“É na fase de inquérito que há uma maior lentidão na Justiça”, dizem advogadas da Sérvulo

A Advocatus entrevistou Cláudia Amorim e Teresa Serra, sócia e of Counsel no departamento de Contencioso e Arbitragem da Sérvulo.

Na Sérvulo como sócia desde 1999, Teresa Serra é atualmente Of Counsel do departamento de Penal e Contraordenações e de Contencioso e Arbitragem. É membro do Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Docente universitária, entre 1982 e 2015, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e em diversos cursos de pós-graduação no âmbito do direito sancionatório. Membro do Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro da Roxin Alliance, desde 2011, organização de advogados e académicos dedicada a temas de criminalidade económica e financeira internacional e compliance.

Na Sérvulo desde 2006, Cláudia Amorim é sócia no departamento de Contencioso e Arbitragem, exercendo a sua atividade com especial incidência na área de Penal e Contraordenações. Presidente do Forum Penal – Associação de Advogados Penalistas, desde 2022, foi membro da Comissão para a Igualdade de Género e Violência Doméstica da Ordem dos Advogados e membro do Grupo de Trabalho para a Reforma das Contraordenações da Ordem dos Advogados. Integrou também, até 2020, o Comité para a Prevenção da Tortura. Iniciou a sua carreira de advogada na PLMJ , primeiro como estagiária, entre 2002 e 2004, e depois como associada, de 2004 a 2005.

Ambas as advogadas têm experiência em litigância penal – tanto do lado da defesa, como do lado da acusação – com especial incidência no crime de colarinho branco, nos crimes fiscais e contra a Segurança Social, nos crimes contra o património e contra a honra, incluindo processos de grande complexidade. E também no contencioso de natureza sancionatória, em especial em processos de responsabilidade financeira junto do Tribunal de Contas e de responsabilidade disciplinar e na representação de clientes em processos resultantes da apresentação de queixas junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

No programa de Governo, apresentado ontem, a suspensão provisória do processo aplicada a quem contribuir para a verdade nos processos de corrupção está a ser ponderada. É uma medida positiva?

Se reparar, o Programa do Governo contém uma espécie de rol de medidas apresentadas ainda sob uma forma quase eleitoralista. Nada é aprofundado pelo que pouco ou nada pode ser realmente avaliado. Quanto à medida que refere, por exemplo, ela está redigida ainda de uma forma demasiado vaga para se poder compreender em que moldes está a ser pensada, embora existam já na lei processual medidas muito semelhantes à proposta. É necessário ter em conta que, tendo uma vertente positiva, os mecanismos de premiação da colaboração têm de ser aplicados com a máxima cautela, sob pena de subverterem a própria lógica no nosso sistema penal e processual penal.

E a fixação de 72 horas do prazo máximo para decisão de medidas de coação desde a detenção de um arguido, permitindo ainda que possa ser ouvido por mais do que um juiz de instrução?

Há longos anos que se discute a temática do prazo máximo de detenção, sabendo-se que o prazo de 48 horas poderia não ser suficiente para finalizar o interrogatório, tendo-se cristalizado a tese de que bastaria que fosse feita neste prazo a apresentação do arguido ao juiz e a respetiva identificação. Recentemente, e bem, a questão voltou a ter uma atenção especial, exigindo-se uma mudança na própria lei para que o prazo se torne um prazo “real”, atendendo à gravidade da privação da liberdade quando não está ainda aplicada qualquer medida de coação. O alargamento do prazo, ainda que muito limitadamente, pode permitir o seu cumprimento. Mas diríamos que, a montante, se impõem igualmente, por um lado, a ponderação das situações em que verdadeiramente é necessário deter uma pessoa para constituição de arguido, primeiro interrogatório e aplicação de medidas de coação ou quando essa pessoa pode ser notificada para comparecer mais tarde; e, por outro, que o Ministério Público apresente um despacho de indiciação, devidamente fundamentado e acompanhado das provas essenciais, sem que o juiz de instrução tenha necessidade de mergulhar no processo para as encontrar e ponderar a sua decisão.
Quanto à possibilidade de ser mais do que um juiz a presidir aos interrogatórios, para além de constrangimentos práticos, pode traduzir-se num desvio ao princípio da concentração da prova, impedindo uma visão integrada do processo que permita fundamentar devidamente as medidas de coação a aplicar.

Quanto à possibilidade de ser mais do que um juiz a presidir aos interrogatórios, para além de constrangimentos práticos, pode traduzir-se num desvio ao princípio da concentração da prova, impedindo uma visão integrada do processo que permita fundamentar devidamente as medidas de coação a aplicar”

Estamos demasiado obcecados com a corrupção?

É importante sublinhar que, nos últimos anos, até por via europeia, tem havido um reforço muito significativo, e positivo, das medidas de prevenção e combate à corrupção. Trata-se de aprofundar esse reforço e, decisivamente, dotar as instituições que têm de executar essas medidas dos meios necessários à sua eficácia. Veja-se o que ainda recentemente foi noticiado a propósito do MENAC… A obsessão – se assim se pode dizer – com a corrupção pretende responder mal a questões políticas sensíveis que emergem da dificuldade de distinguir e da tentativa de confundir a existência de corrupção da perceção da corrupção e do aproveitamento político dessa dificuldade.

Mas há toda uma série de outra criminalidade que não pode ser descurada, como, por exemplo, a que está relacionada com o tráfico de droga e a violência doméstica, e muito especialmente a criminalidade informática, em franco crescimento, através da qual se praticam hoje em dia falsificações e burlas de milhões em larga escala e a nível internacional, para fazer frente às quais ainda recentemente o Procurador Pedro Verdelho reconheceu não existirem meios, não apenas cá. Por fim, parece-nos exigir uma particular atenção a crescente criminalidade juvenil pelas repercussões evidentes no futuro desses jovens, como também no futuro das suas vítimas, as mais das vezes também elas jovens.

Nas 186 páginas do programa de Governo, não há uma única referência à advocacia. Isso é preocupante?

Sim, é um sinal negativo para o exercício da profissão, numa altura em que foram recentemente aprovadas alterações que modificam significativamente tanto o elenco de atos exclusivos da advocacia e respetivo crime de procuradoria ilícita, como a configuração da própria Ordem, mormente no que respeita aos poderes de fiscalização e controlo da prática da advocacia. Note-se que há determinados aspetos que ainda terão de ser regulamentados por Portaria e era naturalmente muito relevante conhecer o que o novo Governo pensa a este respeito.

Faz sentido a fase de instrução deixar de existir, no processo penal?

Em nosso entender, a possibilidade de se requerer a abertura de instrução continua a fazer todo o sentido no sistema processual penal português. Por um lado, permite evitar que uma série de processos cheguem a julgamento, com todas as vantagens em termos de poupança de meios e de recursos. Por outro lado, é por vezes a única forma de evitar que um arquivamento ilegal se cristalize na ordem jurídica. É fundamental assegurar o direito a que um juiz confirme ou infirme a análise feita pelo Ministério Público quanto aos indícios da prática de um crime.
A eliminação da fase de instrução e a restrição dos recursos são duas bandeiras dos arautos da “agilização” e do combate à lentidão da Justiça Penal contra o excesso de garantias de que acusam o nosso sistema processual penal. A Justiça não tem o tempo das parangonas e head-lines com que os meios de comunicação social julgam na primeira página ou em prime time cidadãos, não raras vezes anónimos, sem lhes reconhecer qualquer garantia. Já para não falar das redes sociais… Em todo o caso, se nos detivermos em inúmeros processos sem grande complexidade, verificamos que é na fase de inquérito que há uma maior lentidão.

Of Counsel, sócia da Sérvulo

Os megaprocessos são os responsáveis pela demora na Justiça Penal?

Não, os chamados mega processos, embora sejam muito mediatizados, não são o paradigma dos processos objeto da nossa Justiça Penal. A grande maioria dos processos têm um objeto relativamente circunscrito e, ainda assim, alguns deles são igualmente muito morosos nas suas diversas fases, em especial, como já referimos, na fase de inquérito.

A solução pode passar por ‘partir’ esses megaprocessos em vários, mais pequenos?

Não cremos que seja essa exatamente a ideia, mas sim a delimitação do objeto do processo e essa delimitação obriga a uma criteriosa análise dos factos indiciários e dos meios de prova existentes. Imagina o que é a audição – já nem falamos de transcrição – de um, dois ou mais anos de escutas telefónicas a diversos arguidos num desses mega-processos? E só para falar nas escutas…
Aos poucos, o próprio Ministério Público começa a perceber que processos megalómanos dificultam muito a recolha e análise da prova, impedindo uma acusação e um julgamento em tempo útil. Do mesmo modo, também o exercício do direito de defesa se torna por vezes diabólico, acentuando a desigualdade de armas.
Delimitar e concentrar o objeto do processo traz benefícios para todos os envolvidos, tornando a Justiça Penal mais rápida e eficaz. O Al Capone foi preso e condenado “apenas” por crimes fiscais…

A prestação de contas por parte do MP é uma miragem?

O Ministério Público tem uma estrutura hierárquica que assegura, em tese, a prestação de contas, internamente, mas que, em certa medida, se pode refletir nos próprios processos, por exemplo, no caso da reabertura de um inquérito por via da intervenção hierárquica, mas também fora deles, no que respeita às eventuais consequências disciplinares.

O que faz falta no Ministério Público?

O Ministério Público atravessa uma fase de grande pressão e escrutínio que deveria desencadear uma reflexão interna profunda sobre a estratégia e objetivos da investigação.

Como avalia a comunicação (ou falta dela) por parte do Ministério Público/PGR?

O Conselho Superior da Magistratura tem feito um esforço nos últimos anos de melhorar a comunicação. Será necessário que a Procuradoria- Geral da República faça essa reflexão e esforço, sem, no entanto, pôr em causa os próprios interesses da investigação que muitas vezes não são compatíveis com uma informação totalmente aberta.

Existe atualmente uma espécie de perseguição a políticos por parte do Ministério Público?

Recusamo-nos a fazer processos de intenção a quem se ocupa da investigação criminal, ou seja, da fase de inquérito, e que é o Ministério Público. Há atualmente uma grande mediatização dos processos penais que visam titulares de órgãos de instituições que vão do Governo até aos clubes de futebol, passando por empresários e até funcionários públicos de topo, o que acaba por contribuir para essa sensação da existência de certos alvos e de timings que extravasam o tempo do próprio processo. Mais uma vez, a existência de uma perceção que, pese embora factos recentes, cremos que não corresponde à realidade. O que se verifica é um combate maior à chamada criminalidade económico-financeira que muitas vezes visa pessoas ligadas ao exercício de funções políticas e públicas.

O Conselho Superior da Magistratura tem feito um esforço nos últimos anos de melhorar a comunicação. Será necessário que a Procuradoria- Geral da República faça essa reflexão e esforço, sem, no entanto, pôr em causa os próprios interesses da investigação que muitas vezes não são compatíveis com uma informação totalmente aberta”

A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública, muito alimentada pelos comentadores televisivos residentes. Como explicar ao cidadão comum que não é assim que se faz Justiça?

A formação de base, desde as escolas, sobre quais são os nossos direitos fundamentais, quais os pilares do Estado de Direito democrático e os princípios que regem a nossa Justiça penal é fundamental para criar um sentido cívico mais consciente e responsável. É também fundamental que estes conceitos sejam divulgados, tanto nos media como noutros canais para que a dita tese dominante não vingue. O princípio da presunção de inocência e o funcionamento independente da Justiça são basilares para que se faça efetivamente Justiça. Não pode haver julgamentos na praça pública nem condenações eternas através da manutenção das notícias sobre os processos, sem a possibilidade do verdadeiro exercício do direito ao esquecimento. Cabe a todos os operadores judiciários e também à comunicação social cultivar estes princípios, transmitindo-os à opinião pública.

Sabemos que a Justiça não é eficiente. Mas é independente? Falo do MP e dos juízes.

Não se pode afirmar, sem mais, que a Justiça não é eficiente. Estamos em crer que, em boa medida, o é. Se a Justiça não for independente não há Justiça. É necessário que tanto os magistrados judiciais como os magistrados do Ministério Público assegurem diariamente a independência, não permitindo qualquer interferência que a ponha em causa. Mas, atenção, a independência que é própria de cada uma destas magistraturas e que não é a mesma para ambas, não deixando de sublinhar que os Tribunais são um órgão de soberania. Mas, já com algumas dezenas de anos de exercício de advocacia, pelo menos quanto a uma de nós, não estamos em crer que a esmagadora maioria dos problemas dos Tribunais e do Ministério Público radique na sua falta de independência.

Cláudia Amorim, sócia da Sérvulo

A lei do lobby vai ajudar a esclarecer e tornar certos contextos mais transparentes?

Sim, permitirá separar “o trigo do joio”. É essencial definir as situações de fronteira e acabar com os espaços de vazio legislativo que podem ter consequências injustas para todos os intervenientes.

O que pode ser melhorado para não termos processos a durarem tantos anos?

É necessário reforçar os meios disponíveis tanto no Ministério Público, policias e Tribunais, não só os meios humanos, mas também os meios tecnológicos, possibilitando, por exemplo, a digitalização e informatização total dos processos penais. Do mesmo modo, dotar a fase de inquérito de peritos e meios técnicos especializados que permitam investigar, de forma célere e eficiente, o novo tipo de criminalidade.

Se fosse ministra da Justiça, que medida tomaria em primeiro lugar?

Sempre que se fala em medidas, parece que se está sempre a apontar para medidas legislativas. Não é que não sejam necessárias também, mas começaria pela pacificação dos Tribunais lato sensu. Sem pessoas que olhem o seu dia a dia com confiança, motivadas para o exercício de uma tarefa tão nobre como a da colaboração na administração da Justiça, esta nunca será eficiente. Daí a necessidade de promover a atualização da carreira dos funcionários judiciais, não somente no plano salarial, mas também funcional. O esclarecimento do papel da autonomia e da hierarquia na magistratura do Ministério Público parece igualmente decisivo. A análise e o debate dos números de presos preventivos e de reclusos condenados a pena de prisão efetiva, números estes muito superiores à média dos países nossos congéneres europeus, assim como a duração das penas, merecer-nos-iam igualmente uma atenção prioritária.
Depois, a regulamentação de inúmeras leis que dela necessitam e que a queda do Governo e a dissolução da Assembleia da República interromperam, como, por exemplo a da lei da eutanásia.

Por último e porque é uma medida legislativa que nos é cara e por que nos temos batido, asseguraria o apoio jurídico permanente nos estabelecimentos prisionais, através da criação de uma bolsa de advogados/escalas, no âmbito da lei de acesso ao direito, que permita aos reclusos ter um efetivo acesso ao patrocínio e aconselhamento jurídico, como um cidadão em liberdade.

O segredo de justiça, na forma como está, deveria pura e simplesmente desaparecer?

Não, o segredo de justiça está constitucionalmente consagrado, prevendo-se que a lei defina os seus pressupostos e assegure a sua proteção. É bom de ver que, em casos excecionais e devidamente fundamentados, se justifica inteiramente a existência de segredo de justiça, que deve ser respeitado, sancionando-se de forma efetiva a sua violação.

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