Antes de mais, e para que o leitor perceba os valores envolvidos, façamos uma simples comparação. O Produto Interno Bruto de Portugal (PIB) em 2021, ou seja, a riqueza criada no nosso país nesse ano, foi de 211,2 mil milhões de euros, o equivalente a quase 233 mil milhões de dólares, o que representa pouco menos dos 237 mil milhões arrecadados por 25 petrolíferas no mesmo ano fiscal. Impressionado?

Vamos por partes. ExxonMobil, Shell, Chevron e BP são quatro das maiores empresas petrolíferas do mundo e fazem parte de um restrito grupo de companhias ocidentais, a operar no setor, com grande valor de mercado. Só no ano passado este quarteto conseguiu obter lucros líquidos de 75 mil milhões de dólares, com cada uma a amealhar graças à venda de combustíveis fósseis, respetivamente, 23 mil milhões, 21,7 mil milhões, 14,8 mil milhões e 15,6 mil milhões de dólares.

De acordo com as próprias empresas, e face a estes valores, 2021 acabou por ser “um ano importante” (Shell), “um dos anos de maior sucesso de sempre” (Chevron), um período em que “os lucros atingiram o seu máximo em oito ano, impulsionados pelo aumento dos preços do gás e do petróleo” (BP), com o diretor executivo da ExxonMobil a afirmar que  “fizemos grandes progressos em 2021, com os nossos planos futuros a posicionar-nos para que lideremos em liquidez de caixa e crescimento de lucros”.

Contudo, não são apenas os resultados globais do ano anterior a criar este clima de entusiasmo e otimismo no seio destas gigantes do ouro negro – nomeadamente junto dos seus acionistas, investidores e executivos. O último trimestre de 2021 foi bastante «generoso» para as quatro petrolíferas, com lucros líquidos totais de 24,4 mil milhões de dólares: 8,8 mil milhões fluíram, só nos últimos três meses do ano, para a conta da ExxonMobil; 6,3 mil milhões para a da Shell; 5 mil milhões para a da Chevron; e 4,1 mil milhões para a da BP.

Em suma, 2022, do ponto de vista destas mesmas empresas, será um ano ainda melhor em termos de resultados, quanto mais não seja devido ao aumento do preço do crude provocado pela guerra na Ucrânia. No final do dia de ontem (24 de março), os contratos para o mês de maio do chamado barril de petróleo Brent – que representa 80% do crude que é transacionado a nível mundial, sendo a principal referência para esta indústria – estavam a ser negociados a 119 dólares.

Os resultados das quatro petrolíferas foram sumarizados no passado mês de fevereiro num relatório da Accountable.US, uma organização de supervisão, que se assume como apartidária e sedeada nos Estados Unidos, conhecida pelo escrutínio que costuma fazer às grandes empresas (dos EUA e não só) e às instituições governamentais norte-americanas, com o intuito de aferir o seu impacto no dia-a-dia dos cidadãos. Todos os valores apresentados pela Accountable.US têm como fonte os relatórios anuais e trimestrais de cada uma das petrolíferas: acessíveis online no relatório da Accountable.US, para quem quiser confirmar os valores.

Leviatã. A Plataforma Petrolífera Hebron em 2017, a ser rebocada até ao seu destino final, na Terra Nova, junto à costa do Canadá. Esta estrutura, propriedade da ExxonMobil, da Chevron e outras três empresas, foi desenhada e construída para produzir até 150 mil barris de petróleo por dia. ExxonMobil

Mas há mais. Segundo esta organização de supervisão, em 2021 as quatro empresas compraram 6,6 mil milhões das suas próprias ações, uma manobra (legal, e que em Portugal muitas empresas também fazem) que lhes permite valorizar ainda mais nos mercados: uma das consequências desta valorização é que conseguem, depois, distribuir maiores dividendos aos acionistas.

Para 2022, e por esperarem que este seja um ano ainda melhor que o anterior, este quarteto já tem planos para, pelo menos, comprar 22 mil milhões das suas próprias ações, refere a Accountable.US.

No final de janeiro, Mike Wirth, diretor executivo da Chevron, admitiu este cenário durante uma entrevista: “Prevejo que 2022 será ainda melhor em termos de retorno financeiro [dividendos] para os acionistas [da empresa]; estamos otimistas quanto ao futuro, focados em continuar a recompensar os nossos acionistas ao mesmo tempo que investimos para fazer crescer o nosso negócio, mantendo uma sólida folha de balanços”.

Todavia, há uma pergunta importante que deve ser respondida quando se noticia que determinada empresa vai comprar as suas próprias ações e (ou) proporcionar grandes retornos aos seus acionistas. Qual a percentagem que os seus executivos e diretores vão receber com esse retorno? A pergunta faz todo o sentido porque parte do salário de muitos destes responsáveis vem sobre a forma de ações que detêm, pelo que quando mais elas valerem, mais acabam por receber no final do ano como compensação pelo seu trabalho na empresa.

Por exemplo, em 2020 os diretores executivos da Chevron e da ExxonMobil receberam como compensação, respetivamente, 29 milhões de dólares e 15,6 milhões de dólares. Destes bolos totais, o responsável da Chevron recebeu 11,2 milhões (39% da compensação) sob a forma de dividendos provenientes das suas ações, enquanto o da Exxon lucrou 8,4 milhões de dólares da mesma forma (54% da compensação que recebeu nesse ano). Estes dados surgem igualmente referenciados no relatório de fevereiro da Accountable.US.

Petrolíferas acusadas de “explorar a crise na Ucrânia” para “fazer ainda mais dinheiro à custa dos consumidores”

Talvez mais impressionante, pelos valores envolvidos, é o relatório que esta organização divulgou ontem (24 de março), com uma lista dos lucros líquidos obtidos por 25 das maiores empresas que operam nas indústrias do petróleo e do gás. No total, e só em 2021, elas faturaram 237 mil milhões de dólares. As contas publicadas por cada empresa (algo obrigatório, pois estão cotadas em bolsa), e que permitiram fazer a soma que chegou a este valor, estão acessíveis no relatório agora publicado.

No topo das que mais faturaram surgem as já mencionadas ExxonMobil, Shell, Chevron e BP. Todavia, em primeiro lugar, e a destacar-se de todas as restantes, está a Saudi Aramco, petrolífera detida pelo estado da Arábia Saudita e que registou lucros de… 110 mil milhões de dólares. Em 2020 esse valor, conforme menciona a empresa, foi de 49 mil milhões de dólares – um aumento de 124%, portanto.

Nem a areia os trava. Este oleoduto vem do campo petrolífero de Shaybah, na Arábia Saudita, onde se situa uma das maiores jazidas de ouro negro do mundo. O complexo de Shaybah fica a leste do enorme e inóspito deserto de Rub' al Khali (sul da península arábica) e é explorado pela estatal Saudi Aramco. Saudi Aramco

As empresas chinesas, onde estão elas? Há um bom motivo para não surgirem neste tipo de listas. Tal como explica Ben Cahill, especialista em mercados energéticos, num texto de análise publicado no site do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (o CSIS, sedeado nos EUA), as três maiores empresas de combustíveis fósseis da China são a CNPC, a Sinopec e a CNOOC, todas elas estatais. “Coletivamente elas geraram receitas [brutas] de 643 mil milhões de dólares em 2020, mas apenas 11,8 mil milhões de dólares em receita líquida”. No entanto, salienta, não deixam de ser “gigantes económicos” e estão entre as empresas chinesas que mais dinheiro investem.

Uma das principais críticas que a Accountable.US faz no seu mais recente relatório prende-se com o fim a que é dado, pelas 25 empresas de petróleo e gás da sua lista, aos 237 mil milhões de dólares de lucro líquido que tiveram. Segundo esta organização, este dinheiro é principalmente utilizado para pagar dividendos a acionistas e comprar mais ações das próprias empresas – para as valorizar, num ciclo que se repete todos os anos, com a diferença que os números se tornam cada vez maiores. Isto tudo, afirma em tom acusatório, “enquanto os norte-americanos têm de fazer face ao aumento dos preços” dos combustíveis.

Basicamente, a Accountable.US aponta o dedo às grandes empresas dos setores do petróleo e do gás, com o argumento de que “estão a explorar a crise na Ucrânia” para avançar com uma agenda política pró-petróleo e “fazer ainda mais dinheiro à custa dos consumidores”.

Há mais petróleo a ser produzido, um consumo crescente, mas os stocks das petrolíferas estão em queda e isso eleva os preços

Tudo isto acontece enquanto o número de barris de petróleo e de outros combustíveis fósseis líquidos produzidos por dia, a nível global, aumentou do ano de 2020 para o de 2021, de acordo com os dados estatísticos fornecidos pelo governo dos Estados Unidos: passou dos 93,8 milhões de barris diários (2020) para os 95,5 milhões (2021). A crer nas previsões fornecidas pela Administração de Informação Energética (a EIA) deste país, entidade sob tutela do Departamento de Energia, em 2022 a capacidade diária de produção subirá para os 101 milhões de barris, esperando-se que seja de 102,9 milhões de barris em 2023.

Não obstante, o problema está nos “inventários [os stocks] globais de petróleo que caíram constantemente desde meados de 2020”, avisa a EIA. Estes, quando diminuem, fazem com que o preço do petróleo se inflacione. Em média, do terceiro trimestre de 2020 até ao final de 2021 existia em inventário, numa média diária, cerca de 1,8 milhões de barris. “Estimamos que os inventários de petróleo caíram ainda mais nos primeiros dois meses de 2022 e que os inventários comerciais da OCDE [a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, da qual Portugal faz parte] se situavam em fevereiro nos 2,64 mil milhões de barris, o nível mais baixo desde meados de 2014”, frisa a entidade governamental norte-americana.

Quanto a preços, e olhando para o que sucedeu nas últimas semanas, a EIA explica que valor do barril de Brent em fevereiro cifrou-se, em média, nos 97 dólares, “um aumento de 11 dólares em relação a janeiro”. Na primeira semana de março os preços diários rondavam os 124 dólares, “à medida que avançava a invasão da Ucrânia pela Rússia e com as subsequentes sanções à Rússia”, eventos que “criaram significativas incertezas no mercado devido ao potencial para interrupções no fornecimento de petróleo”.

Incerteza. No passado dia 6 de março muitos portugueses fizeram fila em vários postos de abastecimento de combustível, com receio do aumento de preços que estava previsto para o dia seguinte. Lusa

Olhando para o futuro, a Administração de Informação Energética dos EUA espera que o preço médio no segundo trimestre deste ano (abril, maio e junho) se fique pelos 116 dólares, só baixando consideravelmente na segunda metade de 2022, para os 102 dólares. Quanto a 2023, existe a expectativa de que o preço médio do barril de Brent seja de 89 dólares nesse ano, embora seja feita a ressalva de que “esta previsão é altamente incerta”.

Quanto ao consumo mundial de petróleo e outros combustíveis fósseis líquidos, em 2020 foi de 91,9 milhões de barris diários por dia (um número menor que o esperado devido à pandemia provocada pela COVID-19), chegando aos 97,4 milhões em 2021. Para 2022 e 2023 está calculado que a procura seja de 100,6 milhões e 102,5 milhões de barris diários, respetivamente.

Todavia, e face à volatilidade dos mais recentes acontecimentos mundiais – com destaque para a guerra na Ucrânia, as sanções económicas à Rússia e os diferentes papeis e intervenções que Estados Unidos e China poderão vir a ter em todo este imbróglio –, neste momento mais parece que se aplica a máxima que um jogador de futebol uma vez proferiu: “prognósticos, só no final do jogo”.