Há uma semana que é assim: às nove da noite a escuridão cai de rompante nas ruas da Vila do Corvo. A iluminação pública é toda desligada e a luz só volta a acender-se às seis da manhã. Ouvem-se as ondas do mar, o vento e os passos saltitantes de crianças. Ao longe, só se veem as luzes de umas lanternas e uns coletes amarelos completam o que parece ser um jogo de miúdos. O objetivo é salvar cagarros, a ave marinha que é a “essência dos Açores”, nas palavras de Tânia Pipa, uma das maiores impulsionadoras deste projeto na ilha – o SOS Cagarro.

É ela que nos diz que os cagarros são açorianos, “afinal é este o sítio que eles escolhem para nascer”, conta num tom de brincadeira mas com muita ciência à mistura. Afinal, 75% da população mundial destas aves marinhas, uma das maiores desta zona do Atlântico, nasce neste arquipélago. As restantes vivem nas outras ilhas da Macaronésia – na Madeira, Berlengas e Canárias.

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Nidificam nesta zona mas migram para outras bem mais distantes e reaparecem no arquipélago na altura do Dia dos Namorados, reencontram-se e recomeçam a época de acasalamento. “Há muita vocalização”, conta Tânia. Lá para maio ou junho põem o ovo “e vão revessando-se a tomar conta da cria”. Podem procriar durante trinta anos, desde que são adultos, por volta dos sete anos, até aos 40, a longevidade máxima conhecida.

É Tânia Pipa que nos conta os ciclos destas aves. Ela é bióloga marinha, técnica de conservação da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) e dá a cara pelo SOS Cagarro, uma ONG que colabora com o Parque Natural do Corvo, mas mais do que estes títulos é conhecida por todos como Pipa e é vista dia e noite de caixas na mão a procurar cagarros, a orientar as patrulhas de crianças ou a entrar em buracos para monitorizar ninhos.

Agora, entre o fim de outubro e o início de novembro, as crias têm cerca de três meses e preparam os primeiros voos. Orientam-se pelas estrelas e a lua ajuda-as a iluminar o caminho. O nevoeiro e as chuvas turvam-lhes a visão ainda não muito desenvolvida e  as luzes atrapalham-lhes a orientação . Não é raro irem contra casas, árvores, postes e outros obstáculos. E caem no chão.

Patrulhas noturnas, educação ambiental e voluntariado

Os voluntários juntam-se ao início da noite para mais uma brigada. O ponto de partida é o armazém do Parque Natural e, com caixa de cartão numa mão e lanterna na outra, dividem-se em pequenos grupos e seguem pela vila com a missão de salvar cagarros. Conhecem os meandros à vila, as fendas entre casas, os locais mais escondidos e os mais problemáticos. Quando avistam um cagarro, sabem pegar-lhe pela cauda e pelas asas, e amigavelmente metê-lo na caixa de cartão preparada para este efeito. Grande parte dos cagarros estão atordoados pela queda e frágeis, mas há outros que se defendem e tentam debater-se para não ficarem fechados.

Quem se junta às brigadas noturnas são sobretudo crianças e jovens. Aparecem 15 ou 20 entre os 5 e os 18 anos. O trabalho destes voluntários é muito útil para o projeto, mas é também uma aposta na educação ambiental.

Uma das pequenas voluntárias das patrulhas segue para as arribas para libertar um dos animais resgatados
Áurea, uma das voluntárias das patrulhas segue para as arribas para libertar um dos animais resgatados

“Estamos desde 2009 a trabalhar na literacia dos oceanos com as cerca de 60 crianças que há na ilha, dos três anos ao ensino secundário. Os miúdos já têm ligação nas brigadas e é muito bom ver que o testemunho fica bem entregue”, conta Tânia, que refere o caso de Rui Pimentel, o Vigilante na Natureza, que a acompanha em todo este processo e nas brigadas. Rui fez patrulhas quando era criança e foi o interesse que ganhou pela natureza que o encaminhou para a profissão que tem hoje. Passa agora o testemunho aos mais novos, mas os corvinos são muito conscientes da importância de partilhar o território com outras espécies que também fazem dele sua casa.

Luzes apagadas e menos quedas

“Estamos a trabalhar na educação ambiental e a fazer salvamentos, e queremos continuar este trabalho, mas é muito importante tentar mudar esta perspetiva e em vez de estarmos focados nos números de salvamentos, estamos muito focados em reduzir o impacto que temos”, afirma Tânia, que fez parte do projeto LuMinAves, para reduzir a poluição luminosa na Macaronésia.

Além do interesse da comunidade e desta relação histórica com o ambiente, desligar as luzes de uma vila inteira só é possível com o apoio da Câmara Municipal e de outras entidades privadas, como é o caso da Portos dos Açores, responsável pelo porto marítimo e pela sua forte iluminação no cais.

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Alguns dos voluntários percorrem as ruas do Corvo à procura de cagarros

Tânia diz que “no Corvo é fácil”. Elogia o trabalho e a colaboração de José Manuel Silva, presidente da Câmara, que “também aparece com caixas de cagarros e a filha aos três anos já andava nas patrulhas”. “Há uma proximidade que se calhar não há noutros sítios”, conclui a bióloga marinha.

De 15 de outubro a 15 de novembro as luzes apagam-se da meia-noite às seis da manhã. Mas na altura mais crítica, quando se consegue prever que possam sair mais aves para os primeiros voos, o apagão é geral: às nove o Corvo fica às escuras. “Há pessoas que até dizem que gostam e que tinham saudades de ver a ilha assim”, conta o presidente da Câmara do Corvo ao SAPO e Tânia complementa: “Temos o respeito da população, eles também veem a nossa dedicação. Tanto nós como o Parque Natural, ou seja, o Rui. Estamos 24 horas disponíveis, ligam-nos de madrugada para ir buscar cagarros e às vezes estamos aqui a anilhar até tarde e depois de manhã cedo a soltar”, conta Tânia ao SAPO, após uma bonita manhã a ajudar cagarros a recomeçar a voar.

Na noite anterior, as brigadas salvaram 29 cagarros, muito mais do que o habitual devido ao nevoeiro. Depois de identificados os locais em que foram apanhados, são medidos, pesados e anilhados. Passam a noite nas caixas no armazém e, de manhã cedo, são levados até às arribas. Abrem-se as caixas e encaminham-se as aves na direção do mar. Saem ao de leve, analisando ao redor, alongam as asas, espalham um óleo para impermeabilizar as suas penas e, umas mais rápido, outras mais a medo, preparam-se para se atirarem ao céu e voarem até as perdermos de vista.

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Cagarros a voarem depois de serem resgatados e libertados

Grande parte destas aves dirigem-se agora para sul. As mais jovens demoram cerca de três semanas a um mês para chegar à África do Sul ou ao Brasil e os adultos fazem a viagem em duas semanas. Há outros que decidem ficar por esta zona ou um pouco mais a norte e tirar um ano sabático – nem migrar nem procriar e ganhar forças para outro ciclo.

Lampiões, lâmpadas e cores especiais para iluminar a vila

A primeira vez que a ilha do Corvo ficou às escuras para reduzir o impacto dos hábitos da população na vida dos cagarros foi há trinta anos. “As pessoas aperceberam-se que os animais caíam por causa das luzes e começou-se a desligar as luzes nesta altura do ano em algumas horas da madrugada, entre as duas e as seis da manhã, por exemplo”, recorda Tânia. A campanha do SOS Cagarro inicia-se em 1995 coordenada pelo Governo dos Açores e com o apoio dos Parques Naturais das ilhas, a PSP, a GNR, os bombeiros e todos os voluntários”, conta a responsável pelo SOS Cagarro no Corvo.

Há na vila três hotéis para estas aves marinhas pernoitarem, ou seja, locais abrigados com caixas de cartão e onde as pessoas as podem deixar quando as encontram. A equipa da Tânia passa regularmente nestes locais para depois as recolher.

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Um dos três hoteis de cagarros espalhados pela Vila do Corvo
Em noites de lua cheia, os cagarros não se desorientam tanto, em noites de lua nova há mais problemas. Quando o nevoeiro desce, caem mais, quando sobe, voam mais. Tânia já conhece as dinâmicas que a lua e o nevoeiro têm nos voos destas aves e com a redução da iluminação pública em períodos críticos tem sido notória a redução de salvamentos que têm feito.

Durante o apagão as patrulhas apanhavam uma média de seis ou sete por noite e quando as luzes da vila estavam ligadas, recolhiam uns vinte ou trinta. “Antes, as pessoas ligavam de manhã e salvavam muitos animais, mas agora não há quase chamadas durante o dia”, conta Tânia, que recorda anos em que chegaram a salvar 1030 cagarros; mais recentemente já tiveram um ano em que recolheram apenas 74. Realçando que apesar de os dados parecerem animadores são ainda “resultados preliminares”, Tânia e Rui são sagazes de noite e de dia a procurarem animais caídos pela ilha: “Se não estiver sempre a procurar também não sei se caíram, temos de fazer um esforço para procurar para termos dados fidedignos”.

Rui Pimentel, o Vigilante na Natureza, que encaminha dois cagarros em direção ao mar
Rui Pimentel, o Vigilante na Natureza, que encaminha dois cagarros em direção ao mar

Apesar de algumas iniciativas para se desligar a luz e de um apagão geral numa noite em 2019 celebrado com uma festa, foi em 2020 que o Corvo ousou e esteve uma semana em apagão total. Este ano,  a vila está durante um mês com a iluminação desligada várias horas por noite. “A decisão foi fácil”, afirma o presidente da Câmara. “Somos um santuário de aves marinhas, não podemos apenas só ser, temos de também de fazer. Já desde 2001 que tentamos tomar algumas iniciativas. Vemos o trabalho que a Tânia Pipa tem feito no Corvo e era nosso dever acompanhar.”

Antes de deixar o Corvo totalmente às escuras, a população foi consultada. “Se estivermos a impingir as coisas, as pessoas não reagem muito bem, a conservação só faz sentido se os locais estiverem envolvidos”, realça Tânia, que andou a recolher assinaturas para apresentar a proposta à Câmara. Conseguiu ultrapassar as duzentas – mais de metade da população – e entregou à autarquia, que ganhou balanço onde já existia vontade de avançar.

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Alguns voluntários levam as caixas com cagarros resgatados do armazém para as arribas

O efeito dominó nas instituições e o Corvo como santo graal dos céus noturnos

Além dos apagões, há outras medidas a serem tomadas para reduzir a poluição luminosa. “O céu limpo no Corvo é mais uma atração para quem quer ver um céu natural, que dificilmente se consegue ver noutra parte do mundo”, conta o presidente da Câmara e é corroborado por estudos que estão a ser realizados pelo projeto EE Labs, um laboratório de eficiência energética que junta astrónomos e biólogos coordenado pelo Centro de Astrofísica das Canárias e do qual a SPEA é parceira nos Açores e na Madeira, que através de fotómetros montados na ilha tenta perceber se o Corvo é de facto o santo graal nas noites naturais.

Em maio deste ano, a iluminação pública do Corvo foi substituída e passou-se a usar lâmpadas LED – a ideia parece ser boa para a eficiência energética, mas as luzes frias têm impacto na biodiversidade. Aquando desta mudança, imposta por diretivas europeias, a Câmara Municipal chamou os técnicos da LuMinAves para estarem presentes na reunião com a Eletricidade dos Açores (EDA) de forma a trabalharem juntos tanto na eficiência energética como na redução de quedas de aves.

Hoje, quem passeia pelo Corvo vai reparar que as luminárias não têm vidros. A luz não se difunde para o ar e é direcionada para o chão, e reduziu-se também a temperatura da luz. “É mais âmbar, não é mesmo âmbar porque não daria para iluminação pública, mas reduzimos ao mínimo possível”, explica o autarca. “Se virmos a vila e compararmos com o que era, vemos que já não é o clarão que era antes”, conclui.

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Uma das luminárias da vila e as suas especificidades

“O ponto crítico era o cais porque as lâmpadas LED são muito fortes e de cores muito frias”, explica Tânia, mas a empresa privada que gere o porto marítimo, a Porto dos Açores, também decidiu juntar-se à iniciativa e desligar as luzes do cais. “Criou-se uma empatia tão grande com os cagarros que não há volta a dar”, conta o autarca, e fala num efeito dominó com as empresas e com outros municípios.

Desligar as luzes de uma ilha inteira não se afigura uma tarefa simples em outros territórios com mais vilas e população, mas já há exemplos de vários municípios que, a pedido do Governo dos Açores e da SPEA, desligaram as luzes em alguns períodos ou zonas mais críticas. Mesmo sendo iniciativas mais pequenas, Tânia não se esquece de louvar o trabalho de Santa Cruz das Flores e Lajes das Flores, na ilha vizinha. Em São Jorge, a cooperação da EDA e da central termoelétrica. Na ilha com a mais alta montanha portuguesa, Madalena e Lajes também fizeram com que partes do Pico estivessem às escuras. Ponta Delgada não deixa de dar o exemplo e seguem-se muitos outros municípios de São Miguel e de Santa Maria.

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A obra Cagarro de Bordalo II é uma homenagem à população do Corvo pelo cuidado com as aves marinhas

É o autarca corvino que explica que “quando as câmaras são confrontadas é muito difícil dizer que não”. “Se queremos a sustentabilidade temos de trabalhar para ela”, explica ao mesmo tempo que se orgulha por ser a sua ilha a pioneira. “É mais fácil quando há um exemplo e dados concretos, eu vou desafiando os meus colegas de outras ilhas informalmente a fazer o mesmo.”

Projetos como este, que envolvem tantas dimensões da sociedade, fazem-nos acreditar que os cagarros, que nas palavras de Tânia são o som e a alma dos Açores, vão continuar a voar por este arquipélago.

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*O SAPO viajou a convite do Azores 2027 – candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura 2027 para acompanhar a residência artística de Ching-Yu Cheng e coincidentemente apanhou este apagão na ilha.