Foi há 29 anos e quatro dias, a 18 de maio de 1996. O país parava, mas, desta vez, não pelos melhores motivos. Havia festa, inicialmente, no Estádio do Jamor, daquelas semelhantes à de todos os anos. Afinal, estávamos perante a final da Taça de Portugal, desta vez com um sempre intenso dérbi entre Benfica e Sporting. Contudo, tudo mudou drasticamente.

Era mais uma final da Prova Rainha, aparentemente como qualquer outra, embora colocasse frente a frente dois eternos rivais. O Benfica venceria esse jogo (3-1), mas, infelizmente, o que ficou na memória foi tudo menos isso.

Pouco depois do apito inicial, Rui Mendes, adepto do Sporting que estava na bancada Norte do Estádio Nacional, à altura destinada aos adeptos leoninos, foi atingido, na zona do pescoço, por um very light disparado por Hugo Inácio, adepto do Benfica que estava situado na bancada Sul, destinada aos adeptos encarnados. O objeto foi de uma bancada à outra e acabou a tirar a vida a Rui Mendes. A tragédia acontecia.

Apesar do sucedido- bombeiros e polícias juntaram-se no local e adeptos do Sporting, movidos pela revolta, tentaram chegar à zona dos adeptos do Benfica-, o jogo prosseguiu. Muita tinta se escreveu desde então e o zerozero foi à procura dos testemunhos de quem viveu esta tragédia no local.

«Lembro-me dos adeptos do Sporting a gritarem "assassinos, assassinos"»

«Apercebi-me, depois, daquele clarão que abriu na bancada do Sporting, mas não me dei conta do very light ter saído. Não me apercebi bem do que tinha acontecido. Ao início até pensei que era algum desagrado por estarem a perder o jogo, porque foi um pouco antes do golo inaugural. Mais para o final do jogo apercebemo-nos do que tinha acontecido porque as pessoas começaram a ouvir na rádio. Gerou alguma preocupação. Era uma situação que não deveria acontecer em lado nenhum. Havia preocupação de quem estava em casa porque não havia telemóveis como hoje. Foi um pós-jogo estragado, que deveria ter sido de festa. As notícias chegavam-nos na rádio e mais no final do jogo é que começámos a perceber», começa por dizer-nos Fernando Ribeiro, adepto do Benfica , hoje sócio com red pass, que à data tinha apenas 16 anos.

Os festejos do Benfica, pós jogo @Direitos Reservados

Hoje técnico de equipamentos de laboratório e presença assídua no Estádio da Luz juntamente com a esposa, Fernando lamenta o sucedido a Rui Mendes e à sua família: «Adoro futebol, tenho a minha filha em lista de espera para red pass, mas dou por mim a pensar que poderia ter sido eu naquele dia. Ele não provocou nada nem ninguém. É algo que assusta. Ele estava a divertir-se, a aproveitar o espetáculo e aconteceu uma coisa destas.»

«Perto» de Fernando estava Tiago Silva, também ele adepto do Benfica. Hoje com 47 anos, na altura com 17, Tiago recorda como esteve, dias antes, «horas à espera no Estádio da Luz para comprar um bilhete». Quanto ao dia em si, relembra a estranheza sentida no momento, quando desconhecia a gravidade do sucedido, pela reação sportinguista ao golo inaugural, do argentino Mauro Airez.

«O estádio estava repleto. O golo do Mauro Airez foi logo aos nove minutos e lembro-me do Costinha ter defendido para a frente e ele ter feito a recarga. Durante o golo não nos apercebemos de nada. Estávamos a festejar, a bola foi ao centro e depois vimos uma grande clareira na bancada Norte. Vi muitos adeptos do Sporting a abandonar o Estádio, mas também muitos a correr na direção dos adeptos do Benfica com paus. Achámos estranhos estarem a querer bater-nos por terem sofrido. Mais tarde, as pessoas começaram a falar nas bancadas que um adepto do Sporting tinha sido atingido por algo, ouviram na rádio. Foi assim que descobrimos. De outra forma, ninguém se tinha apercebido», explica-nos.

Do outro lado do estádio, na bancada Norte, a versão da história e a perceção do sucedido foram, como esperado, bem distintas. Estivemos à conversa com Álvaro Oliveira e Nuno Raimundo, dois adeptos de longa data do Sporting que estavam a poucos metros da zona onde faleceu Rui Mendes. Ambos relatam momentos de horror.

«Quando entrámos, assim que começou o jogo, aconteceu o que aconteceu. Estava na bancada Norte, a 15/20 metros do local. Lembro-me de ver o segundo very light a embater nos eucaliptos. Parecia um foguete. Nem imaginava o que era. O primeiro foi para o ar, o segundo bateu no eucalipto e o terceiro veio na nossa direção, mas nem percebia o que era inicialmente. Lembro-me dos adeptos do Sporting a gritarem "Assassinos, assassinos" para os adeptos Benfica e a pedirem para o jogo acabar. Nos primeiros minutos nem me apercebi da gravidade, só passado 15/20 minutos. Mas continuámos a ver o jogo porque continuou», acrescenta Álvaro, na altura com 25 anos e atualmente a viver no Reino Unido, perto de Birmingham, de onde nos atendeu enquanto trabalha num dos seus supermercados.

«Lembro-me de estar no estádio e haver, pelo menos, dois [very lights] que foram lançados e embateram numa árvore. Pensei que era uma parvoíce estarem a atirar aquilo com mato à volta. Na minha opinião, nem atiraram para matar, queriam só causar confusão. Vi uma clareira a abrir, devia estar umas dez filas acima. Chamou-se as ambulâncias e bombeiros e nós decidimos ir embora. Não vimos a 2ª parte. Estávamos completamente revoltados. Nem foi por temer pela nossa segurança, foi mesmo revolta por continuarem o jogo. Há coisas muito mais importantes do que o futebol. Acredito que até os adeptos e jogadores do Benfica, se soubessem o que tinha acontecido, quereriam parar o jogo», acrescenta Nuno, que na altura tinha 20 anos.

«O jogo tinha de ser cancelado»

Pensar em algo assim nos dias que correm leva a questionar o que seria feito. O bom senso, tendo em conta as condições tecnológicas e o nível de segurança mais apertado que se vive nos estádios, leva a pensar que o jogo seria prontamente interrompido, analisando-se mais tarde consequências e resoluções seguintes.

Não foi o que sucedeu na altura.

Mauro Airez a celebrar o 1-0 @Arquivo pessoal

Apesar de todo o aparato (natural) causado pelo sucedido na zona de adeptos do Sporting, o jogo prosseguiu «como se nada fosse», como nos relatam os quatro adeptos. Ao intervalo, quando o Benfica já vencia por 2-0, houve no entanto uma reunião de emergência sobre o desfecho do encontro, com os comandantes da polícia, o primeiro-ministro, o presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Gilberto Madail, e os presidentes dos clubes, José Roquette e Manuel Damásio.

Apesar de algumas partes envolvidas, como o presidente Jorge Sampaio, terem defendido a interrupção imediata do jogo, as forças policiais entenderam que o mais seguro seria finalizar o jogo, não entregar o troféu e retirar do recinto, separadamente, os adeptos de cada clube, com algum tempo de distância, para evitar confrontos.

A opinião dos adeptos entrevistados sobre esta decisão divide-se.

«Concordo com a perspetiva de terem continuado. Não é por o futebol estar à frente de tudo, claro. Hoje em dia, se acontecesse algo assim, toda a gente se aperceberia do que aconteceu. Naquela altura não. Se, na altura, interrompessem o jogo sem ser explicado, acho que poderia causar ali um caldeirão maior. Apesar de tudo, deu ali algum tempo para a própria polícia se preparar para a saída dos adeptos e não ser tão explosiva», aponta Fernando (Benfica), "apoiado" por Álvaro (Sporting).

«Estava ansioso e receoso durante todo o jogo porque poderia voltar a acontecer. Nunca pensei que fossem matar alguém», afirma.

Contudo, por outro lado, Tiago (Benfica) e Nuno (Sporting) não entendem a decisão de se ter continuado a jogar e questionam o facto de terem continuado o jogo «como se nada fosse», quando havia morrido alguém minutos antes, rodeado de adeptos da sua equipa, num ambiente, aparentemente, de festa.

qO jogo tinha de ser cancelado e deveriam ter feito a saída dos adeptos de cada equipa à vez
Tiago Silva, adepto do Benfica

«O jogo tinha de ser cancelado. Não sou especialista em situações de segurança, mas deveriam ter feito a saída dos adeptos de cada equipa à vez. O que não fez mesmo sentido foi continuar a jogar e fazer uma festa que de festa não teve nada. É uma final em que daqui a 50 ou 100 anos as pessoas vão falar disto. Não é o título do Benfica que fica na memória, mas sim um adepto do Sporting ter sido assassinado», aponta Tiago.

«A polícia tem de garantir a segurança das pessoas e dos espaços. Não é evitando que as pessoas vão para os sítios, como, por exemplo, impedindo que comam e bebam ao pé do Estádio, que vão conseguir controlar as pessoas. Era interromper o jogo, primeiro saíam os adeptos do Benfica, depois os do Sporting. Não sou especialista em segurança, mas parece a tese do Trump que para acabar com os incêndios se deve cortar as árvores. Anos antes, quando em Alvalade caiu o varandim (0-1), eu estava lá e também não deveria ter havido jogo», acrescenta Nuno.

«Poderia também haver algo entre os dois clubes, alguma homenagem»

Mais de 29 anos passaram. Quase todos os anos, o Sporting faz algum tipo de homenagem, no dia 18 de maio, ao falecido Rui Mendes. Contudo, nunca houve propriamente uma sensibilização coletiva, por parte de ambos os clubes e entidades envolvidas, para este momento. De resto, é comum ouvirmos, especialmente em jogos entre os dois rivais de Lisboa, assobios a imitar o barulho de um very light...

Os quatro adeptos pedem o comportamento devido para o jogo deste domingo - embora temam possíveis comportamentos - e há quem peça uma devida homenagem aos dois clubes.

«Lamento que não exista nenhuma iniciativa do Benfica. Infelizmente existem alguns energúmenos que continuam a fazer aqueles barulhos dos very lights. É ridículo. São miúdos que nem sequer eram nascidos quando tal aconteceu. O clube não intervém. Muitos adeptos do Benfica pedem para pararem, mas o clube não intervém. Deveria fazer algum tipo de comunicado. Poderia também haver algo entre os dois clubes, alguma homenagem, ou por parte da FPF, para abordar o elefante na sala. Houve filhos a ficarem órfãos e uma mãe que deve ter tido uma vida dificílima», concluiu Tiago Silva.