Há mais de 20 anos que Catarina Alves Costa procura fugir dos pensamentos obsessivos com o peso e a alimentação. Catarina reconheceu cedo a vontade de se refugiar na comida para encontrar conforto.

“Comer desde bolachas a pizzas congeladas e a beber três litros de leite com quatro caixas de cereais seguido e não estar satisfeita. Começa a perder-se a noção. Depois vem a angústia, vem a culpa.”

De acordo com a endocrinologista Isabel do Carmo, “estão criadas todas as condições para haver compulsão alimentar, pelo facto de existirem alimentos muito apelativos e que são relativamente baratos. Esses alimentos podem fazer desencadear a doença do comportamento alimentar, que tem padrão de doença mental.”

Em Portugal estão diagnosticados, através dos Centros de Saúde, mais de 10 mil casos de doenças do comportamento alimentar. O número mais alto de que há registo. As situações mais graves, que obrigam a hospitalizações, são sobretudo por anorexia nervosa.

Com 1,64 de altura, Ana Sofia Fernandes chegou aos 32 quilos. Foi internada na residência Elysio de Moura, localizada no Pólo de Valongo da Unidade Local de Saúde de São João. É a única resposta residencial que existe no Serviço Nacional de Saúde (SNS) para pessoas com perturbações alimentares. A idade mínima de admissão é de 18 anos.

O caminho que Ana Sofia teve de percorrer até voltar a vislumbrar um futuro demorou mais de dois anos. A mãe, que acompanhou de perto a doença da filha, recorda o sofrimento pelo qual também passou.

Um em cada 10 doentes acaba por morrer

A anorexia é a doença psiquiátrica com maior taxa de mortalidade: um em cada 10 doentes acaba por morrer.

"É muito angustiante e destrutivo do funcionamento para uma família que não sabe o que quer fazer, porque à medida que os seus filhos vão perdendo peso, podem oscilar entre querer obrigar a comer, o que não resulta nada. Ter grandes discussões à hora da refeição por causa da comida, também não resulta nada, ou desistirem e baixarem os braços porque têm receio de poder fazer alguma coisa que esteja errada", explica a psiquiatra Dulce Bouça.

Enquanto na anorexia as pessoas restringem ao extremo o que comem, na ingestão alimentar compulsiva intercalam períodos de restrição com o consumo de grandes quantidades de comida em muito pouco tempo.

Na bulimia também existe compulsão, mas para evitar engordar, os doentes recorrem, de seguida, a estratégias compensatórias, como o vómito ou o uso delaxantes.

A bulimia é a expressão da doença do comportamento alimentar que Vanessa Revez enfrenta há sete anos.

“O medo de engordar é tão grande como na anorexia. As redes sociais também me influenciaram muito. Só vivia para o ginásio, para a alimentação. É muito exaustivo, é muito angustiante… Enquanto na droga, se fomos viciados, nunca mais voltamos, na comida, se nós tivermos um problema de comportamento alimentar, para nos curarmos temos de comer regularmente.”

A endocrinologista Isabel do Carmo explica que “a dependência do álcool, da droga e dos doces é exatamente o mesmo mecanismo: a libertação de dopamina. Se a pessoa não tem acesso ao dito doce, pode haver ressaca.”

A dopamina é um neurotransmissor do sistema nervoso central associado à sensação de prazer. Quando o consumo de açúcar é em excesso, libertam-se níveis elevados de dopamina e o número de receptores que existe nos neurónios diminui e passa a ser necessário consumir mais e mais açúcar para se obter a mesma sensação de prazer. Quando isto acontece, os comportamentos tornam-se compulsivos.

Em Portugal, oito em cada 100 raparigas sofrem de algum tipo de perturbação alimentar. Quatro vezes mais do que os rapazes.

O peso das redes sociais

De acordo com um estudo recente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, a satisfação com o aspeto físico diminui entre os jovens que passam mais de três horas por dia nas redes sociais. Estas plataformas estão repletas de corpos que parecem perfeitos. Não faltam aplicações para contar as calorias dos alimentos, fazer dietas ou seguir planos de treino com promessas de resultados milagrosos.

O aspeto físico está entre os fatores que os jovens dizem ser dos mais determinantes para se sentirem felizes e é também aquele em relação ao qual estão menos satisfeitos. Mais de metade dos jovens afirma, aliás, estar insatisfeito com a própria imagem.

O aspeto físico é ainda a razão pela qual mais jovens dizem ter-se sentido discriminados, mais do que pelo género, idade, etnia ou orientação sexual.

Na unidade de internamento de pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, a capacidade de resposta está no limite: “Nós temos 16 camas e atualmente chegamos a ter metade das camas, ou seja, oito camas com casos patologias do comportamento alimentar”, afirma Sandra Pires, pedopsiquitra nesta unidade hospitalar.

Alentejo e Algarve com "uma situação muito complicada”

O diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, Miguel Xavier reconhece que a área da psiquiatria da infância e adolescência se debate com uma enorme falta de recursos humanos, principalmente médicos pedopsiquiatras.

“Formam-se muito poucos [pedopsiquiatras] por ano, muito menos do que era desejável em termos de especialidade e, de facto, as equipas são muito escassas. Fundamentalmente a sul do Tejo, portanto, Alentejo e Algarve, a situação é muito complicada.”

Cansados do passo lento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), um grupo de especialistas candidatou-se a apoios financeiros e fez nascer, em 2023, na Clínica Psiquiátrica de São José, em Lisboa, uma alternativa pioneira: um hospital de dia para tratamento de perturbações alimentares. Recebe doentes a partir da adolescência.

“A ideia do hospital dia é exatamente tirar as pessoas de um tempo permanente que passam a pensar em comida e em controlo da comida”, afirma a psiquiatra Dulce Bouça, que coordena este projeto.

O desconhecimento e o preconceito

Quem sofre de uma perturbação alimentar tem muitas vezes de enfrentar também o desconhecimento e o preconceito em relação a estas doenças. É o caso de “Tiago” - nome fictício - que sofreu de anorexia durante mais de 10 anos.

"Não conseguia dizer a ninguém que tinha anorexia. Os meus pais ainda hoje não sabem que eu tive anorexia. Eles tiveram consciência que eu não estava bem, porque eu estava muito magro, mas eles não percebiam o que se passava. O esconder vem sobretudo disso, de um sofrimento que é sozinho e de percebermos que o mundo à volta não vai perceber. E não é fácil encontrar pessoas que passassem pelo mesmo tipo situação, sobretudo um homem .”

A psiquiatra Dulce Bouça refere que é frequente as doentes deixarem arrastar a doença, e alerta: “É preciso que haja tempo, mas que haja pressa, porque senão as doenças tornam-se crónicas. Quando começam a surgir os primeiros sinais de que um adolescente ou uma criança se sente mal com o corpo ou que começa a fazer restrições, não vão procurar imediatamente dietas para perder peso. Falem com o médico de família, e se as coisas se agravarem, então orientar para uma consulta especializada.”

Do lado dos profissionais, realça que devem existir “consultas que tenham intervenção psicológica, nutricional e médica a funcionar articuladamente, e que haja também uma resposta para os pais. Esta é a chave para trata estas doenças".

FICHA TÉCNICA

  • Jornalista: Catarina Marques catarinamarques@sic.impresa.pt
  • Imagem: Romeu Carvalho; João Fontes
  • Drone: 4kfly
  • Edição de Imagem: Rui Félix
  • Grafismo: Marta Coelho; Rui Aranha; Tomé Alves
  • Legendagem: Spell
  • Produção Editorial: Diana Matias
  • Colorista: Jorge Carmo
  • Pós-produção áudio: Octaviano Rodrigues
  • Coordenação: Miriam Alves
  • Direção: Marta Brito dos Reis; Ricardo Costa