Iúri Leitão é um fenómeno do desporto em Portugal. Finalizou os Jogos Olímpicos 2024 com duas medalhas na área do ciclismo de pista, e tem um lugar garantido nos anais da história. Devido aos feitos que alcançou, o Bola na Rede decidiu atribuir-lhe o prémio de Personalidade do Ano e viajou até Viana do Castelo, de modo a realizar-lhe uma entrevista, centrada na sua carreira, que (ainda) tem muito por onde crescer.

BnR: Boa tarde, Iúri Leitão. Um prazer estar aqui contigo.

Iúri Leitão: Boa tarde, o prazer é todo meu.

BnR: Que significado tem este prémio para ti (Personalidade do Ano Bola na Rede)?

Iúri Leitão: Para mim é um orgulho enorme poder ser distinguido com um prémio como o de Personalidade do Ano do Bola na Rede. É ver o nosso trabalho, ou seja, o meu e o das pessoas que trabalham comigo, ser reconhecido. É um motivo de muito orgulho.

BnR: Ao nível individual, quais os objetivos para a próxima temporada?

Iúri Leitão: Eu e a minha equipa temos um plano para mudar um pouco o foco, tendo em conta que a preparação olímpica já foi passada. A qualificação foi feita e os Jogos também já terminaram. O novo ciclo olímpico começa apenas daqui a dois anos. Talvez mude o foco um pouco, mais centrado na estrada, de modo a definir novos objetivos para algo que nunca tenha tentado fazer. Deve passar um pouco por aí.

BnR: Enquanto ciclista, quais são os teus pontos fortes e as tuas debilidades/aspetos a melhorar?

Iúri Leitão: O que considero que as minhas maiores valias são a explosividade e o meu sprint, destaco-me por ser muito rápido, em particular na pista. Sou um ciclista bastante tático, costumo manter a calma. É algo que me tem ajudado a ter bons resultados, essa frieza tática. Nos pontos negativos, na estrada é óbvio, sendo um sprinter, subo bastante mal (risos). Há certas coisas que também é praticamente impossível melhorar. Em termos genéticos, temos qualidades e defeitos. Não se pode conseguir ter tudo.

«considero que as minhas maiores valias são a explosividade e o meu sprint, destaco-me por ser muito rápido, em particular na pista».

BnR: Suponho que enquanto sprinter, um dos teus objetivos passe por ser um dos melhores da Europa nesse aspeto…

Iúri Leitão: Eu não sei exatamente até que ponto exatamente posso chegar na minha carreira de estrada. Tenho uma capacidade e percebo que posso entregar alguns bons resultados à minha equipa. Mas não sei até que ponto consigo chegar. Claro que o sonho passa por ser sempre o melhor possível, mas não tenho totalmente a noção de onde posso chegar. Está na hora de levarmos as coisas passo a passo, começarmos por baixo e descobrir pouco a pouco até onde consigo chegar, sem pressas e sem stress.

BnR: Em relação a 2024, na estrada, vais procurar na Caja Rural um comboio rápido para ir tentando vencer ao sprint?

Iúri Leitão: Pela informação que eu tive vinda da minha equipa, o nosso comboio vai estar reforçado, digamos assim. Acho que merece uma oportunidade de ver como a equipa consegue funcionar na próxima época. Espero que seja a minha equipa seja capaz, para que não ande a fazer esse tipo de manobras, mas se houver alguma situação de aperto e eu tenha que recorrer a outra equipa, vou continuar a fazer o mesmo de sempre, entregando os resultados um bocadinho à força (risos).

BnR: É inevitável não falarmos um pouco dos Jogos Olímpicos 2024. Como foi vencer, não uma, mas duas medalhas na prova?

Iúri Leitão: Tendo em conta que não tinha a expetativa de trazer nenhuma medalha, foi espetacular. Foi extraordinário poder sair de lá com duas medalhas. Íamos bastante reticentes, eu e toda a seleção, o meu colega. Não sabíamos exatamente o que íamos encontrar, mas sim que o nível ia ser alto, mais complicado que nos Campeonatos da Europa e do Mundo, que era o que estávamos habituados a competir. O facto de eu ser Campeão do Mundo não me pesou nada, porque sabia que ia para um desafio completamente diferente de qualquer outro. Quando começa a prova de Omnium e eu consigo trazer a medalha de prata, senti que afinal por mais que fosse uma prova muito mais exigente, nós conseguíamos estar à altura e já encarei o Madison de outra forma. Aí já acreditava mais do que antes de conquistar a primeira. Mas no começo não conseguia imaginar.

«Não sabíamos exatamente o que íamos encontrar nos jogos olímpicos, mas sim que o nível ia ser alto, mais complicado que nos Campeonatos da Europa e do Mundo, que era o que estávamos habituados a competir».

BnR: Para quem não conhece, quais são as grandes diferenças entre o Omnium e o Madison?

Iúri Leitão: O Omnium é uma prova de regularidade. Temos quatro provas que se desenvolvem durante uma tarde e os melhores classificados em cada prova vão recebendo mais pontos. O primeiro leva 40 pontos, o segundo 38, o terceiro recebe 36, por aí vai. Vão-se somando pontos ao longo das provas. Na última, junta-se as três pontuações e faz-se uma corrida por pontos, onde somamos pontos ao longo da prova. Quem tiver mais pontos no final, vence. A lógica do Madison é muito parecida, já que quem tem mais pontos, também vence. Porém, é apenas uma prova, a cada 10 voltas há um sprint. As primeiras quatro equipas a passar na meta ganham pontos. No último sprint os pontos são a dobrar. As equipas que conseguirem uma volta de vantagem em relação às outras somam 20 pontos, o que é uma quantidade de pontos muito avultada, já que a cada sprint no máximo apenas se conseguem cinco. É uma questão de a equipa conseguir fazer uma gestão da energia e alcançar a maior pontuação possível.

BnR: Preferes correr sozinho ou acompanhado?

Iúri Leitão: Neste caso é difícil escolher, porque são provas muito diferentes. O Omnium é a corrida rainha da prova individual. Todos querem participar nesta prova. Porém, o Madison tem aquela parte especial e espetacular de ser com um colega. O companheirismo aí é muito importante. O pódio foi muito mais especial no Madison, não por ser ouro em demérito da prata do Omnium, mas sim por estar a partilhar o pódio com o meu colega, um amigo. É especial mesmo por isso, pelo companheirismo. Isto não quer dizer que o Omnium seja melhor ou pior. São diferentes, não consigo tomar uma decisão quanto a isso.

BnR: Como foi a experiência de teres chegado a Portugal e teres sido recebido por uma multidão de gente?

Iúri Leitão: Foi inacreditável. Nunca imaginei que tantas pessoas pudessem ter visto e pudessem ter dado valor ao nosso resultado. Não vou mentir, esperava uma boa receção no aeroporto, porque já tinha acontecido antes. Eu próprio já fui receber grandes atletas que tinham obtido grandes resultado. Porém, o que mais me surpreendeu foi chegar aqui a Viana do Castelo e ver tanta gente. Estamos a falar de pessoas que nem sequer são ligadas ao desporto, provavelmente. Simplesmente estavam orgulhosas de um conterrâneo ter conseguido duas medalhas e saíram de casa a uma segunda-feira à noite para me receber. Fiquei feliz e de coração cheio.

BnR: Acreditas que a tua prestação vai fazer com que a modalidade cresça em Portugal?

Iúri Leitão: Eu acho que sim, porque eu próprio cresci no ciclismo de pista. Eu já faço o de estrada desde os seis anos. Eu descobri o ciclismo de pista porque começámos a ter alguns resultados, ainda que discretos no princípio, como um Campeonato de Juniores ou Sub-23. Fui tendo contacto com o desporto dessa forma. Falamos de resultados de pouco relevo, mas na altura foram importantíssimos, porque estávamos a dar os primeiros passos. Quando falamos de duas medalhas olímpicas a dimensão é muito maior. Vai ser uma alavanca para que as pessoas prestem mais atenção e apoiem. Acho que vai ser muito bom para nós.

«As pessoas não sabem disto, mas a maior parte da preparação do ciclismo de pista é feito na estrada. 90% do tempo é passado na estrada e na bicicleta de estrada, não na de pista».

BnR: Praticas tanto o ciclismo de estrada, como o de pista. Quais são as diferenças de preparação para as provas?

Iúri Leitão: As pessoas não sabem disto, mas a maior parte da preparação do ciclismo de pista é feito na estrada. 90% do tempo é passado na estrada e na bicicleta de estrada, não na de pista. O que muda muitas vezes são o tipo de esforços que nós fazemos. Preparando a estrada fazemos esforços mais longos e de maior endurance. Já na pista fazemos esforços mais curtos, séries mais curtas e com maior intensidade para estar de acordo com aquilo que acontece nas provas, já que estas têm 10/15 minutos. No caso do Madison são 50 minutos, mas são provas muito intensas. O aspeto técnico e tático tem que ser treinado dentro do velódromo. A bicicleta é muito diferente, a posição na mesma, a maneira de a conduzir. A bicicleta não tem travões, não se pode parar de dar aos pedais. Também há a questão da madeira, a inclinação… são coisas que se têm de treinar para não se perder a rotina de manusear a bicicleta. Claro que a parte tática é completamente diferente do que acontece na estrada. São provas muito intensas e temos de fazer muito treino da parte mental, para não sermos apanhados de surpresa nas provas.

BnR: Centremo-nos um pouco no ciclismo em Portugal. Qual a importância do Velódromo Nacional de Sangalhos na modalidade?

Iúri Leitão: É praticamente toda (risos). Se não tivéssemos esse velódromo não tínhamos ciclismo de pista. Ele foi terminado de construir em 2009, quando surgiu o ciclismo de pista. Foi aí que tudo nasceu, não tínhamos tradição no ciclismo de pista. Houve até um concurso para selecionador e nenhum dos candidatos tinha experiência. A partir do momento em que se constrói o velódromo tudo começa. Se estamos neste nível é graças a essa infraestrutura. Temos lá as condições necessárias para nos prepararmos para este tipo de provas.

BnR: Conheces seguramente vários ciclistas portugueses. Em Portugal consegues viver da modalidade, hoje em dia?

Iúri Leitão: Não é fácil. Os valores que se pagam em Portugal não são tão generosos como acontece lá fora. Não é por isso que não dá para viver do ciclismo em Portugal, mas tendo em conta o esforço e a dificuldade, acho que o ciclismo português devia ser muito mais recompensado. Tenho amigos que competem cá, eu já fui profissional por cá, acho que é insuficiente. É certo que há meia dúzia de ciclistas, que, entre aspas, ganham bastante bem, com um bom salário. Mas a maioria não tem um ordenado justo para aquilo que faz. Temos muitos portugueses a competir e sem dificuldades financeiras, por isso dá para viver. Mas acho que é insuficiente.

BnR: Como está o estado do ciclismo nacional?

Iúri Leitão: Acho que está a melhorar bastante. Nos últimos anos tenho visto um crescer do ciclismo português. Temos passado por um momento de renovação, acho que alguns ciclistas mais velhos estão a começar a abandonar a carreira e está a vir sangue novo. Os jovens têm muita capacidade de crescer e de serem bons profissionais. Está a ser um momento positivo e de evolução. Temos outras questões que têm abalado o desporto, mas são males que vêm por bem. Temos tudo para melhorar a partir de agora.

BnR: Acreditas que vão haver mais ciclistas portugueses a correr em equipas estrangeiras?

Iúri Leitão: Eu não posso dizer isso com certeza absoluta, mas estou confiante que sim. Tenho visto muita evolução nos jovens e na condição que eles têm em Portugal. Temos tudo para ter cada vez mais ter ciclistas profissionais portugueses no estrangeiro.

BnR: Como é que a Volta a Portugal pode voltar a ter grandes nomes, como já ocorreu no passado?

Iúri Leitão: É difícil. O principal motivo que ‘deita abaixo’ a competição, tendo em conta o calendário internacional, é coincidir com o começo da Volta a Espanha. Está numa zona complicada do calendário e as grandes equipas mundiais preferem estar em provas que lhes deem mais visibilidade e pontos UCI. No final, tudo se resume aos pontos UCI. No final do ano tem que se estar acima no ranking e é isso que conta. Temos também a questão do investimento. Para a prova ser superior, são exigidos outro tipo de critérios, e é preciso mais investimento, mais patrocinadores. Para se crescer tem que se dar um passo muito maior e realocar a prova no calendário, o que não é fácil. Para o mercado português, falando da publicidade e exploração, está na melhor altura que podia estar. Não tem muito como chamar outras equipas, mas para Portugal está muito bem colocada.

«Temos tudo para ter cada vez mais ter ciclistas profissionais portugueses no estrangeiro».

BnR: Ao nível pessoal, quem são as tuas referências no ciclismo?

Iúri Leitão: Essa pergunta é complicada (risos). Eu cresci sendo ciclista e a ver ciclistas como o Alberto Contador e o Mark Cavendish, que vi desde a minha infância. Hoje em dia só há um todo poderoso e que todos admiramos: Tadej Pogacar. Nunca competi com ele, é de uma equipa rival, mas não tenho como não o admirar. Ele é uma referência, tem uma atitude muito boa. A nível nacional, tendo em conta os resultados dos últimos anos e a minha idade, cresci com o Rui Costa a ser um grande ciclista, a vencer etapas no Tour, a ser Campeão do Mundo… são os nomes que posso destacar, por enquanto.

BnR: Achas que o Tadej Pogacar pode marcar uma era, como já fizeram outros, como o próprio Alberto Contador?

Iúri Leitão: Acho que ele já marcou e continua a marcar a cada dia que passa. Se me perguntasses há dois anos, eu ia dizer-te que sim, e cada ano que passa ele marca cada vez mais. É uma resposta fácil.

BnR: Esperas encontrar-te com ele em breve?

Iúri Leitão: Já tive a oportunidade de falar com ele por mensagens (risos). Acho que o próximo passo é estar com ele.

BnR: Muito obrigado por esta conversa, em nome do Bola na Rede, desejo-te o melhor para o teu futuro!

Iúri Leitão: Muito obrigado!