Mbodou vivia tranquilamente com a família numa ilha do grande lago Chade, bem no centro do continente africano, quando numa noite tudo mudou. Guerrilheiros do grupo radical islâmico mais sanguinário do mundo, Boko Haram, irromperam pela ilha, reuniram toda a população no centro da povoação e cortaram a garganta ao chefe da comunidade… em pleno século XXI. Os 20 homens armados advertiram que quem não os seguisse acabaria da mesma forma. Começava assim a fase mais negra da vida do jovem Mbodou, que durante mais de um ano perdeu a noção do tempo, até conseguir fugir. «Eu não queria matar», diria.

Esta é uma das onze histórias de esforço e conquista de crianças que Xavier Aldekoa, jornalista e correspondente espanhol em África, e Alfons Rodríguez, fotógrafo e documentarista, apresentam no projeto ‘Indestructibles’.  Este é de tal ordem grandioso que não se esgota num único formato. Seja em documentário, livro, exposição ou photobook, este agora lançado em português, olhar para as vidas de Mbodou; de Margaret, obrigada a casar com um homem mais velho no Uganda; de Rodrigue e Gloire, os meninos-solado que fazem a guarda de um general no Congo; ou de Marceline, a menina que em Madagáscar tem de se levantar às três da manhã para caminhar durante duas horas para ir vender lenha ao mercado antes de entrar na escola, não deixa ninguém indiferente.

«Esta é a África real, é a África que encontras quando chegas lá. São histórias que realmente existem em África e que a identificam. Diria que há milhões de meninos e meninas nestas circunstâncias, não são casos isolados. O problema dos meninos-soldado, da falta de educação, dos matrimónios infantis, da ausência escolar, das alterações climáticas são fatores que influenciam milhões de seres humanos. Não fomos buscar nem o drama nem o bonito, mas sim uma África intermédia que afeta uma grande parte da população africana», conta, ao SAPO, Alfons Rodríguez.

Indestructibles, o menino que fugiu ao Boko Haram e mais 10 histórias de infância em África
Rodrigue e Gloire são crianças-soldado num grupo rebelde na selva do Congo créditos: Alfons Rodriguez

Ainda assim, o projeto chama-se ‘Indestructibles’ porque, apesar de as crianças viverem histórias dramáticas e vidas duras, os autores querem passar uma mensagem positiva e de esperança na próxima geração de africanos e africanas. «Vai ser uma geração de gente mais formada, mais esperançosa e que vai lutar pelos seus ideais», conta o fotógrafo. E isso nota-se. Aqui conta-se também as melhorias na área da saúde, a emergência do feminismo, das energias renováveis… «O continente é complexo e diverso e significa que tem situações complicadas como os meninos-soldados e crianças na rua e o fundamentalismo, mas tem outra parte também. Então quisemos oferecer essa visão complexa do continente não reduzida às suas feridas, apesar de estas impactarem grande parte da população», assinala Xavier Aldekoa.

Mas neste mundo globalizado onde todos parecem estar ligados e em cima do acontecimento, olhar para o que se passa ao lado não é assim tão usual. Sobretudo por parte das gerações mais jovens, mais distantes dos meios tradicionais de comunicação que veiculam as notícias do mundo, que não estarão tão familiarizadas com as vidas dispares das suas. Por isso, este é também um projeto de pontes. É preciso contruir essa ponte entre realidades tão distintas e gerar empatia. E este projeto mostra a realidade de crianças africanas a outras crianças da mesma idade, aqui na Europa. «As gerações mais jovens não consomem os meios de comunicação e é preciso construir outras vias para as encontrar. Então este projeto nasce também um pouco disto, de tentar criar uma ponte daqui para lá e de lá para cá. Para que as crianças e os jovens possam olhar para o outro lado e tentar compreender a situação dos outros. É quando as fronteiras e os muros são mais altos que é importante construir pontes», refere Aldekoa.

Veja o teaser de Indestructibles:

Um continente jovem e em ebulição

Africa é o continente mais jovem do mundo, é a região do planeta onde mais crianças nascem e onde a média de idades está nos 18 anos. É, por isso, o lugar que vai definir a juventude do mundo e que irá conquistar um espaço diferente nos próximos anos e décadas. E tal já se começa a ver nas mudanças que estão a ocorrer.

«Africa não é um país, é um continente com muitas realidades e em constante evolução. Um passo importantíssimo para o progresso de Africa é que o resto do mundo entenda que África está realmente a progredir. Inclusivamente diria que combater o racismo, aceitar a normalidade é o primeiro passo. Este projeto não fala do que se passa com estes meninos e meninas, fala do que eles fazem com o que se passa. Isso é muito importante e entender isso é a prioridade absoluta que temos», salienta Rodriguez.

As histórias impulsionadoras acontecem por todo o lado e rompem estereótipos como, por exemplo, no caso dos matrimónios infantis. Todos os anos, cerca de três milhões de meninas africanas são forçadas a casar-se com homens adultos, mas algo está a mudar. «Vemos com a história da Margaret o momento da mudança. Às vezes não vemos a mudança na História por ser muito lenta. Com a história dela vemos que se está a opor a esta situação dos matrimónios infantis. Estamos a presenciar em direto como se produz essa mudança, quando uma menina mesmo que não triunfe e continue casada dá um passo para que mude a história de outras meninas, na sua ou na próxima geração», ressalta o documentarista.

Outro exemplo é dado com a história de Giovana, a menina de Cabo Verde que estava destinada a ser serviçal numa casa, mas que a chegada da energia solar à sua aldeia permite que haja um rádio na casa de um tio e ela, descobrindo outra realidade, decide mudar de vida. Quer ser cantora profissional. «Essa pequena mudança de um sonho permitido pela aparição da energia renovável é um símbolo de como a energia que está a chegar a África, em muitos lugares pela primeira vez, está a mudar muita coisa», comenta Xavier Aldekoa.

Indestructibles, o menino que fugiu ao Boko Haram e mais 10 histórias de infância em África
A chegada da energia solar à aldeia de Giovana mudou-lhe os sonhos. Agora quer ser cantora. créditos: Alfons Rodrígues

A globalização também está a disseminar-se no continente e a abrir brechas. Ter um telemóvel com internet que funciona como uma porta aberta para o mundo permite às pessoas olharem e compreenderem as realidades de outros lugares, o significado da liberdade, as obrigações dos governos, no fundo, ganhar conhecimento. Tudo isto está a influenciar a evolução do continente africano, impulsionada por estas gerações mais jovens.

Os jornalistas atravessaram a Etiópia, Congo, Chade, Madagáscar, Moçambique, Uganda, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Mali e Gâmbia, para terem uma dispersão por todo o continente africano e conseguirem histórias muito diversificadas neste retrato alargado. A maioria ficou por contar.

Mas em cada uma delas entraram a fundo e dedicaram-lhe tempo, para encontrar a pessoa para além da vítima: «Se vou falar com uma menina de 13 anos que acabou de se casar com um homem  de 30 anos e se lhe dedico meia hora vou encontrar uma vítima, mas se ficarmos lá uns dias a falar com eles, a viver com eles, ao fim de uns dias vemos que a menina é mais do que uma vítima, descobre-se a pessoa com um carácter importante, com umas qualidades feministas importantes, com capacidade de luta. O tempo é uma ferramenta para ajudar a contar as histórias com a dignidade que as pessoas merecem», partilha o jornalista.

Indestructibles, o menino que fugiu ao Boko Haram e mais 10 histórias de infância em África
Todos os dias, Marceline e as suas irmãs caminham duas horas para chegarem à escola. créditos: Alfons Rodríguez

Os autores esperam com este projeto mostrar o que acontece neste continente, aproximar e gerar empatia. «Viver com os olhos fechados é muito fácil, mas quando os abres e olhas para fora é muito duro, por vezes, mas também muito enriquecedor. Esse abrir de olhos produz mudanças muito positivas que beneficiam todas as partes», assinala Alfons Rodríguez.

Uma viagem partilhada

Também eles saíram transformados com esta viagem, com esta grande aventura. «Emocionalmente e animicamente, uma grande viagem deste tipo sempre nos aporta muito, sobretudo espiritualmente», confessa Alfons. Esta grande viagem por África e pela sua maneira de a ver é partilhada com o mundo e pode ser experienciada de diferentes formas, para além dos formatos jornalísticos tradicionais. Um site, um livro, um photobbok, uma exposição itinerante, um documentário e conferências compõem a gama de veículos das histórias.

No site do projeto, pode conhecer melhor as crianças protagonistas e as suas as histórias, acedendo ainda a galerias de imagens e vídeos. Também já foi lançado um livro que reúne algumas das histórias dos protagonistas e que visa abordar as várias realidades da infância africana e mergulhar no contexto político, histórico e social dos diferentes países.

A exposição fotográfica itinerante é composta por uma seleção de 44 imagens em grande formato, da autoria de Alfons Rodríguez e acompanhadas por textos de Xavier Aldekoa. Com esta exposição, destinada a escolas e salas de exposição, os autores querem aproximar as histórias dos protagonistas do público de maneira mais direta, com a presença física do espetador para criar vínculos entre eles e estas crianças. A exposição está suspensa em Espanha por causa da pandemia, mas vai voltar ao terreno depois do verão.

O photobook, lançado recentemente em quatro línguas, incluindo o português, mostra estas realidades transmitidas pelo poder das imagens. E, por fim, está a ser ultimado um documentário que, em forma de filme, nos mostrará esta realidade em transformação.

Os autores querem chegar ao maior público possível com este projeto transmedia e trazer a exposição a Portugal é também um dos próximos objetivos. Assim alguma instituição se interesse em trazê-la ao país.

São várias pontes criadas para chegar ao máximo de público possível. Nós só temos de atravessá-las!..

Indestructibles
Photobook créditos: Alfons Rodriguez