Atrás da porta

Da vida e morte de Elis Regina Carvalho Costa.

Tinha que haver um português na história. De seu nome Manoel, claro. Motorista de táxi, óbvio. Ao volante de um Fusca 1976 branco, Manoel Gouveia foi chamado aos gritos pela secretária dela, Celina, na entrada de serviço do nº 688 da Rua Doutor Melo Alves, nos Jardins, São Paulo. Celina Silva gritava por um táxi, Samuel trazia-a nos braços. Manoel fez marcha atrás, subiu a calçada, o porteiro do prédio carregou o corpo esfriado e mal coberto por uma manta, de onde exalava um leve cheiro a urina. No instante em que a colocaram no automóvel, as crianças viram tudo: Pedro e Maria Rita, filhos do pianista César Camargo Mariano, brincavam no jardim do piso térreo, na companhia da babá, Maria Teresa. O mais velho, João, filho do primeiro casamento com Ronaldo Bôscoli, presenciara a confusão instalada no apartamento, no quarto ao lado do seu, atrás da porta.

O táxi partiu veloz, com Samuel no banco da frente, junto a Manoel, o português. Deram entrada às 11h30 nas urgências do Hospital das Clínicas de São Paulo. Duas horas e meia depois, Samuel regressou a casa, irreconhecível de dor. Entretanto, a empregada limpara o quarto, retirando atrás da porta uma garrafa de Cinzano caída no chão, ainda com um resto de bebida. Às 15h30, os técnicos do Instituto de Criminalística da Polícia Científica chegaram ao local para perícias e averiguações. Fotografaram o quarto dela, onde de manhãzinha uma voz sumida e arrastada gemera, atrás da porta: “Samuel… Samuel…”. Namorado da cantora há uns seis meses, já apresentado à família e tudo, o advogado paulista Samuel Mac Dowell de Figueiredo praticamente arrombou a porta trancada do quarto de Lili, deparou com o seu corpo tombado no chão, inerte, sem reacção alguma.

A notícia da morte correu veloz, mais rápida do que o táxi de Manoel Gouveia. No Rio de Janeiro, Milton Nascimento estava com uns amigos na praia, ao sul da cidade, bebendo de bem com a vida. Por um sinal qualquer da vida e destino, sentiu que deveria voltar mais cedo para casa, onde a empregada o informou da morte da cantora, cujo corpo repousava em velório no Teatro Bandeirantes, São Paulo, onde muitos e muitos milhares de pessoas choravam junto a um cadáver de 36 anos, maquilhado e encerrado num esquife de cristal sem mácula. Os amigos de Milton correram para o seu apartamento, levaram-no em silêncio para uma praia deserta e distante. Quando avistou um barco atracado, vazio, Milton disse apenas: “É aqui”. E ali ficou, um dia inteiro.

Dona Ercília Carvalho Costa, filha de imigrantes portugueses, cristãos-novos, donos de mercearia no extremo sul do Brasil, soube da morte da filha pela televisão. Ao princípio não acreditou, nem fez caso. Depois não podia mais iludir a realidade dos factos, cruel e injusta, transmitida por um écran de cristal que maculava o nome da filha, só falando de velório, enterro, drogas. “Eu não perdoo”, diria Dona Ercy a Regina Echeverria, autora do livro “Furacão Elis”, editado pela Globo em 1994. A biografia mais completa de Elis Regina saiu anos mais tarde, sendo escrita – extraordinariamente bem escrita — por Julio Maria, paulistano nascido em 1973, jornalista especializado em música de O Estado de São Paulo. “Elis Regina. Nada Será Como Antes”, assim se chama o livro de Julio Maria (Editora Master Books, 2015).

Elis Regina Carvalho Costa nasceu em Porto Alegre, em 17 de Março de 1945. Morreu em São Paulo, 19 de Janeiro de 1982, supostamente de uma overdose e álcool, cocaína e outros mistérios. Como sempre sucede nestes falecimentos, pululam as teorias da conspiração sobre o final trágico, falando uns de suicídio, outros de assassinato, outros de uma morte acidental que a ditadura militar pretendeu recobrir de escândalo, apresentando-a como o resultado natural, mais que previsível, de uma vida repleta de excessos e rebeldias.

Lilica, Lili, foram vários os nomes de adopção. Vinícius chamou-lhe “Pimentinha”, apelido consagrado entre os seus próximos, bem ajustado ao feitio temperamental de uma dama de ferro tão orgulhosa quanto insegura de si e dos seus medos, dos fantasmas íntimos. “Elis-cóptero”, assim a baptizou Rita Lee, que, juntamente com Rogério Costa, irmão de Elis, fez a leitura dos textos litúrgicos da missa de sétimo dia, na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em São Paulo. No Rio, a missa foi celebrada na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, com a presença de Gal Costa, Fafá de Belém, Nana Caymmi, Betty Faria, entre tantos outros.

Na sua autobiografia, recentemente publicada entre nós com prefácio de Rui Reininho (“Rita Lee. Uma autobiografia», Contraponto, 2017), a cantante eléctrica do banho de espuma recorda que, pouco antes de morrer, Elis lhe pedira que escrevesse uma música para a sua voz única, a maior de todas – e foram muitas – que o Brasil já deu ao mundo. Combinaram que a letra seria escrita por Elis, que Rita sabia ser poeta envergonhada e secreta, guardando os seus versos a sete chaves, atrás da porta. “Nunca vi Elis cheirando pó perto de mim, sabia o quanto abominava a praga. Até hoje participo da teoria da conspiração de que o japa médico legista, notório chapa dos milicas, deu um jeitinho de envenenar a história dizendo que Elis era usuária de tóxicos e álcool”, escreve a cantante eléctrica.

O relatório dos legistas é peremptório, contudo. Na sua frieza asséptica, datado de 29 Janeiro de 1982, afirma o exame do Laboratório de Toxicologia do Instituto Médico Legal: “Exame complementar Nº 00415 – Exame toxicológico – Resultado: A análise quantitativa de cocaína efectuada em fígado e urina forneceu os seguintes resultados: Urina: 23ml/100ml (23 miligramas de cocaína por 100 milímetros de urina). Fígado: 2,4 mg/100g de tecido (2.4 miligramas de cocaína por 100 gramas de fígado). Observações: As dosagens acima foram efectuadas em cromatografia liquidogás, utilizando-se padrão de cocaína extrapura cristalizada de procedência alemã (Merck)”. Cerca de um mês depois, o juiz Antônio Filiardoi Luiz mandou arquivar o inquérito instaurado para apurar as causas da morte de Elis Regina Carvalho Costa.

Sucederam-se (e sucedem-se) as homenagens a Elis, não sem uma pontinha de culpa colectiva pelos anos de chumbo da ditadura, quando a cantora teve a ousadia de dizer, numa entrevista de 1969, que o seu país era “governado por gorilas”. Elis participou activamente na campanha pela amnistia aos presos políticos, sendo poupada à prisão e à tortura graças ao capital de sucesso que acumulara desde os anos 60, quando venceu o I Festival de Música Popular Brasileira com a canção “Arrastão”, de Vinícius e Edu Lobo.

O ponto máximo da sua trajectória será, talvez, o álbum “Elis & Tom”, gravado em 1974 com Antônio Carlos Jobim, ou o disco “Elis”, do ano anterior. “Respeitem a maior cantora desta terra”, clamou Caetano Veloso a uma plateia que assistia, indiferente e alheada, a um espectáculo de Elis Regina, a mulher que deu voz a Águas de Março, incessantemente ouvida nos quatro cantos do planeta Terra. Bem distante, ou talvez não, daquele ano de 1945, num Março em que as águas de Dona Ercy rebentaram no Hospital da Beneficência Portuguesa, dia 17, às 15h10 da tarde.

Em 1966, Elis lançou-se ao mundo, numa tournée que durou de Janeiro e Março e passou por Portugal e Angola, na companhia de Jair Rodrigues e Zimbo Trio. Depois casou, em 1967: na Capelinha Mairynk, na Floresta da Tijuca, Rio de Janeiro, mal cabiam ela, Ronaldo Bôscoli e os dez metros da cauda do vestido de noiva. Em 1973 casaria de novo, com o pianista César Camargo Mariano, sendo esta a relação mais prolongada da sua existência sentimental. Tudo terminou em 1981 (ano em que Elis se filia no PT), deixando o casal, como principal legado à posterioridade, a cantora Maria Rita; talentosa, decerto, mas incomparável a sua mãe.

Não podendo estar presente no funeral da deusa baixinha e estrábica, Gilberto Gil enviou dos Estados Unidos uma coroa de flores com as palavras: “Sua voz será de todas as canções, sua alma de todos os corações”. Junto à urna, uma bandeira do Brasil, verde-amarela, onde os dizeres “Ordem e Progresso” foram substituídos pelo nome da cantora.

O Departamento de Trânsito de São Paulo teve de montar um esquema especial para o gigantesco cortejo que lhe levou o corpo morto do Teatro Bandeirantes até ao cemitério do Morumbi, túmulo 2199, quadra 7, sector 5, onde Elis foi sepultada às 13 horas do dia 20 de Janeiro de 1982. Ergueram-lhe uma estátua em Porto Alegre, cidade que desde 2005 expõe o Acervo Elis Regina num canto acanhado da Casa de Cultura Mario Quintana. Em 2013, foi eleita a melhor voz feminina da música brasileira pela revista Rolling Stone; nesse mesmo ano, estreou um musical em sua homenagem, intitulado, sem grande rasgo, “Elis, a musical”.

Agora apareceu um filme, estreado também por cá, com passagem meteórica nos cinemas de Lisboa e outras capitais de distrito. Da autoria de Hugo Prata, a película, banalmente chamada “Elis”, atormentou a crítica e dividiu opiniões, excepto a da actriz Andréia Horta, que anos a fio perseguiu o sonho de encarnar Elis na tela, como disse ao jornal Público/Ípsilon em entrevista saída em 29 de Setembro passado. “Queria mostrar o que fragilizou o mito Elis”, afirmou, algo rebuscadamente, o realizador da fita ao Diário de Notícias, na sua edição de 27 de Setembro. Mais próxima da realidade da vida, a confidência inconfidente de Nelson Motta, em entrevista também recente à revista Sábado: “Quando a Elis Regina seduzia, era gol certo”.

Nas suas suculentíssimas memórias, intituladas “Noites Tropicais” (Editora Objetiva, 2000), Nelson Motta recorda o lendário mau feitio da Pimentinha, e o tempo em que Ronaldo Bôscoli produziu um espectáculo denominado “Quem tem medo de Elis Regina?”. Foi por essa altura que, lembra Motta, a cantora mudou-se para um apartamento de cobertura em Ipanema e passou da água para o uísque, com resultados letais. Cortou o cabelo curtinho, copiando o modelo de Mia Farrow, fez plástica para diminuir os seios, comprou roupas novas, mais elegantes.

Nas fabulosas palavras de Motta, “acariocou o seu guarda roupa”, em suma. Mais tarde, em plenos anos 70, década hirsuta e tremenda, deixou crescer os cabelos em cascata, mimetizando Gal Costa e o seu estilo trópico. Elis Regina Carvalho Costa, a permanente inconstância, brigas acesas, paixões de morte. Deixa-nos a sua música. Cantada pela maior voz que, de linhagem portuguesa, nasceu no Brasil, país irmão (ou que como tal se proclama). Em Março de Porto Alegre, 1945, ainda mal terminara a Segunda Guerra, que foi mundial – como ela.

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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