O apagão apanhou-me em Madrid, onde o acesso a informação foi tão mau como aqui. Sinceramente, num primeiro momento, achei que foi tão precipitada a reação à má comunicação por parte do Governo como absurdas foram as mensagens posteriores em que o Governo se vangloriou de tudo ter feito, quando na verdade, tal como a generalidade da população, fez pouco mais do que esperar que os responsáveis pela rede elétrica fizessem o seu trabalho. Não simpatizo com reações exacerbadas em momentos de crise, até porque me questiono sobre a capacidade que teremos de agir de forma coesa e responsável perante uma crise grave. Se tivermos uma catástrofe ou uma guerra, partimos para o açambarcamento irresponsável em supermercados, para as mensagens gloriosas de que está tudo bem, ou corresponsabilizamo-nos na procura coletiva de soluções?

Este foi o primeiro momento. Depois, veio o resto da semana e o acesso a informações que me faziam preferir ter continuado sem os alertas de notícias por mais uns dias. Quando o Tony Carreira canta os seus sonhos de menino, a solo ou em dueto governativo, parece inspirar os momentos mais patéticos a que assistimos.

Destaco três, em que cada um reflete uma parte da letra mais trauteada de Tony.

“Criança que fui e homem que sou, e nada mudou” – o caso de Castro Almeida

O Governo – e o Presidente da Câmara de Lisboa – não se poupou no autoelogio na gestão do dia do apagão. Estaria tudo bem, afinal estamos em campanha eleitoral e nas mãos de um Governo cujos partidos não se coíbem de usar os órgãos de comunicação do Estado para campanha (os ministros continuam a inaugurar, a anunciar, a publicar, a prometer como se estivessem em funções e como se não houvesse legislação que os limita. Mas o povo é sereno…). O que revela que não está tudo bem é termos um Ministro, ainda por cima o Ministro Adjunto, com duas intervenções inacreditáveis. Ecoando a desinformação que tomou conta do dia, lança o susto do ciberataque, enquanto a população não tem qualquer outro tipo de informação. Eu acho mesmo que o Governo não tinha muito mais a dizer, porque ninguém sabia bem o que se passava (na verdade, ainda não sabemos bem o que se passou), mas podia ter tido a responsabilidade de não especular e desinformar. Podia ter sido um mau momento, não fosse o mesmo ministro que, horas mais tarde, achou que transmitia tranquilidade aos portugueses informar que o gasóleo dos carros dos motoristas dos ministros é que iam abastecer os geradores de uma maternidade! É que, segundo o hospital, não aconteceu, não era necessário e havia alternativas. Dois momentos que são, no mínimo, de uma colossal infantilidade e que revelam uma falta de maturidade muito grande nas declarações.

“Tenho a vida que eu quis, nem sempre feliz mas é a vida que eu escolhi” – o caso de Hugo Carneiro

A poucas horas do debate entre os líderes dos dois maiores partidos, lá vem mais uma porção do conta-gotas informativo do caso Spinumviva. Não vou perder tempo a comentar, mais uma vez, todas as dúvidas que ainda permanecem e a trapalhada enorme de um Primeiro-Ministro que acha que não tem de esclarecer e tranquilizar quem suspeita que não exerceu o seu cargo em exclusividade, porque no fundo não vê isso como um problema. Também acho absolutamente irrelevante saber se a informação que ia ser pública se tornou conhecida antes, porque não está protegida por qualquer segredo (a entidade chama-se “da Transparência” e não “da Opacidade”). Acho mal que haja violações de segredo e confidencialidade, mas não engana ninguém um PSD que se agarra a isso, não disfarçando a enorme irritação por os dados terem aparecido antes de 18 de maio. Era Luís Montenegro ter cumprido as suas obrigações a tempo e não estávamos onde estamos. O que me parece mesmo grave, mas mesmo muito grave, é a ideia peregrina do deputado Hugo Carneiro quando sugere que uma jornalista seja obrigada a revelar fontes ou que haja inquirições, por parte das autoridades, aos contactos telefónicos dos agentes da imprensa. Como o Sindicato dos Jornalistas frisou, e bem, ainda vivemos num estado de direito, em que a liberdade de imprensa tem de continuar a ser um valor inquestionável. Tal como o menino Tony, o deputado Hugo Carneiro tem obrigação de saber que já escolhemos, há 51 anos, viver a democracia e que, ainda que nem sempre isso faça feliz, é a vida que nós queremos e que ele também quer, porque escolheu ser deputado num regime livre.

“Tão bom recordar aquele cantinho” – o caso de Luís Montenegro

25 de abril e 1 de maio. As datas que não queremos deixar de celebrar, viver e afirmar como momentos de reflexão sobre tudo o que ainda não conseguimos atingir para ter liberdade plena e democracia cumprida. Sobretudo, são datas em que celebramos o enterro de um passado que, se alguns não vivemos, todos temos o dever de não deixar esquecer. Não temos saudades das “conversas em família” marcelistas e, por isso, não aceitamos como mera coincidência que se apaguem as datas do convite para um São Bento de portas abertas que, em vez de celebrar a liberdade e a democracia, celebra em semelhança com os serões de antigamente. Os gostos não se discutem, mas o programa revela o falhanço de uma Ministra da Cultura que não foi capaz de sugerir ao inquilino de São Bento o convite de formas de arte que precisam de ser deselitizadas e dadas a conhecer num Portugal em que tantas expressões da cultura ainda estão arredadas de tantos. Os gostos não se discutem, mas precisamos de um Primeiro-Ministro que financie e promova os agentes culturais que lutam pela sobrevivência e pela visibilidade de trabalhos de excelência, em vez de se agarrar ao microfone no dia em que faz uma miniatura do piquenicão. Isto tudo, porque não temos mesmo saudades “daquele cantinho” que era um Portugal em que só havia lugar para uma cultura de superficialidade e engodo.

O apagão foi aborrecido, mas pelo menos, enquanto a luz esteve apagada, fomos poupados a estes desencantamentos de um PSD que nos trouxe vários momentos de vergonha alheia.