
Com um percurso que começou como especialista em sustentabilidade e evoluiu para um papel transversal na identificação de tendências e desenvolvimento de parcerias, Ana Costa, Sustainability & Blue Economy Director na Beta-i, acredita que a colaboração entre setores, startups, academia e entidades reguladoras é essencial para acelerar a economia circular — e aponta os desafios e oportunidades que o país enfrenta nesta transição.
Nesta entrevista, fala sobre os entraves legais à circularidade, o potencial da colaboração intersetorial, o papel da legislação e da fiscalidade verde, e a importância de envolver startups e centros de investigação no desenho das soluções do futuro.
Com exemplos concretos de pilotos colaborativos, como o passaporte digital de embalagens ou a reutilização de resíduos de pneus nas ferrovias, Ana desmonta os desafios que ainda travam a inovação em sustentabilidade e mostra os caminhos para quem quer começar a colaborar e acelerar a transição.
Como define a economia circular no contexto da gestão de resíduos?
Vejo a economia circular como uma mudança de paradigma face ao modelo linear do "take, make, dispose". Precisamos de criar ciclos infinitos para os materiais. No entanto, muitas empresas ainda estão focadas apenas nas suas cadeias de valor diretas — fornecedores e clientes — e não olham para fora.
A grande oportunidade surge quando diferentes cadeias de valor começam a colaborar. Mas há um entrave legal: um resíduo, por definição, tem de ser encaminhado para um destino final adequado, geralmente através de uma entidade gestora licenciada. Isso impede que resíduos passem livremente de uma empresa para outra como matéria-prima.
A desclassificação de resíduos é crítica
É por isso que a desclassificação de resíduos é tão crítica. Sem isso, é difícil ativar o potencial total da economia circular. Além disso, precisamos de integrar o ecodesign desde o início: criar produtos com ciclos longos, duráveis, fáceis de reparar e reutilizar. Isso exige mudanças nos modelos de negócio, que atualmente ainda estão muito orientados para o curto prazo. A fiscalidade verde também pode ajudar aqui, premiando boas práticas — mas apesar de estar prevista no Plano Nacional para a Economia Circular, ainda não foi implementada.
Qual é o papel da colaboração entre setores na economia circular?
É fundamental. O investimento necessário para investigação e desenvolvimento é elevado, mas partilhado entre várias empresas, torna-se mais viável, mais rápido e mais robusto. Para isso, é preciso um novo mindset colaborativo.
Antigamente, os diferentes elos de uma cadeia de valor — como produtores, marcas, distribuidores, recicladores — mal se conheciam. Agora, com projetos colaborativos, vemos cadeias a evoluírem em conjunto. Ainda há desafios, claro. Certos materiais têm mais potencial de sinergias do que outros. Mas quando há colaboração real, os resultados são muito mais consistentes, como se vê nos pilotos conjuntos.
Pode dar um exemplo de um projeto colaborativo bem-sucedido?
Sim. Um bom exemplo é o piloto do passaporte digital de produto, no projeto Resource, com a Sociedade Ponto Verde. Reunimos o Centimfe (centro tecnológico), a Silvex (produtora de embalagens de alumínio) e a startup Lynx para testar se conseguimos implementar este passaporte digital em embalagens. É um projeto a 18 meses e ainda sem resultados finais, mas mostra como a colaboração entre indústria, investigação e startups traz o futuro para o presente.
Outro exemplo: a ValorPneu, entidade gestora de pneus usados, juntou a Infraestruturas de Portugal (IP) e a Universidade de Coimbra para desenvolver um revestimento alternativo e não tóxico para as travessas de madeira da ferrovia. Estão a testar o uso de materiais provenientes de pneus reciclados — borracha, aço e têxtil — para substituir o produto tóxico atualmente utilizado, que tem de ser retirado até 2029. Este projeto só aconteceu porque houve uma colaboração tripartida, com potencial de aplicação nacional e internacional.
Quais são os maiores obstáculos à colaboração e como superá-los?
O maior obstáculo é legal, especialmente a questão da desclassificação dos resíduos. Isso impede que materiais que podiam ser reutilizados circulem entre empresas.
Precisamos que as entidades reguladoras — como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ou a ADENE — estejam mais envolvidas e criem mecanismos de teste controlado, como sandboxes regulatórias. Esses espaços permitiriam testar soluções de forma segura, por tempo limitado e em condições específicas, para perceber se são viáveis técnica e financeiramente. Hoje, há boa vontade por parte dessas entidades, mas faltam ferramentas para atuarem dentro da legislação atual.
O maior obstáculo é legal, especialmente a questão da desclassificação dos resíduos. Isso impede que materiais que podiam ser reutilizados circulem entre empresas
Qual é o papel das startups e da academia?
Essencial. As universidades trazem conhecimento técnico e laboratórios de teste. As startups trazem agilidade, talento e um mindset de impacto. Hoje, muito do talento está fora das grandes empresas e nas startups, que são motores de inovação.
Abrir as grandes empresas às startups acelera a inovação e reduz o risco. É exatamente isso que fazemos na Beta-i: somos uma plataforma que ajuda empresas a inovar mais rápido e com menos risco, através de colaboração com startups e centros de investigação.
As políticas públicas e a regulamentação ajudam ou dificultam a inovação?
Na Europa, temos um excesso regulamentar que serviu como motor para liderar a transição climática — o famoso caminho para o Net Zero até 2050. Mas isso também tirou competitividade às empresas, que em vez de inovar, estão presas a reportar e a cumprir requisitos legais.
Felizmente, estamos a passar da regulamentação para a ação, com mais foco em projetos concretos e menos em relatórios. Mas é importante não perdermos o rumo. A regulamentação teve um propósito e não podemos esquecer os compromissos como o Acordo de Paris. Agora, a comunicação e o combate ao greenwashing também entram na equação, assim como temas como biodiversidade e o papel do cidadão.
Em vez de inovar, as nossas empresas estão presas a reportar e a cumprir requisitos legais.
Como vê o futuro da economia circular nos próximos cinco a dez anos?
Vejo a economia circular como um caminho inevitável para a descarbonização e para a gestão eficiente dos recursos. É uma forma de reduzir a pressão sobre o planeta e de criar novos modelos de negócio — como o aluguer, a reparação ou o right to repair.
A economia circular pode ser uma grande oportunidade de requalificação profissional
Também acredito que a economia circular pode ser uma grande oportunidade de requalificação profissional, especialmente para setores em transição, como os combustíveis fósseis. Vai exigir reconversão de competências, tal como acontece com a Inteligência Artificial. Estamos perante várias crises em simultâneo — ambiental, tecnológica, geopolítica — e a economia circular pode ser uma ferramenta importante de resposta a muitas delas.
Que conselhos daria a quem quer iniciar projetos colaborativos em sustentabilidade e resíduos?
Depende de quem está a começar. Se for uma grande empresa, recomendo unir-se a outras do mesmo setor. O caminho coletivo é mais poderoso que o individual. Falar com entidades gestoras e procurar soluções em conjunto é mais eficaz.
Se for uma marca, traga a sua cadeia de valor para o processo, em vez de trabalhar sozinha
Se for um estudante, procure os núcleos de investigação das universidades. Muitas vezes são muito fechados, mas podem beneficiar da troca de conhecimento e de competências com outros centros. A interdisciplinaridade é chave. Trabalhar em conjunto, mesmo entre centros com valências muito diferentes, pode ser um caminho promissor para a inovação e para a economia circular.
Qual a sua função na Beta-i?
Entrei para a Beta-i como especialista em sustentabilidade. O meu papel era traduzir e descomplicar todo o universo da sustentabilidade — desde os resíduos às entidades gestoras e seus desafios — para a equipa de inovação. A Beta-i é uma consultora de inovação, não somos especialistas em sustentabilidade, mas começámos a sentir uma necessidade crescente no mercado: os nossos consultores precisavam de compreender melhor estes conceitos, para ligar inovação e sustentabilidade.
Com o tempo, fui assumindo um papel mais estratégico. Atualmente, identifico tendências, analiso os clientes e procuro oportunidades de desenvolvimento de parcerias. Também sou responsável pela qualidade da entrega dos projetos e por provocar sinergias entre setores. Acredito muito que a sustentabilidade — e, em particular, a economia circular — depende dessa transversalidade, dessa "brincadeira" entre cadeias de valor distintas, porque é aí que encontramos os espaços de inovação e colaboração real.