A pandemia da COVID-19 trouxe grandes desafios aos hospitais e profissionais de saúde, não só para dar resposta aos infetados mas também para criar circuitos não COVID seguros para todas as outras patologias que continuam a precisar de tratamento.

No caso dos acidentes vasculares cerebrais (AVC), apesar de exigirem tratamento urgente e terem sido criados esses circuitos, houve uma redução das ativações da linha de emergência, nomeadamente porque os casos ligeiros evitaram a ida ao hospital.

Atualmente, já existem muitos hospitais com uma Via Verde do AVC, que permite que quando o doente chega ao hospital as equipas estejam preparadas para intervir de forma rápida, o que permite que muitos doentes não tenham sequelas. Contudo, não basta a existência de uma via segura que traga esta assistência rápida, também é necessário garantir que os doentes têm acesso a uma reabilitação adequada. Sendo que, durante o período de pandemia da COVID-19 e restrições na acessibilidade à reabilitação, doentes que tinham um enorme potencial de recuperação ficaram com incapacidades.

Os casos ligeiros de acidentes vasculares cerebrais não se deslocaram aos hospitais nos últimos meses. De que números estamos a falar?

Segundo um inquérito da Sociedade Portuguesa do AVC, em 32 hospitais portugueses, metade observou uma redução entre os 25 e os 50% no número de doentes. Apesar de a razão não ser clara, isto poderá ter sido o resultado das informações divulgadas pela comunicação social. Devido à forma assustadora como foi feita toda a comunicação, as pessoas ficaram com medo de ir ao hospital e doentes com quadros mais ligeiros poderão ter optado por ficar em casa. É uma situação preocupante uma vez que a eficácia e a segurança do tratamento do doente com AVC é dependente do tempo, ou seja, quanto mais depressa for tratado, mesmo em situações ligeiras, maior a probabilidade de ficar sem sequelas.

«A paragem nos tratamentos fez com que doentes que tinham um grande potencial de recuperação tenham ficado com sequelas muito maiores do que estaria previsto»

Que consequências pode trazer para as pessoas que não pediram socorro urgente?

As consequências de um AVC estão sobretudo relacionadas com o tempo que decorre entre o acidente e a realização do tratamento. Por isso, as primeiras horas são cruciais e o pedido de ajuda deve ser feito com urgência.

Para quem opta por não pedir socorro urgente, a possibilidade de fazer um cateterismo ou recorrer a um produto que dissolve o que está a entupir a artéria cerebral por via intravenosa, como um trombo, deixa de estar em cima da mesa. Estes tratamentos aumentam em 30 a 50% a hipótese de a pessoa conseguir recuperar com poucas ou nenhumas sequelas.

Na impossibilidade de realizar estes procedimentos, os danos causados pelo acidente podem tornar-se permanentes e irreversíveis, exercendo um grande impacto na qualidade de vida do doente, ou até mesmo resultar na sua morte.

Já começaram a surgir no SNS os doentes com algumas sequelas por não terem pedido socorro quando tiveram o AVC? O que eles apresentam?

Varia muito em função da gravidade do AVC, há casos em que efetivamente conseguimos perceber que o doente ficou fisicamente debilitado e com limitações, normalmente numa zona específica do corpo, mas há outras que até se consegue de alguma forma contornar os possíveis danos do acidente vascular cerebral recorrendo por exemplo à reabilitação. O que verificamos é que os doentes que tiveram AVC durante o período de confinamento e foram tratados mas que depois não tiveram acesso aos tratamentos de reabilitação acabaram ficando com mais sequelas do que seria esperado se tivessem tido a possibilidade de ser incluídos num plano de reabilitação.

AVC: Tratamento imediato aumenta em 30 a 50% a hipótese de recuperação com poucas ou nenhumas sequelas
Ana Paiva Nunes

Precisamente, para além do socorro urgente, quem sofre de AVC também precisa de reabilitação. Estes serviços pararam? Já retomaram? Que consequências podem ter para os doentes não fazer reabilitação?

Durante o estado de emergência a reabilitação parou por completo, sendo que, segundo um inquérito da Portugal AVC feito entre 20 e 27 de abril, 91% dos doentes que tinham indicação para receber cuidados de reabilitação afirmaram que foram obrigados a interromper os tratamentos ou foram impedidos de os começar.

Esta paragem, consequentemente, fez com que doentes que tinham um grande potencial de recuperação tenham ficado com sequelas muito maiores do que estaria previsto.

A ideia que se tem é que está tudo canalizado para tratar a COVID-19. Como está o encaminhamento e tratamento de AVC em Portugal?

A Via Verde do AVC nunca foi suspensa na maioria dos hospitais. Em tempos de pandemia é fundamental as pessoas saberem que agora, mais do que antes, é fundamental perante os sinais de alerta – boca ao lado, dificuldade em falar, falta de força num braço – não se devem dirigir ao hospital mais próximo mas sim contactar o 112 que irá encaminhar o doente para o hospital mais próximo que tem capacidade para tratar esse doente.

Muitos desconhecem que existe esta Via Verde AVC para dar socorro urgente. Como e em que hospitais funciona?

A Via Verde do AVC tem sido implementada em várias zonas do país desde o início de 2006 e consiste em fazer a triagem dos casos através da deteção dos sintomas, evitando paragens desnecessárias em centros de saúde ou hospitais que não estejam preparados (sem equipamento e equipas especializadas). O programa pressupõe que, aquando da chegada do doente ao hospital, as equipas estejam já preparadas para intervir de forma rápida e num circuito seguro, evitando sequelas. Penso que neste momento cerca de 50 hospitais em todo o país têm já protocolos estabelecidos para a Via Verde de AVC.

Sendo o AVC uma das principais causas de morte, esta via verde vai ou deverá estender-se a todo o país?

O objetivo será, com certeza, alargar este programa ao maior número de zonas possível e que faça sentido, com o intuito de conseguir dar resposta aos doentes que sofram um AVC de rápida e forma eficiente. Se conseguirmos estender o programa a todo o país, aumentará a probabilidade de sucesso e, consequentemente, haverá uma redução do número de mortes por AVC.

«Em tempos de pandemia, é fundamental as pessoas saberem que não se devem dirigir ao hospital mais próximo, mas sim contactar o 112, que irá encaminhar o doente para o hospital que tem capacidade para o tratar»

 

Muitas vezes a primeira reação das pessoas é meterem-se no carro e dirigirem-se a um hospital. Qual a melhor forma de pedir socorro perante um caso de AVC?

A melhor forma de pedir socorro num caso destes é sempre ligando para o Número Europeu de Emergência (112). Desta forma, é possível receber desde o primeiro momento uma intervenção especializada, reduzindo o tempo decorrido entre o momento do AVC e o tratamento. Ligar para o 112 é uma decisão vital para o sucesso do tratamento e posterior recuperação.

O medo da pandemia impede as pessoas de pedir socorro pelo medo de contágio. Com os casos de COVID-19 a intensificarem-se, este receio de pedir ajuda vai colocar mais pessoas em risco?

Todas as decisões que prejudiquem a rapidez de diagnóstico e tratamento de uma pessoa que tenha sofrido um AVC irão, consequentemente, colocar as pessoas em risco. Se, por medo do contágio por Covid-19, as pessoas deixarem de pedir ajuda, as consequências serão desastrosas, sendo impossível evitar sequelas, que poderiam ser antecipadas com um diagnóstico e tratamento rápidos, ou até mesmo a morte.

Que mensagem gostaria de deixar às pessoas?

A mensagem que tenho vindo a divulgar e que quero reforçar é a importância de estar atento aos principais sintomas de AVC e agir o mais rapidamente possível. Por isso, é importante contactar o 112 assim que são detetados os primeiros sintomas, tais como: falta de força num braço, desvio da boca (“boca ao lado”) ou dificuldade na fala.