“Foram 117 dias. Contei-os como um prisoneiro”, conta Pedro Pulido quando recorda o tempo que passou em confinamento em Cusco, no Peru, entre março e junho de 2020. “Só se podia sair para ir ao supermercado, à farmácia e ao banco. O exército estava na rua e, só em Lima, na primeira semana, foram detidas mais de 20 mil pessoas por desobediência. Não tem nada que ver com o confinamento aqui.”

Pedro foi para Cusco em 2017 depois de uma proposta para trabalhar numa agência como diretor de Marketing, a sua área de formação. Meteu na bagagem a máquina fotográfica e o objetivo de poder conciliar o trabalho na agência com a fotografia e criar o próprio negócio. E assim foi. Meia dúzia de meses depois, carregado de energia e espírito empreendedor, nascia a Andean Photo Expeditions, uma empresa que junta turismo de aventura com fotografia e que, dedicada a um nicho de mercado, faz tours fotográficos por vários destinos do Peru.

O negócio corria bem e a empresa tinha já uma base em Lima e outra em Cusco. Pedro estava a fazer prospeção de mercado na zona da Amazónia e à procura de casa, com o objetivo de se mudar para lá e dali criar mais uma base para a empresa e um local de sonho para receber fotógrafos viajantes. Tinha já deixado a sua casa em Cusco quando, em plena selva, foi apanhado pela pandemia. “No espaço de umas horas, veio o responsável do hotel dizer que tínhamos de arrumar tudo e sair porque em menos de 24 horas tínhamos de estar em casa. O país ia fechar.”

Pedro Pulido

Pedro acompanhava as notícias e estava a par da situação mundial, mas não esperava um prazo tão curto para a decisão governamental ser posta em prática. Dali a 24 horas o confinamento ia começar e durar um mês.

“Foi o caos, a cidade estava virada do avesso, tudo a ver se havia voos, transportes, a tentar sair dali... Eu cheguei a equacionar vir de boleia num camião das bananas”, conta Pedro, que tentava regressar a Cusco, cidade onde tinha ainda morada oficial.

“Foi duplamente complicado. Com uma antiga senhoria, consegui um apartamento livre, mas cheguei de autocarro e já nem transporte para casa tinha, tive de ir a pé, cerca de cinco quilómetros, às seis da manhã, mas ao mesmo tempo chegar a casa foi uma sensação de alívio muito grande”, recorda o fotógrafo.

Entretanto, foram longos os dias de regresso a Cusco, muitos deles a responder a emails, a gerir os cancelamentos das viagens e a fazer devoluções de pagamentos. Após 117 dias, as restrições foram levantadas, mas rapidamente o número de infetados voltou a subir e, em julho, corria o boato de que ia fechar tudo de novo.

Cusco Covid
Praça de Armas, um dos locais mais emblemáticos e turísticos de Cusco durante o confinamento créditos: Pedro Pulido

“Ao fim daquele tempo todo fechado em casa, o sacrifício foi muito grande, estar sem ganhar dinheiro, sem trabalhar e pensei que se é para estar fechado, prefiro estar com a minha família”, conta Pedro. Informou-se sobre voos de repatriamento e, com passagens em Lima e Madrid, conseguiu aterrar no Porto quatro dias antes de o Peru voltar a confinar e de deixar de haver voos internacionais.

Naquele país da América do Sul, é obrigatório o uso de máscara e de viseira e Pedro lembra a discrepância na chegada a Portugal no final de junho: “Eu estava de máscara e viseira e forcei o meu pai a ir buscar-me ao aeroporto também assim. Depois, saí e vi as pessoas sentadas na esplanada à vontade, foi um choque”, recorda.

Sabendo que “não há alternativa para regressar tão cedo”, trouxe também consigo o espírito empreendedor com que cruzou o Atlântico em sentido inverso há quatro anos. Com a fotografia em primeiro plano e a formação em Marketing a servir de base, criou a Fusion Media Digital Solutions, com a ajuda do sócio especialista em vídeo, e agora produz conteúdos online e fornece serviços digitais a empresas.

“Já têm aparecido alguns trabalhos, mas ainda estamos numa fase inicial”, conta Pedro Pulido a partir do Porto, onde vive, entre a casa da mãe e da namorada, que entretanto conheceu neste regresso à sua cidade natal.

Este segundo confinamento está a ser “muito mais fácil, sem comparação”.

“Além de não estar sozinho, não há o exército na rua e o medo constante de sair e ser mal-interpretado”.

Agora, os dias são cheios de trabalho, dias de prospeção de mercado, à procura de projetos que necessitem de melhoramento de fotografia, vídeo, e-commerce, o que possa melhorar a presença online de uma empresa.... Depois, consigo fugir um bocado de casa para dar uma volta e arejar um pouco”, explica Pedro.

“Ter conhecido alguém é uma grande influência para pensar fazer vida aqui. Era também provável que não estivesse a desenvolver este negócio desta forma e talvez estivesse a ver uma forma de poder regressar ao Peru”, conta Pedro sobre as possíveis hipóteses das voltas que a vida lhe deu nos últimos meses.

Fora dos cenários de incertezas, e num cenário mais ideal para o qual trabalha, Pedro gostaria de fazer a empresa crescer e viver por cá, podendo regressar ao Peru esporadicamente para fazer uma ou outra viagem fotográfica entre os Andes e a Amazónia.

Do sul do Camboja para o sul de Portugal

Do outro lado do globo e com uma vida completamente diferente, mas com igual sucesso, vivia Francisco Salema, chef de cozinha e co-proprietário do Tertúlia, um restaurante português em Kampot, uma pequena cidade no sul do Camboja.

No caso de Francisco a pandemia não o fez regressar a Portugal, mas foi ela que o forçou a ficar. Emigrado há sete anos no Camboja, veio em março do ano passado, depois de uma época alta no restaurante, para passar férias e ver a sobrinha que viria a nascer. Trazia também alguns planos para desenvolver uns últimos pormenores de outro restaurante que estava para abrir por lá e a ideia de poder trabalhar com chefes amigos em cozinhas europeias, “mas foi tudo por água abaixo”.

Ali, mais perto da China, uma futura pandemia global não era uma ideia tão descabida. “No final de novembro, começou a haver um burburinho, depois foi uma hecatombe de migrações em massa para a Europa...”

E juntando as férias e os afazeres, Francisco regressou a Portimão já a saber que poderia ficar alguns meses.

“A minha primeira reação foi que isto ia ser mesmo muito grave, estava habituado a ver as cadeias de televisão asiáticas e via o que estava a acontecer: por um lado, as medidas draconianas aplicadas pelos chineses para conter o vírus no início de dezembro e por outro, as pessoas na Europa a criticarem. Achei que subestimaram muito as coisas. Quando viajei para cá, não me perguntaram de onde vinha nem nada. Em escala em Singapura e na Tailândia passei por câmaras térmicas, mas na Europa nada. Em Portugal, também ainda não havia nenhum caso positivo, mas achei que havia muita displicência...”

Francisco
créditos: Jack Malipan

Francisco regressou a Portimão e à casa da mãe, onde ainda está a viver. “Tenho muita sorte”, afirma, mesmo estando sem rendimentos há quase um ano e a viver do que tinha poupado para investir no próximo restaurante. Acima de tudo, o chef afirma ter muitas saudades de entrar numa cozinha “do calor, do stress e de começar a criar”.

Em Portimão, a vida é muito em casa porque, “além de não ter nenhuma justificação válida para andar por aí”, há a preocupação acrescida de quem vem de uma família de médicos e com muitos amigos enfermeiros – “é uma visão muito diferente do que é retratado, a visão de quem está por dentro e do que realmente isto é assustador”, explica Francisco.

O regresso ao sudeste asiático para já não está em cima da mesa. O visto de Francisco acabou em agosto e o Camboja deixou de emitir vistos à chegada. “Para tratar do visto tinha de ir a uma embaixada, e as mais próximas são em França ou Inglaterra...”, explica e acrescenta: “As restrições de viagens e as imposições que o Camboja pôs à chegada de passageiros pareciam impossíveis de acontecer. O governo obriga os viajantes a pagarem quarentena num hotel. Tinha de ser feito um depósito à chegada de três mil dólares para cobrir custos hospitalares e eventual expatriação...”

No meio da embrulhada burocrática e da pandemia mundial, Francisco foi ficando por Portimão.

“Quando quis voltar, já foi tarde demais...”

À distância, acabou por vender a sua parte do Tertúlia a um casal de portugueses e, por cá, viu colegas a fecharem restaurantes no Algarve. “Fui tentando fazer alguma coisa, mas as pessoas estavam a tentar não despedir e compreensivelmente ninguém estava a contratar”, explica Francisco.

Do outro lado no mundo, “o país continua com atividade interna mas está a sofrer com a falta de turismo... Agora, estão a pensar fazer uns corredores para alguns países fronteiriços para o turismo mexer um pouco entre eles”, conta Francisco.

Até agora o Camboja não regista nenhuma morte por COVID-19 e é dos países com menos casos. Desde o início da pandemia, registam-se 470 infeções por coronavírus. Especulou-se muito que o governo autoritário pudesse estar a esconder algo, mas muitos especialistas também já fizeram notar que neste momento caso estivessem a esconder uma catástrofe, já teria sido notado.

Para o chef de cozinha, não é muito difícil de entender estes dados e explica: “a média de idades é muito baixa e a densidade populacional também não é muito grande”. Além de tudo, “já faz parte da cultura o uso de máscaras". “Quando alguém não se sente bem ou está constipado, já usa máscara para proteger os outros, e há também um uso generalizado por causa do pó”.

Apesar da impossibilidade de regressar a Kampot, Francisco afirma: “Decidi não desesperar porque não está nas minhas mãos. Estou a tentar arranjar alternativas ao mesmo tempo que tento manter-me são e estabilizar-me para poder tomar decisões. Tento manter o moral elevado”.

Tanto o sul de cá como o sul de lá são muito dependentes do turismo: “Quero muito voltar, mas vai ser difícil o turismo voltar ao mesmo ritmo. Há imagens de Angkor Wat vazio, é arrepiante. Em Portugal, também está a ficar tudo muito negro..."

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Templo de Angkor Wat, Siem Reap, a 16 de março de 2019 e a 05 de março de 2020 créditos: Tang Chhin Sothy/AFP

Francisco diz-se “no limbo”, entre um projeto pronto a abrir em Kampot ou uma possível oportunidade em Portugal. “Estar em suspenso cria mais ansiedade” e com os aeroportos internacionais ainda fechados e com as dificuldades de voar, aguarda por um passaporte digital da vacina para que o mundo possa fazer as pessoas girar como antes. Para já, “é ver quando se pode resolver”.

De Munique para Lisboa na procura de sol e comédia

Aqui mais perto, e com uma decisão de antemão, Joana Mendes também foi apanhada de surpresa pela pandemia, mas já tinha orquestrado um plano de regresso a Portugal. Primeiro, tal como Pedro e Francisco, houve o desejo de fazer crescer a vida fora de portas; depois, Erasmus na Alemanha e um trabalho em Inglaterra fizeram-na ter mais certezas disto.

Em 2016, uma proposta de trabalho numa start-up na área de audiovisual e pós-produção de imagem levou-a a Munique, mas a vontade de controlar melhor os seus horários e fazer outras coisas fez com que se tornasse freelancer e conjugasse trabalhos desde babysitting a teatro ou empregada de mesa e comediante. De manhã Joana podia estar a editar um vídeo para uma empresa, de tarde tomar conta de uma criança e à noite subir a um palco para um ensaio de uma peça ou para fazer stand-up num bar.

Joana Mendes

Quando começaram a aparecer as notícias sobre a COVID-19, havia um sentimento que juntava “a expectativa de que a coisa ia ficar controlada por lá com a ansiedade de ver que poderia chegar mais perto”. E quando chegou, Joana diz que se sentiu “bastante segura”. Apesar de – “fun fact”, diz ela – “todos os hospitais da cidade decidiram pôr os primeiros pacientes da pandemia no hospital que fica a cinco minutos do meu apartamento”.

Fora de brincadeiras, diz que, tendo em conta que era uma situação completamente nova, “a Alemanha estava bastante organizada. As pessoas adaptaram-se bastante bem e sentia-se que havia um esforço coletivo para cumprir as regras o melhor possível”.

“Naquela altura, a paranoia indicava-me para seguir o bom-senso e ficar a trabalhar a partir de casa e seguir as regras”, e assim foi.

Ao mesmo tempo que ia crescendo alguma pressão por se aperceber que alguns projetos e espetáculos de stand-up iam ser cancelados e começou a traçar um regresso antecipado a Portugal”, explica Joana, que vive em Munique com o namorado natural daquela cidade da Baviera.

Este regresso já estava esquematizado entre os dois, antes de o mundo dar sentido ao conjunto alfanumérico: SARS-COV-2. Trabalhando ambos remotamente, procuravam uma experiência em Lisboa, por ser uma cidade que com um custo de vida mais baixo e com um clima mais agradável e que reunia as condições para um melhor equilíbrio entre a vida pessoal e profissional.

Estarem dois meses fechados em casa, verem projetos a ser cancelados, espetáculos adiados, e mesmo com a pandemia pelo meio, quiseram acelerar a decisão de vir viver para Portugal. De espírito dinâmico e positivo, Joana conta: “a readaptação a uma cidade que eu conheço tão bem e que quero partilhar com o meu companheiro, no meio de uma pandemia, não é bem uma mudança que eu recomende a alguém, principalmente quando falamos de uma cidade com tanto sol e tão bonita como Lisboa”.

No meio da mudança, apenas uma vantagem: “as rendas estão muito mais baratas”, mas de resto “todos os outros possíveis benefícios em estar em Lisboa estão fora do alcance”, lamenta. Mas mesmo assim, e ainda confinados, Joana e o namorado dizem gostar de estar cá e que, apesar de quererem ter planos flexíveis para o futuro, é por aqui que se tencionam manter.

Joana Mendes

De qualquer modo, para este ano, “seja on ou offline”, a comediante tem vários projetos em calha. Afirma que “gostava de trabalhar no mercado criativo em Portugal” e afirma: “Mal posso esperar para voltar ao palco com stand-up”.

Quando questionada sobre os seus dias, a resposta é simples e resume a vida de muitos portugueses: “pandemic lifestyle”, ou seja, “trabalhar a partir de casa, sair de casa para passeio higiénico ou fazer compras no supermercado, ver séries, ler, estar a falar com amigos no Zoom”.

Enquanto não se pode juntar à família e amigos ou visitar o país, considera-se “com muita sorte” por ambos terem trabalhos que conseguem gerir a partir de casa e poderem “esperar que acabe o confinamento e aguardar por uma altura melhor”. Com os dois idiomas na ponta da língua, Joana conclui: “So, I guess we'll see.”