Home - Opinião - E o 25 de Abril mexeu muito com as nossas vidas ! Uma Mulher anónima mas valente meteu-se na “minha” estória… Autor: João Dinis

E o 25 de Abril mexeu muito com as nossas vidas ! Uma Mulher anónima mas valente meteu-se na “minha” estória… Autor: João Dinis

A História e seus acontecimentos civilizacionais também se fazem pelos “anónimos” (embora com nomes, rostos, acções e sentimentos próprios) e já reconhecemos, sem favores, a importância decisiva do Povo no sucesso da “Revolução dos Cravos” a 25 de Abril de 1974.

Para ilustrar esta faceta que, sendo “anónima”, não deixa de ser efectiva e muito importante – que são os Povos a determinar a evolução da História embora enquadrados pelos seus líderes ocasionais – evoco agora, e apenas como exemplo individualizado, aquilo que aconteceu comigo próprio e que continua a fazer parte indelével da minha vida no contexto das movimentações revoltosas – militares e populares – e vitoriosas de há 50 anos atrás. De facto, estive envolvido directamente ou, de alguma forma fui para eles “empurrado”, em alguns dos acontecimentos então ocorridos e para os quais dei um muito modesto contributo.

Assim, dois dias antes do 25 de Abril, logo a seguir ao almoço na Cantina da EPC, Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, um “oficial subalterno” (Tenente) do quadro de oficiais “profissionais”, esse graduado – que era meu amigo – veio chamar-me para eu ir com ele para fora do quartel que queria falar comigo muito em privado. Estranhei logo mas lá segui com ele no seu automóvel.  Então, ele girou e girou um bom pedaço de tempo pelas ruas da cidade de Santarém, deu mesmo uma volta fora desta, reentrou na cidade e dirigiu-se ao apartamento em que habitava com a mulher e dois filhotes ainda crianças de tenras idades.

Estacionou a viatura e disse-me para sair e ir com ele para dentro de sua casa. Entretanto, durante as voltas que demos, ele já fora adiantando tópicos referentes ao assunto que queria conversar sigilosamente comigo. Começou por dizer que estava com aqueles cuidados “rodoviários” todos para despistar eventuais e muito indesejáveis perseguidores ao serviço da famigerada e perigosa polícia política do regime fascista, a PIDE/DGS.

Ora, “a coisa já me cheirava a esturro” que eu até já sabia do “MFA, Movimento das Forças Armadas” embora não estivesse nele envolvido.

Lembro-me bem de um primeiro raciocínio que fiz, sem comentários de voz, ainda antes de entrarmos em casa, ao pensar:- “então diz ele que pretendeu despistar a polícia, ainda por cima a polícia política, mas circula na sua própria viatura e vem para dentro de sua casa para ´conspirar´, e traz-me com ele na aventura”…  Ora, concluí sem gostar mesmo nada da ideia, “se há sítios que as polícias vigiam, esses locais são as habitações dos suspeitos.  Ai, ai !”…  Mas lá entrei.

Levou-me de seguida para uma sala onde havia um barzinho e eu sentei-me num dos bancos enquanto o meu anfitrião ocasional começou a desenvolver o assunto-motivo da nossa ida até ali, a sua casa.

Na mesma sala, sentada num sofá, já estava e lá permaneceu sua mulher e mãe de seus dois filhos, uma mulher ainda jovem, de estatura pequena, que eu já conhecia e também sabia estudante matriculada numa Escola Superior, em Lisboa.

E o meu amigo falou e falou para eu ir ouvindo.  Fez uma retrospectiva do “Movimento das Força Armadas”, em especial nas suas incidências principais na EPC, em Santarém, aliás uma matéria que ele, tempo antes, já tinha abordado comigo embora descomprometidamente o que não era agora o caso como eu bem prognosticava.

Desta vez, também referiu que a polícia política do regime, a tal PIDE/DGS, andava “em cima” de alguns dos oficiais mais referenciados como sendo do “Movimento das Forças Armadas” na EPC o que fazia prever o desencadear, mesmo no curto prazo, de grossos sarilhos pessoais para esses oficiais em que ele se incluia. Então, esses militares conspiravam e preparavam a saída, a muito curto prazo, de uma força militar, de Santarém para Lisboa, a dar um golpe de Estado para pôr fim ao regime político vigente. Aliás, seriam várias unidades militares a convergir nesse dia para Lisboa, com idêntico propósito. Enfim, todo um argumentário que me levava a ir pensando nas perspectivas decorrentes e a recear em crescendo…  Note-se que a 16 do anterior mês de Março, uma tentativa do tipo, a partir do “RI 5, Regimento de Infantaria nº 5”, das Caldas da Rainha, tinha corrido mal para quem nela mais se envolvera… A maioria dos militares sublevados estava presa e outros desterrados…

Tenha-se ainda em conta que eu não tinha formação política alguma, apenas alguns “impulsos”, direi que instintivos, e que “apenas” receava, e muito, a guerra “do Ultramar” segundo o regime fascista ou a “guerra colonial” segundo certos opositores. Sim, tinha grande receio da guerra e, para mim, a parte mais “interessante” abordada pelo meu interlocutor foi, exactamente, o objectivo de também quererem pôr fim a essa guerra!  Mas, na circunstância, nem isso me entusiasmou grandemente…

Entretanto, bebi um ou dois uísques que meu anfitrião me serviu… E eis que ele avança o propósito mais específico daquela conversa preliminar toda :

-“Olha, Dinis – o nome por que normalmente me tratava – eu estou encarregado pelo ´Movimento das Forças Armadas´ aqui da EPC, de arranjar uma equipa de alguns tropas da Escola Prática para prender o nosso Comandante antes da saída da coluna militar para Lisboa que ele de certeza que não vai alinhar connosco nessa acção e até vai contrariar-nos. Quero que tu também faças parte dessa equipa,  OK ? !” – rematou ele com expectativa.

Ó diabo !  Que proposta mais incrível e surpreendente ! Eu até esperava por “novidades” mas não esperava nada assim.  Engoli em seco e fui arengando umas frases a procurar esquivar-me e em que cheguei a dizer que não podia meter-me em assados dessa natureza que tinha os meus pais para cuidar e etc… Enfim, pensava eu também, “eu gosto é de jogar futebol e ir a umas festarolas a dançar com as garotas!  E agora querem meter-me em acções militares revoltosas, ´a doer´ ?!”…  Ou seja, fiquei todo acagaçado e hesitante…

Em como algumas Mulheres corajosas participaram no 25 de Abril

Eis então que a mulher do meu “recrutador”, que estava a ouvir a conversa, se levanta e se aproxima de nós, enérgica, mesmo empolgada, e logo “dispara”, aliás com elevada cadência de “discurso”:

-“Mas ó Dinis, afinal qual é o teu grande problema ? Que é que tens tu a perder ?   Até Já sabes que queremos acabar com a guerra !  Olha que eu, no dia aprazado, quando a coluna militar sair do quartel para Lisboa, eu e o meu marido não sabemos se os nossos filhos vão voltar a ver o pai que as coisas podem mesmo originar confrontos e correr mal.  Mas temos de ter coragem para arriscar e conseguir os nossos objectivos !”. E disse ela mais umas invectivas, sempre determinada, a olhar-me nos olhos sem pestanejar, ali, bem à minha frente!  Uma valente !

Entretanto, eu tinha emborcado mais um uísque e, recordo, estava a sentir o álcool a aquecer-me as entranhas e a espicaçar-me a bravura. Estava a ficar um dos tais “heróis do uísque” de que a tropa falava, no âmbito da guerra colonial que decorria há anos.  Podem crer que é uma sensação “quente” que ajuda a superar o medo, como naquelas circunstâncias eu constatei.  E também “açoitado” pelas invectivas daquela mulher e mãe ainda jovem e tão decidida, lá me decidi também eu naquele momento.  Enchi-me de arreguenho, superei o receio que sentia e, finalmente, respondi que sim, que aceitava o repto que minutos antes me fora feito no sentido de fazer parte da tal equipa que, no iminente “Dia D” da Revolução, iria ter como missão prender (deter) o Coronel, Comandante da EPC ! Fixe !

-“Então – continuou o meu recrutador – vais arranjar mais um ou dois outros ´camaradas´ milicianos (não profissionais) – a tropa trata-se por ´camarada´ – que os conheces melhor que eu, para também fazerem parte da mesma equipa, connosco.  Trata disso, e informa-me logo, OK ?”.

E eu já que tinha acedido a uma parte, acedi também a esta.  Ficou assim combinado e vamos prá frente !  Fui eficiente depois e, de minha parte, com alguma desenvoltura, lá “recrutei” nessa noite e dia seguinte outros dois elementos para a tal equipa de sublevados a qual chegou a intervir na sua função específica, na noite (início às 22h 30) de 24 de Abril. Antes, tinha eu abordado outros meus conhecidos do dia a dia militar mas esses disseram-me que já tinham sido recrutados para outras missões revoltosas.  Sim, a “Revolução” estava em marcha acelerada !

E poucas horas depois, a partir das 3 da manhã, já a 25 de Abril, com o sair da coluna militar revoltosa do quartel da EPC rumo a Lisboa, passámos a outras situações de envolvimento pessoal, aliás vividas com bastante intensidade também. Em especial, a minha saída até Lisboa, a 25 de Abril, ainda na parte da manhã, para assegurar serviço, tipo “estafeta”, de ligação entre a coluna militar comandada por Salgueiro Maia e o quartel da EPC em Santarém.

E sim, é um privilégio histórico o ter participado no 25 de Abril de 1974

Foram os atrás relatados alguns dos episódios candentes que ainda hoje revivo com mal contida emoção.  No contexto, não cesso de admirar a atitude muito determinada daquela mulher, pequena de corpo mas enorme em coragem generosa. Ela sabia bem o que arriscava e, de facto, era muito! Bastante mais do que aquilo que eu iria arriscar que meus pais, na altura, andavam nos cinquenta e poucos anos de idade e não precisavam de mim para viver, valha a verdade… E aquela pequena/grande Mulher, previsivelmente, arriscava a sua felicidade e a felicidade dos seus próprios filhos na boa perspectiva de um futuro melhor para todos nós e não apenas para a sua família. Uma heróina também ela “anónima”, lá está !

Devo dizer que seu homem e meu recrutador para o 25 de Abril, morreu ainda relativamente novo, então no posto de Coronel de Cavalaria.  A ela nunca mais a vi desde que saí da tropa, quase ano e meio depois. Nem sequer sei se ainda está viva, espero que esteja, mas continuo a admirá-la imenso !  Bravo, minha Senhora !

Já agora, na noite da saída da tropa de Santarém, comandada por Salgueiro Maia, o Comandante da EPC – um Coronel – não estava no quartel pois tinha saído de lá na tarde antecedente.  Mas foi preciso “dominar” o então “Segundo Comandante”, um “Tenente-Coronel” que se armou em “valentão” e tentou opor-se aos revoltosos.  Foi detido (sem recurso ao uso de especial violência) e, nessa noite toda, permaneceu compulsivamente e vigiado de perto, dentro da EPC. De manhã, deixaram-no sair do Quartel.

E assim se fez esta parte da grande e inolvidável História do 25 de Abril de 1974 !  E sim, nós estivemos lá !  Pois apesar de “anónimos”, esse privilégio histórico ninguém no-lo tira !

Viva os “50 Anos do 25 de Abril !”

Viva o 25 de Abril !  Sempre !

 

 

 

Autor: João Dinis, Jano

(Veterano do 25 de Abril)

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