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Helicobacter pylori: como se rastreia a bactéria que causa cancro do estômago nos Açores 

Em Portugal, o cancro do estômago é considerado pelos especialistas um problema de saúde pública, e, nos Açores, avançou um projeto-piloto que tem o objetivo de rastrear a bactéria associada ao desenvolvimento desta doença oncológica: a Helicobacter pylori. Ao Viral, o coordenador do projeto dá a conhecer a iniciativa e um gastrenterologista explica, afinal, que bactéria é esta e que implicações tem para a saúde. 

27 Abr 2024 - 09:58

Helicobacter pylori: como se rastreia a bactéria que causa cancro do estômago nos Açores 

Em Portugal, o cancro do estômago é considerado pelos especialistas um problema de saúde pública, e, nos Açores, avançou um projeto-piloto que tem o objetivo de rastrear a bactéria associada ao desenvolvimento desta doença oncológica: a Helicobacter pylori. Ao Viral, o coordenador do projeto dá a conhecer a iniciativa e um gastrenterologista explica, afinal, que bactéria é esta e que implicações tem para a saúde. 

E se, ao fazer-se o rastreio de uma das principais causas de cancro, se pudesse eliminar quase por completo o risco de desenvolver a doença? Esta hipótese generalista deu o impulso ao Programa Gratuito de Rastreio e Erradicação de Helicobacter pylori iniciado na ilha Terceira, nos Açores, em março.

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A iniciativa partiu do Grupo de Trabalho de Prevenção do National Cancer Hub PT que junta várias entidades nacionais – instituições, profissionais de saúde, investigadores e associações de doentes – na estratégia para a prevenção e tratamento da doença oncológica e que, ao olhar para os números nacionais, decidiu centrar atenções numa das doenças oncológicas com maior impacto na saúde dos portugueses: o cancro do estômago.

Os dados são claros quanto ao panorama do cancro do estômago em Portugal e na perspetiva de Ricardo Marcos-Pinto – gastrenterologista na Unidade Local de Saúde de Santo António e professor associado no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto e investigador no i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde – mostram que este é um “problema de saúde pública”.

Segundo o relatório de 2020 do Registo Oncológico Nacional, excluindo os tumores da mama e os exclusivos de cada sexo (próstata e ovários, por exemplo), o cancro do estômago “foi o quarto cancro mais incidente, com 2 615 novos casos”, observando-se uma clara relevância dos distritos da Região Norte do país – nomeadamente Braga, Porto e Viana do Castelo – no número de diagnósticos.

E, comparativamente com os parceiros europeus, o cenário nacional é dos mais preocupantes. 

Os dados do Sistema Europeu de Informação sobre o Cancro referentes a 2022 mostram que Portugal é, a seguir à Estónia, o país com maior incidência da doença e com maior mortalidade por cancro do estômago.

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Esta é uma realidade também apontada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) no documento com o perfil português da doença oncológica publicado em 2023, no qual se frisa: “Em 2019, o cancro gástrico (do estômago) representou uma taxa de mortalidade global de 19 mortes por 100 000 habitantes, o que representa quase o dobro da média da UE (10 por 100 000 habitantes)”.

Na base do desenvolvimento deste cancro está uma bactéria, a Helicobacter pylori, que foi considerada em 1994 um carcinogénico do tipo I pela Organização Mundial de Saúde, como recorda esta análise, daí que se pense na possibilidade de que com a identificação e tratamento das pessoas portadoras deste microrganismo possa ser possível diminuir os números da doença. 

O projeto-piloto iniciado nos Açores assenta, precisamente, nessa ideia. Trata-se “um rastreio oportunístico da bactéria que está identificada como agente carcinogénico de cancro de estômago”, explica ao Viral João Macedo, presidente do Centro Oncológico dos Açores e coordenador a iniciativa, que irá avaliar a pertinência deste tipo de estratégia e a relação entre o custo e a eficácia do alargamento do rastreio a todo o território nacional.

Mas, afinal, o que é a Helicobacter pylori?

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a Helicobacter pylori é uma bactéria com um elevado grau de resistência, o que lhe permite sobreviver ao microambiente ácido do estômago.

Ela é capaz de neutralizar a acidez do ambiente local no estômago, embora não no estômago como um todo, e interfere nas respostas imunológicas locais, tornando-as ineficazes na eliminação da bactéria, como se pode ler aqui.

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O gastrenterologista ouvido pelo Viral frisa que, “na maior parte das vezes, a bactéria convive connosco sem provocar grandes estragos e quase nunca provoca sintomas”. Habitualmente, o que acontece é a pessoa descobrir que é portadora de Helicobacter pylori ao fazer o estudo endoscópico aconselhado por ter familiares com cancro do sistema gastrointestinal ou por ter sintomas digestivos.

O papel da Helicobacter pylori no desenvolvimento de algumas patologias foi a via de investigação de dois investigadores australianos, Robin Warren e Barry Marshall, que, em 1982, publicaram um trabalho a demonstrar como as úlceras gástricas não eram provocadas pelo stress e pela má alimentação, mas sim por este agente infecioso, como é relatado na revista Lancet. O trabalho valeu-lhes o Prémio Nobel de Fisiologia e Medicina em 2005.

É, precisamente, a inflamação crónica provocada pela bactéria que pode levar ao desenvolvimento de doenças gastroduodenais, como as úlceras pépticas (gástricas ou duodenais).

Hoje também já se sabe “que a maior parte dos cancros do estômago são dependentes da bactéria”, acrescenta Ricardo Marcos-Pinto, como ficou demonstrado aqui e aqui

São casos raros, pois “a grande maioria das pessoas infetada com a bactéria, não desenvolve cancro”, sublinha o gastrenterologista, mas, na maioria dos casos, para o desenvolvimento do cancro gástrico é necessário que a pessoa tenha sido infetada pela bactéria. 

Esta associação está documentada, sobretudo, no cancro do estômago mais comum – o adenocarcinoma gástrico do subtipo intestinal – como se pode ler aqui e aqui

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Como se transmite a Helicobacter pylori?

Não existem consensos definitivos sobre as formas de transmissão desta bactéria. “Não se sabe se é de mãe para filho, se a linha de transmissão é oral ou fecal, as investigações ainda não determinaram com exatidão o modo de transmissão”, reconhece Ricardo Marcos-Pinto. 

O que tem sido consensual nos vários trabalhos publicados, e é realçado pelo gastrenterologista, é a maior prevalência da infeção entre a população de condições socioeconómicas mais desfavorecidas e que o momento da infeção ocorre na infância

“É muito raro a pessoa adulta ser infetada e, quando é tratada da infeção, é altamente improvável que se reinfete. O risco de reinfeção é inferior a 3%”, acrescenta o especialista. 

Isso mesmo reconhece a Organização Mundial de Gastrenterologia (OMG) ao apontar que “o principal fator determinante da prevalência da infeção é o nível socioeconómico na infância” neste documento.

No mesmo texto da OMG é possível verificar que Portugal se encontra no grupo de países com uma prevalência da infeção por Helicobacter pylori superior a 70%.

Ilha Terceira: um microcosmos ideal para estudar a Helicobacter pylori

Por ser uma ilha que, apesar de pequena, já tem uma dimensão considerável, com uma população de cerca de 50 mil habitantes, a Terceira foi o local escolhido para avançar com este projeto-piloto.

João Macedo reconhece que os números do cancro do estômago do arquipélago estão em linha com as estatísticas observadas no continente, com uma incidência elevada em ambos os sexos, como documenta o relatório que assinalou os 20 anos do Registo Oncológico nos Açores.

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No fundo, tem a representação nacional da incidência desta doença oncológica e tem os circuitos de saúde organizados de forma a poder dar resposta a um rastreio deste género. 

Diferentemente do que acontece no continente com o rastreio do cancro de mama, em que as mulheres são convocadas para a realização da mamografia, neste projeto-piloto as pessoas com mais de 18 anos são convidadas, aquando da visita a uma das farmácias da ilha, a participar no estudo.

“Também já aconteceu termos pessoas que ouviram falar do projeto e dirigiram-se a uma farmácia por quererem participar no rastreio”, conta João Macedo.

Na farmácia é disponibilizado um kit semelhante ao utilizado para o rastreio do cancro colorretal para a pessoa fazer a recolha no domicílio e entregar novamente na farmácia. 

“A amostra é enviada para o laboratório de biologia molecular do hospital da Terceira. Se o resultado for negativo, é enviada um SMS a informar a pessoa e a agradecer a participação no estudo, mas, se o resultado for positivo para a presença da bactéria, é feita uma chamada telefónica a convocar para uma consulta médica no Centro de Oncologia dos Açores, onde será proposta a terapêutica de erradicação da bactéria”, explica o responsável.

É possível erradicar a Helicobacter pylori?

A resposta é sim. Apesar de ser uma bactéria com grande capacidade de resistência num ambiente ácido como o do estômago, os tratamentos existentes conseguem erradicar a infeção no hospedeiro.

E, atendendo à forte ligação entre a presença da bactéria e o desenvolvimento de cancro do estômago, Ricardo Marcos-Pinto diz que hoje “as indicações são claras e, uma vez detetada a infeção, a pessoa deve ser tratada, porque, apesar de o risco de haver complicações ser baixo, sabemos que a maior parte dos cancros [gástricos] são dependentes da bactéria”. 

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E a evidência científica tem vindo a demonstrar que o tratamento da infeção por Helicobacter pylori reduz o risco de desenvolver cancro gástrico (aqui e aqui).

Tratando-se de uma bactéria, a terapêutica para a erradicação passa pelo recurso à antibioterapia que, neste caso, devido à conhecida resistência da Helicobacter pylori, passa por uma associação de vários antibióticos à qual se juntam protetores gástricos, que podem dar alguns efeitos secundários transitórios e ligeiros, como náuseas, vómitos, cansaço, tonturas e sonolência. Ainda assim, as taxas de sucesso da terapêutica ultrapassam os 90%.

E, igualmente importante, é referir que “se tratarmos a bactéria numa idade precoce vamos teoricamente proteger essa pessoa quase a 100 % contra o cancro gástrico mais frequente”, adianta o gastrenterologista, pois, como já tinha referido, a possibilidade de reinfeção posterior é extremamente baixa. 

E será exequível tratar todas as pessoas infetadas?

Esta é uma das questões a que o projeto-piloto pretende responder. Além de os dados recolhidos possibilitarem um conhecimento mais aprofundado sobre a prevalência da bactéria na ilha terceira, este rastreio também tem como objetivos “sensibilizar a população para a existência da Helicobacter pylori como fator de risco para o desenvolvimento do cancro do estômago e desmistificar o método utilizado para fazer o teste”, esclarece João Macedo, e procurar informações sobre a pertinência deste tipo de rastreios oportunísticos e o caráter custo-eficaz desta medida no combate ao cancro do estômago.

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Atualmente, o rastreio é realizado apenas em populações muito específicas – pessoas com úlceras ou com história familiar de cancro gástrico – e alargar a população abrangida obriga a estudar se a medida trará vantagens.

Ricardo Marcos-Pintos considera importante que se avalie o caráter custo-eficácia do alargamento do rastreio da bactéria, até porque poderia implicar, igualmente, o aumento do número de pessoas a fazer o tratamento para a erradicação da infeção. “Isso significaria ter um grande número de pessoas a fazer tratamento com antibióticos e, atendendo ao reconhecido crescimento da resistência [a este grupo terapêutico], é algo a ser bem ponderado”, explica o gastrenterologista.

Ainda assim, frisa o especialista, “acho importante a condução deste tipo de projetos-piloto porque deles podem surgir dados passíveis de serem extrapolados para a nossa população nacional”.

Segundo adiantou o responsável açoriano ao Viral, o que está delineado nas bases do estudo é fazer o recrutamento de pessoas para o rastreio “até ao mês de julho, mas a procura tem sido muito grande, a adesão da população tem sido muito elevada e, por isso, é possível que possamos dar como concluído o recrutamento mais cedo”.

Depois, será o momento de avaliação dos dados recolhidos que permitirão, no futuro, delinear as melhores estratégias para enfrentar um dos cancros com maior expressão em Portugal.

27 Abr 2024 - 09:58

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