A investigação, que foi capa da revista Nature a 14 de outubro, conseguiu criar um misterioso material que se mantém supercondutor de eletricidade a uma temperatura de aproximadamente 15 graus celsius, não muito diferente da de uma cave de vinho. Um recorde, pois os materiais supercondutores, tanto os que nunca antes saíram das paredes do laboratório como os que já tem uma utilização prática, precisam de estar a temperaturas extremamente baixas – mais baixas do que qualquer temperatura que exista, de forma natural, na Terra.

“O custo para manter estes materiais a temperaturas criogénicas é tão elevado que não se consegue, efetivamente, obter deles todos os benefícios [ou potencialidades]”, salienta o físico Ranga Dias, líder da equipa que fez o estudo, ao site da Universidade de Rochester, em Nova Iorque, instituição da qual é investigador e onde foi realizada as experiência.

O supercondutor que Ranga Dias e outros pesquisadores conseguiram gerar (e já explicaremos como o fizeram) é um cristal ainda muito mal compreendido, desconhecendo-se qual é exatamente a sua estrutura e fórmula química. Além disso, só consegue formar-se e manter-se sob pressões muito elevadas, próximas das que existem no centro da Terra, pelo que não se esperam aplicações práticas no imediato: o passo seguinte passa, portanto, por estudar ao pormenor o cristal criado em laboratório.

Desenvolver materiais supercondutores, em que a resistência à condução elétrica seja igual a zero e que não tenham um campo magnético à temperatura-ambiente, tornou-se, diz o cientista da Universidade de Rochester, no “Santo Graal” da física da matéria condensada, o campo científico que estuda as propriedades de materiais cujas partes constituintes (como átomos e eletrões) são em número elevado e dotadas de fortes interações entre si.

“Devido aos limites das baixas temperaturas, materiais com estas extraordinárias propriedades ainda não transformaram o mundo da forma como muitos possam ter imaginado. No entanto, a nossa descoberta deitará abaixo essas barreiras e abrirá a porta a muitas potenciais aplicações”, sumariza Ranga Dias.

Magneto suspenso sobre um material supercondutor
Um magneto levtita sobre um material supercondutor refrigerado a nitrogénio líquido, a uma temperatura de aproximadamente 196 graus celsius negativos. créditos: Peter Nussbaumer

Exemplos? De acordo com a Universidade de Rochester, este tipo de supercondutores poderá permitir que as redes elétricas deixem de perder, devido à resistência provocada pelos fios, à volta de 200 milhões de megawatts por hora – o equivalente a mais de 17 milhões de toneladas de petróleo. Espaço, igualmente, para novas formas de impulsionar os comboios de levitação magnética (os Maglev) e outros transportes. As técnicas de imagiologia e diagnóstico médico, como a ressonância magnética e a magnetocardiografia (que mede a atividade eletromagnética do coração), também podem sair beneficiadas, tal como a eletrónica de muitos aparelhos, a qual se tornaria mais rápida e eficiente.

Um dos coautores do artigo publicado na Nature, Ashkan Salamat, da Universidade do Nevada, em Las vegas, salienta que com este tipo de tecnologia é possível fazer com que a humanidade passe de uma “sociedade de semicondutores” para uma “sociedade de supercondutores, onde nunca mais serão precisas coisas como baterias”.

A ‘alquimia’ que criou o novo material supercondutor

Primeiro, um pouco de história, para os acontecimentos recentes fazerem sentido. A supercondutividade, descoberta em 1911 pelo físico neerlandês Heike Kamerlingh Onnes, após ter esfriado um fio de mercúrio até aos 4,2 graus celsius negativos, dá aos materiais duas propriedades fundamentais: a ausência de resistência elétrica e de um campo magnético. Desta forma, as linhas de um campo magnético acabam por ter de passar à volta do material supercondutor, tornando possível a sua levitação – como sucede nos comboios Maglev, os quais se deslocam sem fricção.

Em 1957, os norte-americanos John Bardeen, Leon Cooper e Robert Schrieffer conseguiram explicar o fenómeno, o que lhes deu o Nobel da Física em 1972. A teoria BCS, como ficou conhecida, preconiza que quando um eletrão com carga negativa passa por um material supercondutor ele distorce a sua estrutura de átomos, atraindo até si uma pequena carga positiva. Esta pequena carga, por sua vez, atrai um segundo eletrão, o que faz com que o par de eletrões se ligue e se comporte como uma só entidade: ao formarem um só sistema, este par de eletrões consegue então fluir sem resistência pelo supercondutor.

O britânico Neil Ashcroft, em 1968, avançou com a ideia de que um outro tipo de material também pode mostrar supercondutividade, igual à descrita pela teoria BCS: hidrogénio submetido a uma intensa pressão. Desde então, várias equipas científicas tentaram obter um supercondutor à base de hidrogénio usando uma prensa, do tamanho da mão, composta por dois diamantes. A liliputiana substância era colocada entre os dois diamantes e estes esmagavam-na a uma elevada pressão, mas os resultados sempre levantaram suspeita: as pressões envolvidas eram superiores às que existem no centro da Terra, o que quase certamente significava que os diamantes acabavam por rachar.

Face ao problema, Neil Ashcroft voltou à carga, em 2014, sugerindo que ao hidrogénio se juntasse um outro elemento, capaz de agir como pré-compressor, tornando possível a supercondutividade a uma temperatura elevada e recorrendo a pressões mais baixas. Foi precisamente isso que fez, e conseguiu, uma equipa do Instituto Max Planck, na Alemanha, em 2015, ao submeter uma mistura de hidrogénio com enxofre a uma força 1,5 milhões de vezes superior à pressão atmosférica do nosso planeta. O supercondutor obtido não oferecia qualquer resistência elétrica, isto a uma temperatura então recorde de 70 graus celsius negativos.

Em 2018, uma experiência conduzida nos Estados Unidos, na Universidade George Washington, trocou o enxofre pelo lantânio e aumentou a pressão em um terço, conseguindo um material supercondutor aos 13 graus celsius negativos. Contudo, e em ambas as experiências, assim que a pressão era retirada o material obtido desintegrava-se.

Laboratório da Universidade de Rochester onde são criados novos materiais supercondutores
Laboratório da Universidade de Rochester onde são criados novos materiais supercondutores. A azul está o aparelho que contém a prensa de diamantes. créditos: Adam Fenster

Basicamente, o que o grupo de Ranga Dias fez foi usar uma prensa de diamantes semelhante, mas, desta vez, o composto que ficava no meio era formado por três elementos diferentes, em vez de dois: hidrogénio, enxofre e carbono. O carbono foi essencial, pois é capaz de formar ligações fortes com outros átomos diferentes. A pressão exercida foi de quase três quartos da que existe no centro da Terra. Em seguida, um laser de raios X atravessou os diamantes, despoletando uma reação química que transformou os três elementos em cristais transparentes. E voilà, um material capaz de supercondutividade a 15 graus celsius. Só que, tal como antes, o material formado desfez-se assim que deixou de existir a pressão.

A publicação do estudo, que prova ser possível usar três elementos diferentes para chegar a resultados nunca antes vistos, abre a possibilidade a que investigações futuras possam experimentar outros elementos e, portanto, tentar com pressões mais baixas chegar a supercondutores à temperatura-ambiente, “para que sejam económicos de produzir em grande volume”, esclarece Ranga Dias.