Entre a pandemia e a primeira linha de uma das maiores crises humanitárias de sempre, Luís falou com o SAPO sobre o seu dia a dia em Lesbos e alertou para a burocracia que atrasa os direitos humanos e os ideais europeus e das Nações Unidas por cumprir.

Como surge a ideia de ir para Moria e de onde vem essa motivação?

Em 2014 fui trabalhar para Angola por dois anos, na minha área profissional. E acho que foi aí que esta área humanitária passou a ser mais importante para mim. Tive contacto com uma realidade completamente diferente, com um nível de injustiça e disparidade a que não estamos habituados na Europa.

Entretanto, foi crescendo o interesse nesta área, e, quando comecei a ter alguma possibilidade financeira, procurei algumas organizações e fui apoiando com donativos regulares.

Luís Cochofel
créditos: Luís Pedro Cochofel

No ano passado, comecei a trabalhar de forma totalmente remota para uma empresa e a mover-me para países onde pudesse juntar estas duas vertentes – continuar a minha carreira na área de Recursos Humanos e dar apoio humanitário. Esta zona da Grécia e Turquia chamou-me também a atenção por se situar na Europa e ter um fuso horário compatível com o meu trabalho.

Entretanto, com a pandemia ficou tudo bloqueado. Tinha pensado em vir em abril ou maio, mas não houve hipótese. Mal reabriram as candidaturas para voluntariado, candidatei-me e fui selecionado para vir para aqui, ou melhor, para Moria, o maior campo de refugiados da Europa.

Saí de Portugal no dia 7 de setembro e no dia 8 houve o incêndio. Fiz uma pequena quarentena de cinco dias e, quando cheguei, a maior parte das pessoas já estava no novo campo – o Moria 2.0.

Há ainda algumas pessoas na rua, que se recusam a ir para o campo porque têm medo que seja fechado e se torne numa prisão ao ar livre.

Crianças fogem após os incêndios que deflagraram no início de setembro no anterior campo de Moria EPA/ORESTIS PANAGIOTOU

Angola foi importante para dares mais atenção a estas questões humanitárias, mas quando sentiste realmente a vontade de ir para o terreno?

A motivação vem muito de pensar numa lógica de me pôr na pele dos outros, de empatia, mas não é fácil para nós colocarmo-nos na pele de uma pessoa que tem um percurso de vida tão diferente do nosso. Na verdade, eu não escolhi nascer em Portugal, tive a sorte de nascer em Portugal e na União Europeia, e de ter a liberdade que nós temos. É uma sorte na vida, ninguém escolheu nascer na Síria ou estar aqui.

A maior parte das pessoas que estão aqui são pessoas com estudos, inteligentes e informadas, e conhecem as condições dos campos da Grécia antes de virem.

Mesmo conhecendo as condições que a Europa lhes oferece, elas continuam a achar que é a melhor opção e isto mostra o desespero que existe do outro lado do mar.

Eu não escolhi a vida que tenho, mas posso ajudar a tornar a vida dos outros um pouco melhor.

E qual tem sido o teu trabalho no campo de Moria?

Sou voluntário na Refugee 4 Refugees, uma ONG mais pequena. A organização estava a desenvolver um projeto de suporte psicossocial para os próprios voluntários. Eu sou formado em Psicologia e, inicialmente, vinha para trabalhar nesse projeto – é muito difícil para quem lá está, mas também não é fácil para quem vai ajudar.

Porém, com os incêndios e todo o caos que emergiu daí, neste momento fazemos todo o trabalho mais urgente, porque todas as mãos são necessárias. Neste momento, a grande prioridade é a preparação das tendas para o inverno.

Estamos também a construir valas à volta das tendas e chão com paletes e um isolamento de contraplacado a fazer de chão, mas nem metade do campo tem isto.

Desde que cheguei, estávamos a garantir que toda a gente tinha um cartão que lhes permitisse receber alimentos. E estivemos a fazer uma instalação de água porque neste momento não há água corrente no campo. Já estivemos a montar camas para um centro de crianças da UNICEF ou distribuir comida. Fazemos tudo o que seja necessário.

Como é a tua relação com os requerentes de asilo e refugiados?

As pessoas ouvem falar de números, mas quando ouvem falar da história de vida das pessoas é diferente. Neste momento, estão cerca de 7600 pessoas no campo e já é uma pequena vitória, porque o campo chegou a ter vinte mil pessoas e na altura do incêndio entre 12 a 13 mil pessoas.

Cada pessoa tem a sua história de vida e houve alguns casos que me marcaram. Um deles foi o de um refugiado do Afeganistão, com quem falei há uma semana. Tem 21 anos e está a fugir há oito. O que ele me disse foi:

“Não quero boas condições, nem nada do bom e do melhor, só quero poder sentir que sou tratado como um humano e sentir humanidade.” Isto dá muito que pensar e no que a União Europeia está a oferecer a estas pessoas.

Depois, há voluntários que são refugiados também. Algumas pessoas falam muitas línguas, português inclusive. Conheci um destes voluntários da comunidade, 25 anos, e que estava a estudar línguas na Síria. Ao fugir da Síria com a família, morreu o pai, os irmãos e irmãs e a mulher. Morreu toda a gente de quem ele era próximo. Agora está a trabalhar connosco e todo o dia tem um enorme sorriso.

Outra pessoa que me marcou muito foi um engenheiro, com cerca de 50 anos, que trabalhava nos campos de petróleo da Síria. Conseguiu fazer o percurso da Turquia à Grécia e ficar na Alemanha, onde trabalhava desde 2015 na sua área de formação. No início deste ano, voltou à Turquia para ir ter com a mãe, o pai e irmãos que não conseguiram asilo. Neste processo, quando entrou na Turquia perdeu as condições que tinha e agora está a fazer todo o processo de novo. Portanto, está em Moria a requerer asilo. Tem boas condições financeiras e não vive no campo, mas está perto e vai todos os dias ao campo ajudar como tradutor.

Todas estas histórias, e outras tantas, dão-me muita força para continuar.

Qual é o impacto da pandemia no campo?

À entrada do campo a temperatura é medida a toda a gente, mas a COVID-19 não é uma prioridade. Mesmo nos incêndios e com a fuga, o contacto com a doença aconteceu muito mais do que se poderia controlar.

Entre a pandemia e a crise humanitária, médica portuguesa em Lesbos relata desumanização e avisa: "Isto está a ser feito com o consentimento de todos”
Entre a pandemia e a crise humanitária, médica portuguesa em Lesbos relata desumanização e avisa: "Isto está a ser feito com o consentimento de todos”
Ver artigo

Os voluntários das ONG e da comunidade usam máscaras, mas eu diria que a maior parte das pessoas no campo não usa. Ouvia-se falar dos casos a aumentar – aqui como em todo o lado – e de repente deixou de haver updates oficiais, mas também não tem havido hospitalizações devido à COVID-19.

As populações de risco foram aquelas que foram mais rapidamente isoladas ou enviadas para a Grécia continental ou para outros centros independentes.

Como é o sentimento de quem trabalha todos os dias em Moria?

O que eu sinto é que neste campo há demasiadas organizações e burocracia e por isso muita coisa não acontece. Há muitas reuniões e espera por decisões e há muita confusão. Acho que não está a ser prático nem diligente para a vida das pessoas que estão aqui.

E sinto isto de uma forma mais crítica da parte das grandes organizações, que deixam a desejar principalmente em termos da velocidade com que tratam as situações.

Tudo demora, há sempre questões políticas e burocráticas e isso causa-me muita revolta.

Sinto que as organizações mais pequenas são as que estão a fazer mais, ou de uma forma mais célere, pelo bem-estar das pessoas no campo, mas mesmo nós, para fazer seja o que for, precisamos da aprovação de alguém superior.

Como é o teu dia a dia em Moria?

Vivo numa casa de voluntários com sete pessoas, no centro de Mitilene, a capital da ilha. Há dias em que vamos para o campo e outros para o armazém preparar coisas.

E quando não estás a trabalhar no campo, como passas o teu tempo livre?

Nos dias em que estive de quarentena antes de vir para aqui, tive uma videochamada com a equipa de voluntários e com um médico psiquiatra que trabalha com pessoas que passam por estes processos. Ele próprio é ex-refugiado. É iraniano, vive na Europa e todos os anos faz missões humanitárias. Ele diz que, quando sai do campo, precisa de ter uma vida com boas condições, para se lembrar que há uma vida melhor e ao mesmo tempo estar a cem por cento para trabalhar e dar tudo às pessoas que precisam do apoio – foi algo que eu retive e a que dou muita importância.

Estou a viver numa ilha grega, com boa temperatura, boas praias… Tento manter-me ativo, dou umas corridas, ando de bicicleta, vou à praia e conheço pessoas locais. Ainda hoje, já fiz 5 km a correr e fui a uma piscina de um hotel.

Luís Cochofel
créditos: Luís Pedro Cochofel

Como reagem a tua família e amigos? 

A minha mãe sugere que podia ficar em Portugal a ajudar, na lógica de que há pessoas que precisam de ajuda em todo o lado. E é verdade e eu dou o meu apoio a quem fique a ajudar a sua comunidade local.

Isto se calhar tem que ver com o impacto que Angola teve em mim, porque a realidade é tão diferente e parece que os problemas em Portugal são de uma escala diferente. Aqui ou em Angola ou na Venezuela... não são comparáveis. Para todos os efeitos, Portugal tem condições de primeiro mundo e talvez eu sinta que aqui possa fazer a diferença.

Nas redes sociais, partilho algumas histórias do que se passa no campo, mas também partilho alguns momentos de lazer e sinto que estes momentos são mais vistos ou comentados do que os momentos da informação.

Mas sentes que não há interesse em saber mais sobre este tema?

Em Portugal, este tema não tem o peso que deveria ter. É tanto um problema de Portugal como da Grécia. Sei que Portugal vai acolher dezenas de jovens não acompanhados, mas se calhar ainda é possível fazer mais.

Conhecemos as pessoas e percebemos que não são estas pessoas que vão dar cabo da Europa. Não vão ser aquelas sete mil pessoas que vão dar cabo de uma Europa de centenas de milhões.

A UE tinha de ter um papel mais forte. Eu sou um grande defensor dos ideais da UE e das Nações Unidas, mas os seus ideais não estão a ser vividos no dia a dia no terreno.

Como concilias o teu trabalho com o voluntariado?

No início da pandemia, a empresa para a qual trabalho deixou de ter tanto trabalho na minha área e o contrato não foi renovado. Vou voltar ao trabalho no próximo mês e penso que vou pôr em prática a ideia original – trabalhar quatro dias por semana na empresa e dois ou três dias por semana no apoio ao campo de refugiados.

Depois vou voltar a trabalhar de uma forma remota, mas à partida fico até metade de novembro. Vou visitar o meu irmão, que vai ser pai, à Bulgária, e depois volto para Portugal. Em 2021, logo vejo, é possível que volte para cá ou para outros lugares, queria manter esta lógica de conciliar o trabalho do dia a dia com trabalho humanitário.

Luís Cochofel
créditos: Luís Pedro Cochofel

Sinto que se nós estivermos ali, podemos melhorar o dia daquelas pessoas e isso dá-me força para voltar.

Vejo o que tenho feito e o impacto nas pessoas, o sorriso das pessoas com algo simples, seja ajudar a levar a comida para a tenda ou dar uns toques na bola e ver uma criança sorrir. Sinto muita vontade de continuar a trabalhar neste tipo de projetos.

O que cada um de nós pode fazer?

Há sempre o receio de que se deixe de falar do tema e que fique tudo na mesma ou pior. É importante manter os olhos abertos em relação ao que se está a passar aqui.

Refugee4Refugees 

É uma ONG fundada e sediada em Lesbos, na Grécia, sem afiliações políticas, religiosas ou étnicas que trabalha na primeira linha na crise humanitária grega.

Tem como objetivo oferecer apoio sustentável e assistência humanitária aos migrantes de todas as nacionalidades que chegam a Lesbos e Samos a pedir asilo na Europa.

A Refugee4Refugees promove a participação num ecossistema global, onde os refugiados e requerentes de asilo são também envolvidos ativamente nas intervenções humanitárias.

É o nosso quintal, estamos na União Europeia. Lesbos é tão União Europeia como o Porto, mas o problema não é da Grécia, isto é um problema da União Europeia.

A Grécia não tem culpa desta situação geográfica – não estou também a defender o governo grego ou dizer que fazem tudo de uma forma excelente, porque de facto não fazem –, mas também creio numa responsabilidade mais partilhada.

Nem todos têm a disponibilidade para se deslocar até aqui, mas podem informar-se e fazer algumas doações a ONG que possam fazer algo.

É importante também simplesmente criar e partilhar informações para não deixar esquecer o assunto. Seja apenas mais uma pessoa que esteja informada sobre o assunto, já é uma vitória. Quantos mais soubermos, melhor.