No passado dia 21 de Maio, o Presidente francês, Emmanuel Macron, reuniu o Conselho de Defesa e Segurança para analisar um relatório secreto. Qual era o tema do dito relatório? O crescimento e os objectivos da Irmandade Muçulmana na sociedade francesa.
A Irmandade Muçulmana foi fundada em 1928 por um egípcio chamado Hassan Al-Banna. O propósito de Al-Banna não era diferente de outros movimentos islâmicos da época, apostados num alegado retorno à pureza da religião do Profeta e na exploração do ressentimento anti-colonial contra o Ocidente. Al-Banna propôs a aceitação incondicional da soberania absoluta de Deus que tinha como corolário político a criação de um Estado islâmico regrado pela Sharia – a lei de Deus tal como foi expressa no Alcorão. Apelar à instituição de um Estado islâmico significava romper politicamente não só com o domínio colonial, mas, mais tarde, após a independência dos países árabes do poder europeu, significava também romper com a fórmula política do governo militar do nacionalismo árabe (ou até pan-arábe) com uma inclinação relativamente secularizada.
Na ideia originária da Irmandade Muçulmana a estratégia de crescimento formou-se em torno da vocação caritativa e de ensino no seio da sociedade. Depois das independências árabes, a Irmandade recebeu uma influência poderosa de um outro egípcio Sayyid Qutb. Com Qutb, a Irmandade passou a contar com uma ala que abraçava uma missão política declarada, disponibilizando-se para a via da violência se tal fosse necessário para destruir poderes políticos inimigos e desobstruir a via para a edificação de um Estado islâmico. Nasser não perdoou. Perseguiu com crueldade a Irmandade e executou Qutb em 1966. Daí em diante, a Irmandade oscilou entre o radicalismo operacional do terrorismo e da violência, por um lado, e a acção social pacífica pela caridade e pelo ensino, por outro. Mas nunca perdeu de vista o propósito político fundamental: o do islamismo integralista sujeito à determinação de todos os detalhes da vida humana pela lei divina pronunciada pelo Profeta em nome de Deus e pela tradição jurídica (Hadith) que se lhe seguiu.
Em França, o relatório secreto que alarmou o Conselho de Defesa e de Segurança, ainda que não seja um primor de investigação, deixa um conjunto de informações importantes. Depois de a Irmandade considerar a França dar-al-islam, e portanto alvo apropriado da constituição de um Estado islâmico, coloca-se o problema – como, de resto, se coloca na influência de outros grupos radicais islâmicos de influência salafista – de a população francesa muçulmana se deixar seduzir por este propósito. No relatório são descritas as actividades da Irmandade em França segundo uma estratégia descrita como “entrismo”, isto é, como infiltração nas várias instituições sociais francesas e pan-europeias de conteúdo muçulmano. Na cultura, no desporto, nas escolas, a Irmandade vai pacificamente levando por diante o seu trabalho de conversão política, com o objectivo de alcançar a hegemonia nos órgãos municipais. Ao mesmo tempo, seguindo a doutrina do “duplo discurso”, os filiados da Irmandade professam juras de lealdade à República francesa e aos valores liberais que fundam a democracia para aparecerem como cidadãos cooperantes e inofensivos. Na verdade, o segundo discurso – o verdadeiro – fica reservado para a acção de conversão das consciências francesas muçulmanas para retirarem a lealdade às instituições republicanas e aspirarem à sujeição da sharia. Para facilitar essa instrumentalização cínica da liberdade religiosa europeia e das regras gerais do Estado de Direito, a Irmandade em França, diz o relatório, faz amplo uso da palavra “islamofobia” para intimidar os seus críticos, contando para isso com a colaboração estúpida e cobarde dos partidos da esquerda política, que a Irmandade usa, mas evidentemente despreza.
Macron reclamou medidas imediatas após o exame do relatório – apesar de o ter guardado na gaveta por dez meses. Contudo, o relatório, na parte que dedica no final às recomendações de acção, revela os impasses europeus na confrontação com este problema existencial – sim, existencial. Dizem os autores do relatório que o Estado francês deve reconhecer imediatamente o Estado palestiniano como forma de apaziguar a população muçulmana e reduzir a alienação social. Mas, independentemente dos méritos e deméritos desta decisão diplomática, é impossível não ver nela uma submissão total da autonomia do Estado à intractabilidade do problema criado pela solidariedade pan-muçulmana das populações europeias. Em segundo lugar, o relatório sugere o ensino do árabe nas escolas públicas europeias a par do francês, tornando a França, para todos os efeitos, um país bilingue. Uma vez mais, trata-se de aceitar a transfiguração do Estado republicano francês pela pressão demográfica-cultural da população muçulmana. Seria um revés irreversível na estrutura do Estado francês tal como ele foi constituído desde a Revolução francesa – com uma vocação republicana e nacional sem que uma pudesse ser distinguida da outra.
Seria um erro considerar que a Irmandade Muçulmana é um problema exclusivamente francês. O chamado “separatismo” em nome de identidades religiosas densas será um problema de quase todos os Estados europeus num futuro muito próximo. As soluções alternativas não abundam. Todas terão de incluir a integração política de milhões de muçulmanos europeus nos valores liberais dos Estados laicos que a Europa não pode dispensar enquanto quiser permanecer democrática e fiel-depositária dos tesouros incalculáveis que uma civilização esplendorosa lhe legou.
Escreve no SAPO quinzenalmente à terça-feira // Miguel Morgado escreve com o antigo acordo ortográfico