Ordeiro e paciente. Assim estou eu aguardando numa bicha invisível. Enquanto ataco estas linhas, constato que os sistemas algorítmicos que se espalham como ervas daninhas pelas veredas da nossa existência são uma fraude. — “Estás na fila de espera para o SL Benfica VS Sporting CP”, avisa-me uma dessas incontestadas tecnoactualidades. Chama-se “Queue-it” e gere filas virtuais para bilheteiras igualmente imaginárias. A “Queue-it” é burra. Não aprendeu. Não sabe nada, meus amigos! E é preciso que lhe ensinem: o jogo do próximo Sábado não é “SL Benfica VS Sporting CP”. Nunca foi. É o Benfica contra o Anti-Benfica.

Eis a verdade. Escancarada. Implacável e sem pó-de-arroz.

O Sporting nunca existiu. O Sporting é uma fantasia, um delírio, um ectoplasma. “Sporting”, assim mesmo com aspas, é código. Uma cifra. Um grimório de signos obscuros para designar uma seita gnóstica vestida de verde, fanatizada na transubstanciação do ódio puro em devoção clubística. Não é pouco. E não é comum.

Foi em 1906, e a birra está escrita em acta (conforme a versão): “Pedirei dinheiro ao meu avozinho e fundarei o meu próprio clube.” Que entrada! A saga começa com a bazófia de um puto moralizado. É lindo.

Lá se arranjaram os tais fundos. E nasceu o Sporting. Clube de Portugal. Com um nome assim, a ambição era evidente: um desígnio nacional, a representação desportiva do Império, um conjunto de atletas prodigiosos, forjados na ideia de que o Sporting era, ele próprio, uma civilização superior, concebidos para esmagar adversários orientais, continentais, interplanetários. Só que esse conjunto não existia. E era preciso arranjar. Vai daí, rouba-se a equipa principal do Sport Lisboa — que era o Benfica.

No início do século XX os clubes eram os salões de convívio da sociedade. Se fossem de futebol, os membros jogariam entre si, como cavalheiros. Mas no Sporting não. O Sporting nasce, não do desporto, mas do despeito. Da pirraça. Do mais puro teatro. As barbas desta história já foram afagadas mil vezes, mas nunca é demais recordar o pecado inaugural: o Sporting veio ao mundo para acabar com o Benfica. Sempre, só, eternamente.

Enquanto uns se impõem pelo seu ressentimento, outros consomem-se na sua grandeza. O Benfica — que não tinha par —, a partir dos anos 60, passou a jogar contra si mesmo — e a ganhar. Mais tarde, nos anos 90, continuou a fazê-lo — e a perder.

O Sporting, esse, nunca foi contra si mesmo: sempre jogou contra o vizinho. Em qualquer parte do mundo. O seu problema não é interno. É projectado. E o seu ódio não é pessoal. É hereditário.

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Certo dia, numa dessas salas-de-estar da Grande Lisboa, um distinto avô ortopedista babava-se em orgulho: “Não imagina. É ferrenho. Daqueles que não pode ver encarnado nem pintado!” E assim se começa.

Eis por que, mesmo tendo o Benfica sido campeão em 1987, o Sporting imortalizou os sete golos que nos espetou — e, de facto, são imortais — na única derrota dessa época. Como se tivesse erguido um caneco maior que o dos Campeões Europeus. Na alma leonina há um altar invisível onde essa goleada brilha. E para onde o sportinguista peregrina sempre que pode.

Pelo caminho, vai cantando contra o Benfica em todos os jogos, seja qual for o adversário. E, quando é forçado a escrever o nome da flor da sua obsessão, fá-lo em letra minúscula. É o amor invertido. É o amor com espinhos para dentro.

No Sporting fala-se em “melancias” — gente que se diz do Sporting, mas que não detesta o Benfica que chegue. Mas no Benfica há um exemplar paralelo. É a melancia-inversa — um estranho vegetal que veste de vermelho e branco, mas rejubila, com escárnio e ódio pouco natural num benfiquista, com os dislates sportinguistas. Tem família do Sporting, amigos do Sporting, empáfia à Sporting, sapatinho à Sporting, corte de cabelo à Sporting (sim, há um corte de cabelo à Sporting) — tudo à Sporting. Menos o Sporting. Tenta sacar um Carnide ao contrário. Propõe Lumiar ou O Conchas. Mas não tem a mesma graça. Falta-lhe fel. Falta-lhe invenção. Há gente assim.

Ora, não desmereço a rivalidade e a picardia. É uma coisa fabulosa. Das melhores que pode haver e fazem tudo isto valer a pena. Mas — entendam-me —, sempre que vejo aqueles cachecóis das claques a dizer “Anti-Lagartos” algo desafina. Não é a mesma coisa. É pastiche. É só eco.

Disseram por aí que, no Domingo, “o leão” tirou três pontos “do fundo da alma”. O Benfica ganhara 2-1 contra o Estoril. E o Sporting? Fez igual. Num esforço. E o que veio depois? Buzinão nas ruas. Não celebravam terem continuado na luta. Festejavam o paralelo. A imitação. É o que os move. E que os condena.

Nesse jogo contra o Gil Vicente, podia ler-se nas bancadas: “Juntos vamos apagar a Luz”. Mas eu li outra coisa. Eu li Nabokov: “Benfica, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Ben-fii-ca.”

Sábado que vem joga-se tudo. E tudo é tudo. A vida inteira. Um tipo ou vai ao estádio para sofrer ou mete-se num bunker durante dois dias com um terço e aguardente. Nunca pôde o campeonato decidir-se para um dos lados, num só jogo. É demasiado, caro leitor e adepto.

E será dificílimo. Repare: O Benfica jogará contra si próprio. O Sporting — perdão — o Anti-Benfica contra o seu Benfica. E todos contra o mesmo. Um tipo fica zonzo.