembleia de cidadãos. Sem remuneração, a assembleia seria maioritariamente composta por cidadãos mais privilegiados em termos socioeconómicos."

Dois dias é uma aplicação que pouco mais faz do que trazer algum arrasto mediático não sendo, nem de perto o desejável, nem o recomendado pela entidade parceira: "decorrendo ao longo de meses, tiveram lugar na França (2019-2020), Irlanda (2016-2018), Alemanha (2019) e no Canadá (2004). (Todas estas assembleias ocorreram por iniciativa de instituições políticas desses países.) Estes mesmos princípios são também frequentemente aplicados a uma escala menor. Com a duração de 4-5 dias e envolvendo algumas dezenas de cidadãos, pequenas assembleias de cidadãos (chamadas frequentemente de “júris de cidadãos”) já foram usadas centenas de vezes por todo o mundo."

3. O relatório do CCL indica que "foi elaborada uma “Carta de Funcionamento” com a descrição dos objetivos, princípios e modelo de funcionamento da primeira edição do CCL, considerada uma experiência piloto": mas não a pública nos anexos nem a encontramos no site da CML. O seu conhecimento seria essencial para uma boa avaliação deste processo por parte de terceiros e tornaria todo o processo mais transparente.

4. A divisão dos participantes por grupos também merece maior clareza: "Os participantes foram divididos em 7 grupos (cada um com uma área temática, com as designações das 7 colinas de Lisboa – São Jorge, São Vicente, Santana, Santo André, Chagas, Santa Catarina, São Roque), dos quais resultaram 7 blocos de propostas": Como se repartiram estes 43 participantes (ou os 50 originais) por estes 7 grupos? Isto poderia estar na dita "Carta" que não foi publicada nem divulgada.

5. Segundo o relatório "As sessões incidiram no tema das alterações climáticas, com uma pergunta de partida: “O que temos de fazer para Lisboa enfrentar as alterações climáticas?”: mas o relatório não esclarece de onde surgiram estas perguntas... Porque não houve um processo participativo, aberto e transparente, para a sua escolha? Isso garantiria um maior envolvimento e relevância para os cidadãos das propostas finais.

6. A amostra que deu origem aos 47 participantes do CCL de 2023 aparenta ter vários problemas. Desde logo, a população feminina que participou no CCL foi inferior à masculina o que contradiz os dados populacionais para a cidade (que dão uma maioria de mulheres): e indica – de novo – problemas decorrentes do processo de inscrição e de extracção da amostra para os "participantes" desta edição do CCL.

O nível de desempregados (10%) parece também indicar que esta população se encontra sobre-representada neste CCL devido ao formato escolhido por inscrição e por não haver remuneração associada a esta actividade.

Há freguesias (várias! Alcântara, Carnide e Estrela) com 0% de representação! E outras com 10% tais como Olivais e Parque das Nações: O que indica, novamente, problemas ao nível da escolha dos participantes no CCL. Não parece, também, ter havido uma distribuição proporcional em função da população da amostra: Lumiar p.ex. aparece com apenas 6% quando é a maior freguesia da cidade e Parque das Nações (com 10%) tem cerca de metade da sua população: isto significa que o seu peso nestas propostas teve uma distorção de 400%!

O que são as "habilitações literárias: Outro"? Todas as opções possíveis parecem listadas: isto indica um problema nos dados ou na população que estes reflectem. Com efeito, a distribuição por idades dos participantes no CCL não é representativa da população de Lisboa o que se traduz num problema no processo de selecção de membros.

Outra métrica que revela problemas na amostra são os 22% de "estou envolvido numa associação ou num partido político" que, embora pareça ser consistente com os "três milhões de associados" de um artigo recente do JN na verdade não o é porque todos sabemos que esses "sócios" na maioria o são apenas para usufruto de serviços como os de ATLs ou Lares e que não são realmente associações da sociedade civil e de cidadania activo mas de serviços mais ou menos comerciais. Isto significa que pode ter havido aqui um compreensível e expectável "desvio participativo": isto é, as pessoas que mais participam e que estão mais ativas inscreveram-se mais do que o resto da população o que poderá ter distorcido os resultados finais do processo.

7. Os critérios de selecção dos "oradores especialistas" não são totalmente claros e a sua quantidade pode ser a imposta à duração de apenas dois dias mas certamente que não foi suficiente para um produzir um resultado satisfatório. Nestes modelos, aliás, o recomendado é que o painel de cidadãos seja autónomo na forma como decide captar informação para decidir sobre a matéria em análise, designadamente, através das fontes externas, especialistas ou representantes de diversas e contrárias posições ou interesses. Isso não aconteceu no CCL onde estes "especialistas" foram impostos a partir da própria CML.

8. Este CCL tentou abranger demasiados temas em pouco tempo, comprimindo tudo em apenas dois dias quando noutras aplicações no estrangeiro estes conselhos duraram semanas ou, até, meses. O relatório do CCL dá-me aliás razão quando refere que nem metade dos participantes acreditaram que o fim-de-semana bastou para um bom processo e na citação neste relatório de uma frase de um dos seus participantes:

“Tivemos muito tempo de interação e pouco tempo a trabalhar nas propostas" o qual, ademais, expõe outro problema: além do tempo total ser escasso (dois dias) a sua gestão interna também foi deficiente.

9. Para agravar tudo ainda mais para além de pouco tempo o CCL padeceu também de um excesso de ambição: foram apresentados aos seus participantes demasiados temas e, num outro problema ainda mais grave, zero garantias de que as propostas seriam - alguma vez - executadas porque não há limite orçamental para o CCL, nem calendário, nem sequer garantia que as propostas sejam levadas a votação independente na AML ou incorporadas no próximo orçamento municipal. Se não há orçamento (como devia haver) para o CCL como se garanta a execução e se evita criar um mecanismo desmobilizador para esta e outras iniciativas participativas futuras? Não garantir a execução de todos os projectos saídos de uma assembleia de cidadãos contradiz as recomendações geralmente associadas a este processo e as emitidas pelo próprio parceiro Fórum dos Cidadãos: "As recomendações das assembleias de cidadãos até hoje realizadas têm tipicamente um de dois destinos:

a) As propostas são submetidas a um referendo (por exemplo, o caso da assembleia de cidadãos na Irlanda e das duas assembleias de cidadãos realizadas no Canadá)

b) As propostas são entregues aos órgãos de soberania para que estes decidam sobre a sua implementação (por exemplo, o caso da Convenção Cidadã sobre o Clima em França)". No caso do CCL nenhuma das duas vias parece ter sido – directamente – seguida.

10. Qual foi o sistema de votação adoptado? No relatório diz-se que os "7 grupos (...), dos quais resultaram 7 blocos de propostas. Por decisão do grupo, todas as propostas tiveram dois porta-vozes, que ficaram designados como embaixadores" mas não se clarifica qual foi o processo que levou às ditas propostas. Neste tipo de painéis os autores recomendam maiorias qualificadas de mais de 50% (metade mais um) ou até, de 60%. Foi isso que aconteceu? A omissão deste elemento no relatório dá a entender que não, que talvez se tenha procurado uma solução de consenso o que logo à partida acaba por limitar a ambição e clareza das propostas finais.

Em "Reinventar a Democracia" - provavelmente a melhor obra sobre democracia deliberativa jamais escrita em português, o autor Manuel Arriaga, escreve a dado ponto que "vivemos em sociedades dominadas por uma frustração palpável e generalizada. Todos sabemos até que ponto são falsas as promessas essenciais do nosso sistema político. Contudo, e sem realmente acreditarmos nisso por um segundo, agarramo-nos desesperadamente à ficção de que votar a cada quatro ou cinco anos garante que os políticos que elegemos representarão os nossos interesses". Esta experiência de Lisboa vai reduzir essa frustração ou, pelo contrário, aumentá-la? Será mais uma promessa não cumprida e, logo, mais uma fonte de separação entre políticos e eleitores?

Desde há muito que trabalho e estudo as temáticas da participação e da reforma da democracia. A reforma da participação política dos cidadãos é essencial para defender as sociedades modernas contra os perigos do populismo e para trazer de volta os cidadãos ao centro das políticas públicas. Os conceitos da democracia deliberatória que foram tão bem resumidos por Lyn Carson da "newDemocracy Foundation" - apesar desta implementação deficiente em Lisboa continuam válidos: "Com acesso a informações suficientes e tempo, os cidadãos aleatoriamente selecionados demonstraram que são muito bons pensadores críticos. Quando fazem parte de um grupo diverso, podem, juntos, explorar alternativas, fazer trade-offs e tomar excelentes decisões coletivas". É assim possível melhorar o processo, corrigir as suas falhas e contribuir, assim, para uma verdadeira reforma da democracia em Portugal, criando um exemplo reformista em Lisboa.

No estrangeiro, não faltam exemplos de Conselhos de Cidadãos bem organizados: Em 2004, o governo provincial da Colúmbia Britânica (Canadá) com o seu painel de 160 cidadãos sobre a reforma do seu sistema eleitoral; a avaliação das propostas submetidas a referendo do Oregon (EUA) por um painel de 24 cidadãos ou os "quatro Painéis de Cidadãos da Conferência sobre o Futuro da Europa" que se reuniram em Dublin em março de 2022 com 200 cidadãos europeus, produzindo 51 propostas com votações de 70% em 20 representantes por painel.

O CCL poderia ter sido mais destes exemplos de sucesso. Contudo, para que assim tivesse sido, teria sido preciso corrigir os graves vícios de forma do "Conselho de Cidadãos de Lisboa", designadamente aqueles ao nível da amostra, da selecção, do financiamento, duração e, sobretudo, da eficácia das propostas que daqui saírem. Sem isto, o CCL pode ser um interessante exercício mediático e conseguir - aqui e ali - algumas reportagens mas nunca será aquilo para o qual foi efectivamente pensado: um passo na melhoria da Qualidade da Democracia.

Rui Martins | Eleito local em Lisboa pelo PS à Assembleia de Freguesia do Areeiro (Lisboa), dirigente associativo e coordenador da secção temática "Democracia Participativa" da distrital do PS.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.