Há temas que ganham contornos tão emotivos que se tornam quase impossíveis de discutir com racionalidade. O bairro do Talude, em Loures, é um desses casos. No meio da gritaria, dos vídeos nas redes sociais, dos panfletos ideológicos e da política a reboque da espuma dos dias, há uma coisa que parece estar a faltar: bom senso. E é precisamente por isso que vale a pena escrever sobre isto.
Ricardo Leão, presidente da Câmara de Loures, tem sido alvo de uma campanha de linchamento público por parte de alguns sectores, que ignora a complexidade do problema e reduz tudo a uma narrativa simples, polarizada e profundamente injusta. O retrato que se está a construir é o de um autarca insensível, autoritário e desumano. Mas a realidade, como quase sempre, é mais densa.
Loures tem enfrentado nos últimos anos uma pressão enorme em matéria de habitação. O concelho é um dos últimos redutos da classe média e das franjas mais pobres da população para quem Lisboa se tornou economicamente inacessível. Ao mesmo tempo, a proliferação de bairros de barracas — como o do Talude — levanta questões sérias, tanto sociais como urbanísticas e de segurança. Fingir que estes bairros não existem, ou que podem crescer indefinidamente, é simplesmente irresponsável.
Ora, quando uma câmara tenta, de forma articulada com várias entidades, encontrar soluções que respeitem as pessoas e ao mesmo tempo travem o alastramento desordenado de construções ilegais, esperava-se que fosse vista como parte da solução — não do problema. E, no entanto, o que temos é o contrário. Ricardo Leão é acusado de tudo, como se estivesse a fazer uma razia em vez de procurar uma resposta difícil para um problema difícil.
Convém recordar os factos. O bairro do Talude cresceu de forma ilegal num terreno do Estado, sobretudo nos últimos meses. Não há ali água canalizada, nem saneamento, nem condições mínimas de segurança ou salubridade. As pessoas que vivem ali, muitas delas em grande vulnerabilidade social, estão objectivamente em risco. O que a câmara tentou fazer foi precisamente garantir que não se continuasse a construir mais barracas e que se criasse uma saída digna para as famílias que ali vivem.
Mas eis que surge o movimento Vida Justa. A intenção parece nobre: defender as pessoas. Mas o resultado está a ser contraproducente. Em vez de se juntarem ao esforço para encontrar soluções sustentáveis, os seus representantes têm promovido uma lógica de confrontação e de espetáculo mediático, arrastando para o centro da polémica uma comunidade que precisa, acima de tudo, de discrição, tempo e apoio técnico. Há uma diferença entre defender os mais vulneráveis e instrumentalizá-los para causas políticas.
Aliás, a politização deste caso é das coisas mais preocupantes em toda esta história. Não é por acaso que parte do próprio PS tem vindo a virar-se contra Ricardo Leão. Num momento em que o partido precisava de mostrar coesão e capacidade de lidar com as periferias urbanas, o que temos é mais um episódio de autofagia. Como se a câmara não fosse governada por um socialista com obra feita, mas por um qualquer tirano de direita obcecado em expulsar pobres do concelho. Nada mais longe da verdade.
O PS, se quer continuar a ser relevante nos grandes centros urbanos, tem de fazer uma reflexão séria sobre como lidar com os desafios da habitação e ter soluções para os graves problemas das áreas metropolitanas. A resposta não pode ser fingir que as dificuldades não existem, nem alinhar em discursos que têm mais de populismo do que de solidariedade. Cumprir a lei, combater as construções ilegais e assegurar soluções dignas para as pessoas não são acções incompatíveis com uma visão humanista. São, na verdade, parte dela.
O que está em causa no bairro do Talude não é apenas a situação concreta de quem lá vive, que por si só é muito importante, mas é também a forma como o país encara a habitação, o urbanismo e a justiça social. O Estado não pode continuar a deixar tudo em aberto: nem um "vale tudo" que alimenta a informalidade e o clientelismo, nem uma rigidez tecnocrática que ignora as histórias e os dramas humanos. É necessário um caminho de equilíbrio. E isso exige coragem política.
Ricardo Leão parece ter essa coragem. Não se limitou a prometer o céu, nem a fugir do problema. Fez o que muitos evitam: tentou resolver. Pode ter cometido erros na comunicação, pode não ter feito tudo da melhor forma — quem faz, falha — mas é injusto e perigoso deixar que a narrativa dominante seja a de que está ao lado dos poderosos contra os fracos. Porque não está. Está, isso sim, a tentar governar um território difícil, com problemas reais, sem soluções fáceis.
E é isso que devemos exigir de quem está no poder local: que não se esconda, que não ceda à pressão de um suposto politicamente correcto, que não se refugie na inércia. Que assuma responsabilidades. Que tente. Que falhe, se for o caso. Mas que esteja presente.
As barracas de Loures não são um problema novo, nem exclusivo deste executivo nem deste município. Mas são agora um espelho onde se reflete a falta de coragem com que a sociedade portuguesa continua a lidar com os seus próprios impasses. Fingir que a lei não se aplica a todos ou que a solidariedade implica abdicar da exigência é o caminho mais curto para o descalabro.
Neste caso, é preciso defender quem tenta fazer o que deve ser feito. Mesmo que, por agora, isso não renda aplausos nem likes nas redes sociais.
Escreve no SAPO quinzenalmente à quinta-feira // Tiago Matos Gomes escreve com o antigo acordo ortográfico