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Porque desenhas tantos joelhos?

Se crianças conseguem fazer «pulverizar os olhos», em que momento nos perdemos perdendo essa capacidade espontânea, ao ponto de termos de lutar por ela?
Porque desenhas tantos joelhos?
DALL-E

Num evento literário na Cidade do México, li um texto intitulado Porque desenhas tantos joelhos?, que foi uma pergunta que me foi feita por uma criança quando visitei a sua escola. Na altura, respondi a esse aluno do seguinte modo: normalmente as pessoas têm duas pernas e, por isso, eu acho que nunca desenho mais do que dois joelhos por pessoa. Claro que fiquei a pensar no assunto, e a pergunta, posteriormente, pareceu-me poética: aquela criança reparou em detalhes das minhas ilustrações, neste caso os joelhos, e isso teve algum impacto nela. Talvez por isso lhe tenham dado sensação de quantidade. Talvez a palavra «tantos» tenha sido o vocábulo possível para descrever a impressão que teve durante a fruição. Na verdade, dizer que uma pessoa é «tanto» ou é «muito» não nos soa estranho, pelo contrário, serve perfeitamente como descrição para alguém que se admira.

No festival mencionado no início do texto, estavam na minha mesa a escritora colombiana Yolanda Reyes e a escritora argentina Maria Teresa Andruetto, ambas grandes promotoras de leitura e da formação de leitores. Não me lembro qual foi a comunicação lida nessa tarde pela Maria Teresa Andruetto (com quem já me havia cruzado em Beja, numa das edições das Palavras Andarilhas), mas, anos depois, ao ler o seu livro A leitura, outra revolução, deparei com um texto que me parece descrever bem a estranha pergunta que citei antes. A questão, tal como foi formulada, traz surpresa e faz tremer a linguagem bem comportada, que se adequa à expectabilidade: «O poeta pede para escrever com todo o ofício e, ao mesmo tempo, contra o ofício, porque o ofício é salvação e condenação, é o maior inimigo, caminho pelo qual, muitas vezes, a palavra se torna estéril, correta política e linguisticamente; em nosso caso, correta no que se espera que seja a literatura infantil. O perigo é o de não saber dar à luz um “animal completo”, diz quem entende o poema como um ser vivo, feito de inteligência, coração, linguagem, mistério… Escreve-se então contra o ofício, contra a língua, contra o literário, contra a retórica, e escreve-se um poema para crianças, escreve-se contra o que se espera que seja a literatura infantil.»

Aquela criança formulou uma pergunta-poema, fazendo com que a palavra «tantos» se atirasse contra a esterilidade, contra a previsibilidade, contra a língua acomodada à formalidade. Voltando a Maria Teresa Andruetto: «A escrita exige olhar até entrar em contradição conosco, “até pulverizar os olhos”, como queria Alejandra Pizarnik.»

Recentemente, a editora Tcharan publicou três livros com os seguintes títulos: O roxo é um cachecol de Inverno, Por que é que os olhos não veem para dentro? e O Sol à noite não desenha. O que existe em comum nestes três títulos é que foram formulados por crianças. Ao lê-los, percebemos que ir contra o ofício não é fácil, mas que em criança isso é espontâneo. A recuperação desse estado poético é o que se ambiciona, tanto para a escrita como para olhar o mundo, para que este não seja um tecido gasto, puído pela convencionalidade. Se crianças conseguem fazer «pulverizar os olhos», em que momento nos perdemos perdendo essa capacidade espontânea, ao ponto de termos de lutar por ela?

Ainda Andruetto: «A linguagem é um organismo que rapidamente se corrompe, que morre e se regenera o tempo todo. Mais cedo do que tarde as frases deixam de aprisionar o que palpita – é assombrosa a velocidade com que o vivo se torna frase feita, palavra morta, clichê –, e então a escrita é essa procura do que ainda permanece, do que ainda tem poder para ligar os seres e as coisas, para ligar-nos a nós mesmos com as palavras, os seres e as coisas.»

Sem qualquer surpresa, sabemos que as palavras usadas em literatura são exactamente as mesmas que se usam na propaganda, na burocracia, no insulto, ou na mentira. John Berger, também citado no livro de Andruetto, escreveu o seguinte: «Que um poema ou um conto possa usar as mesmas palavras de um informe empresarial não significa mais do que o fato de que um farol e a cela de uma prisão possam ser construídos com as pedras da mesma pedreira e unidas com o mesmo cimento.»

Em momentos de crise social ou individual, há uma erosão do sentido, do farol, o mundo já não nos parece oferecer harmonia, mas caos, e agudiza-se a dificuldade de encontrar palavras com «poder para ligar os seres e as coisas». Assoberbados pela revolta ou tristeza ou desespero e, ao mesmo tempo, pelo cansaço, somos infectados por palavras mortas.

Reformulo a pergunta colocada acima: Se crianças conseguem fazer «pulverizar os olhos», em que momento nos perdemos perdendo essa capacidade espontânea, ao ponto de termos de lutar por ela, quando ironicamente nos vemos cercados de tantos adultos — muitos lamentavelmente em lugares de poder — tão infantilizados?

Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico

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