O país - político e o real - anda sobressaltado pelo funcionamento do Instituto Nacional de Emergência Médica(INEM). As consequências de uma greve vieram colocar a nu as condições de funcionamento de uma casa que desempenha um papel de enorme relevância para a nossa sociedade. E que infelizmente tem sido tão mal tratada, como já o havia assinalado em anterior artigo publicado no Expresso.
Sinto-me compelido a escrever novamente sobre uma instituição que conheço muito bem e a cujos quadros pertenço desde 2001, apesar de estar em situação de licença sem vencimento. Aí fui dirigente por mais de uma vez, conhecendo bem a realidade do seu dia-a-dia e as dificuldades que há muito apresente.
Malogrado o esforço de trabalhadores e dirigentes, tem sido votada ao esquecimento por parte dos sucessivos decisores políticos. Existiram algumas honrosas exceções - governantes que efetivamente procuraram mudar para melhor um cenário que há muito se vem colocando negro -, mas para aqui chegarmos existe um histórico que há muito tempo estava à vista de todos.
O INEM tem profissionais do mais competente que existe. Tem também dirigentes de grande qualidade. O que falta então? Proponho uma curta viagem sobre as dificuldades do INEM.
Além das que refiro, muitas outras existem, mas por uma questão de espaço há que ser seletivo. Ainda assim, ficam motivos suficientes para a necessidade de uma verdadeira reflexão para quem tenha o poder de decisão.
É verdadeiramente difícil e complexo gerir uma instituição em que dos 2013 postos de trabalho previstos no mapa de pessoal, apenas 1345 estão preenchidos. Ou seja, um terço do número de vagas do INEM está disponível para contratação, rácio que é igual para os Técnicos de Emergência Pré-hospitalar (TEPH). E dos 49 lugares de médicos previstos, apenas 25 estão preenchidos.
No passado, as autorizações para contratação surgem a conta gotas e entre 2018 e 2023 o saldo entre entradas e saídas foi de apenas 28 colaboradores. Ou seja, não só as necessidades de reforço de pessoal são evidentes, como as contratações autorizadas nos últimos anos não têm resultado num efetivo reforço dos operacionais.
É verdadeiramente difícil e complexo gerir uma instituição em que o órgão máximo de gestão tem apenas dois membros: um presidente e um vogal. Situação que, aliás, é de duvidosa legalidade, já que tendo o presidente voto de qualidade, vingará sempre aquela que seja a sua decisão, não existindo assim um órgão verdadeiramente colegial. Vejam-se, por exemplo, as Unidades Locais de Saúde (ULS), cujos conselhos de administração têm no mínimo seis membros. Uma entidade de âmbito local como uma ULS tem seis administradores, mas o INEM que é de âmbito nacional tem apenas dois! A quantidade e a responsabilidade dos assuntos que requerem a atenção do Conselho Diretivo é de tal ordem que apenas super-heróis são capazes de dar resposta eficaz. E da última vez que vi, super-heróis só na banda-desenhada.
É verdadeiramente difícil e complexo gerir uma instituição que tem 711 veículos no seu parque automóvel - entre viaturas médicas, ambulâncias, motos de emergência, viaturas de apoio, etc. - e que tem as mesmas regras para gerir esse parque automóvel que a restante administração pública. Como é fácil de imaginar, com tantos veículos, a toda a hora há pequenas e grandes avarias, pequenos e grandes incidentes, pequenas e grandes anomalias para resolver. Não faltam exemplos de veículos parados durante semanas e meses a aguardar reparação. As regras gerais do Estado não são adequadas para gerir instituições que exigem uma grande flexibilidade e rapidez nas respostas.
É verdadeiramente difícil e complexo gerir uma instituição em que a aquisição de ambulâncias demora qualquer coisa como 18 meses. Nesse período dá para nascer duas crianças, mas o Estado não consegue adquirir uma viatura de emergência. Entre vários motivos, porque os concursos de aquisição de viaturas são feitos de forma centralizada - pela eSPap (Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública) e pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde - com toda a ineficiência e ineficácia que isso representa. Aliado a isso, o critério do mais baixo preço que é aplicado faz com que no final desses processos de aquisição, as viaturas/ambulâncias entregues não sejam as melhores e mais adequadas. Os milhões que o Estado gasta para fingir que poupa …
É verdadeiramente difícil e complexo gerir uma instituição em que os Sistemas de Informação estão parados no tempo. As atuais tecnologias possibilitam um vasto conjunto de ferramentas e auxílios à atividade no terreno e nos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), que estão por explorar. É possível ganhar tempo no processo de triagem das emergências, facilitando o trabalho dos TEPH. Bem como é possível melhorar o processo de circulação da informação sobre os doentes graves atendidos, garantindo uma melhor receção hospitalar e um melhor atendimento global das vítimas de acidente ou de doença súbita. Em emergência médica tempo é vida.
Neste domínio, o INEM parou no tempo, arrisco-me a dizer. Nem sempre foi assim, durante muitos anos o Instituto estava na vanguarda da tecnologia, mas está agora estagnado.
Para todos estes desafios é possível encontrar respostas. Assim exista vontade política.
Vamos então agora a esse domínio. É um hino à hipocrisia - e à falta de vergonha! - ver os vários partidos políticos falarem sobre a atual situação do INEM. Os indicadores de resposta da emergência médica pré-hospitalar vêm-se degradando de há muitos anos a esta parte. Essa degradação resulta da insensibilidade dos decisores políticos - executivos e legislativos- para a particularidade da missão do INEM, que exige regras específicas e excecionais.
Todas estas questões foram faladas inúmeras vezes na Assembleia da República, em comissões parlamentares, no plenário, nos corredores. Não podem os deputados dizer que não sabiam das dificuldades existentes. Não deixa de ser curioso - e lamentável - que muitos apenas se sobressaltaram quando um deles (um ilustre parlamentar eleito por Braga) se sentiu mal na casa da democracia e teve de esperar 40 minutos por socorro. E o resto da população, senhores deputados?
Típico do funcionamento do Parlamento: faz-se política em função das notícias do momento e uma vez afastados os temas dos holofotes, tudo volta a cair no esquecimento. Até à próxima manchete ou abertura de telejornal, em que lá voltam a aparecer com o seu habitual tom de indignação. Uma desgraça nacional, esta forma de fazer política! E também os sucessivos governos têm responsabilidade pelo estado a que chegou o INEM. Perde-se a conta aos repetidos avisos, relatórios, reuniões, gritos de alerta. Em muitos deles eu próprio estive envolvido. Mas tudo isso esbarra no gestor político que governa em função da folha de Excel, da ditadura das finanças, da visão meramente financeira da gestão da coisa pública. E no final, para que servem os excedentes orçamentais quando definham instituições que fazem a diferença entre a vida e a morte?
Deve a classe política nacional meter a mão na consciência pelo estado a que se deixou que chegasse o INEM. Será que ainda a tem?