

Aos 22 anos de idade, a francesa Lois Boisson foi a sensação desta edição do torneio de Roland Garros, tendo alcançado de forma brilhante, mas igualmente surpreendente, as meias-finais da competição.
Houve outras histórias muito marcantes neste torneio, nomeadamente o emocionante tributo que fizeram ao espanhol Rafael Nadal e à sua lendária carreira, 14 vezes (!) vencedor deste torneio. O tenista maiorquino terá impressa para sempre a sua impressão digital e a marca das suas sapatilhas no court Philippe Chatrier, o court central de Roland Garros..
Já com o torneio a decorrer, há que destacar o fato assinalável de termos tido pela primeira vez dois tenistas portugueses (Nuno Borges e Henrique Rocha) numa terceira ronda de um torneio de Grand Slam.
Mas apesar desse feito notável dos tenistas nacionais, não há nada que se assemelhe a este percurso inesquecível da tenista gaulesa. Lois Boisson começou o torneio na 361ª (!) posição do ranking, e se alguém dissesse que a tenista gaulesa iria conseguir a extraordinária proeza de ser uma das semifinalistas do torneio, a generalidade das pessoas diria que essa pessoa teria perdido todo o seu discernimento mental.
Boisson jogou o torneio a convite da organização não tendo que jogar a fase de qualificação e tendo entrada direta no quadro principal (o primeiro da sua carreira num torneio de Grand Slam), num gesto fantástico e que muito engrandece a antiga tenista Amélie Mauresmo ( atual diretora do torneio) e toda a sua equipa.
Esse wild card já tinha sido concedido a Boisson no ano de 2024, mas uma rotura de ligamentos cruzados do joelho esquerdo (lesão contraída no Trophée Clarins, a derradeira prova de preparação para Roland Garros) impediu essa sua primeira participação no melhor e maior torneio do mundo de terra batida.
O infortúnio bateu à porta de Lois Boisson, quando esta se encontrava em plena ascensão no ranking. Poucos dias antes, tinha acabado de conquistar o primeiro torneio da carreira no WTA 125 de Saint-Malo e vinha de uma série de 23 (!) vitórias em 24 partidas.
Essa lesão fez com que Boisson ficasse afastada dos courts durante nove meses, impediu a sua progressão e fez com que a tenista gaulesa caísse no esquecimento. A sua reabilitação foi extenuante e bastante dispendiosa, sendo que Boisson e a sua família tiveram de lançar uma campanha de crowdfunding (angariação de fundos) para financiar a sua recuperação.
“A lesão foi difícil de engolir. Quando se passa por algo assim… Ganhamos algo a mais que nos torna mentalmente mais fortes no ‘court’. Eu não podia esperar mais depois da lesão e da cirurgia. Estar a jogar tão bem agora é simplesmente incrível”, disse a francesa nos últimos dias numa conferência de imprensa.
Um ano depois, esteve apenas a um triunfo de viver o seu sonho e de lutar pelo título em Roland Garros. Caso mantenha a evolução que foi demonstrando ao longo do torneio, Boisson terá toda a legitimidade para acreditar e sentir que tem todos os recursos tenísticos para que um dia possa tornar esse sonho em realidade.
Durante estas duas semanas de torneio, deixou bem patenteada toda a qualidade do seu ténis, assim como as armas do seu jogo, que a tornam numa jogadora extremamente perigosa nesta superfície de terra batida.
O jogo de Boisson foi construído e é ideal para a terra batida: pancadas em topspin de ambos os lados, grande cobertura de court e uma força mental anormal para alguém de apenas 22 anos.
A sua pancada de direita é a sua principal arma (penetrante e consistente) mas a sua esquerda a duas mãos é igualmente fiável e bastante sólida.
Fruto da sua musculatura e excelente movimentação, consegue neutralizar a agressividade das suas adversárias e passar rapidamente da defesa para o ataque. O seu serviço necessita de ser melhorado, pois concede várias oportunidades de quebra de serviço. O seu primeiro serviço não é muito potente (apesar da sua boa colocação) e o seu segundo serviço é bastante permeável, mas uma vez que se consegue manter no ponto, Boisson é uma jogadora muito completa, e que deverá ser tido em conta nos próximos anos.
Com mais maturidade, experiência e melhorando o seu serviço, poderemos estar na presença de uma futura vencedora de Roland Garros, algo que não é de todo descabido pensar depois de ter acompanhado o seu percurso na edição deste ano.
Além disso, Boisson faz uma utilização bastante precisa e inteligente dos amorties, conseguindo tirar as suas adversárias da sua zona de conforto, e desgastando-as fisicamente. A sua capacidade de jogar bem os pontos mais importantes (os chamados pontos de pressão), é sem dúvida uma das características que mais me deixou estupefato durante estas duas semanas de torneio.
A ascensão de Boisson tornou-se uma das histórias de maior sucesso desta edição de Roland Garros.
Em França, foi imediatamente aclamada como a “nova coqueluche” do ténis feminino francês (com a sua presença nas meias-finais, salta automaticamente para o top 70 mundial). Esses títulos tiveram um peso quase impossível de suportar em algumas das suas compatriotas (penso automaticamente na talentosíssima Caroline Garcia, que curiosamente terminou a sua carreira em Roland Garros este ano), mas Boisson parece encarar e abraçar as luzes da ribalta com elegância e graciosidade.
Os principais meios de comunicação franceses, como o L’Équipe, France Télévisions e Le Monde, publicaram artigos diários sobre ela, enquanto os meios de comunicação internacionais (BBC Sport, The New York Times, ESPN, entre outros), renderam-se ao talento e potencial da tenista gaulesa.
As redes sociais foram inundadas de elogios. Os seus seguidores no Instagram triplicaram durante o torneio e recebeu felicitações de grandes ícones franceses como a já citada Amélie Mauresmo, o ex-basquetebolista Tony Parker e até do Presidente Emmanuel Macron.
Lois Boisson também foi destaque recentemente por outro motivo: o seu odor corporal.
Em Abril deste ano, a tenista britânica Harriet Dart insinuou, durante um jogo em Rouen, que a francesa cheirava mal. Harriet perguntou nessa altura ao árbitro: “Podes dizer-lhe para ela usar desodorizante? Por causa do cheiro. Ela cheira mesmo mal“.
Um dos atos mais infelizes e repugnantes de que me recordo, e em que apesar da grande rivalidade que há entre os tenistas, é um desporto que se pauta pelo desportivismo dos seus profissionais.
O comportamento de Dart foi inqualificável, retratou-se posteriormente dizendo que estava frustrada com a sua exibição e que o disse no “calor do momento”, mas será realmente uma mancha na carreira da tenista britânica, que certamente não vai ser muito bem acolhida no balneário sempre competitivo pelas suas companheiras de circuito.
Além disso, a resposta de Boisson foi dada dentro de campo. Depois desse episódio vergonhoso de Dart, a tenista gaulesa poderia ter perdido o foco e ter ficado afetada psicologicamente, mas literalmente “varreu-a” da pista com uns contundentes 6-0 e 6-3.
A francesa não ficou muito incomodada com esse momento. Inclusive, demonstrou toda a sua personalidade muito peculiar e bastante forte, brincando com a situação, ao publicar uma imagem com um desodorizante, identificando a marca Dove e dizendo que “aparentemente precisam de uma parceria”.
Com o apoio do sempre intenso e apaixonado público francês, Boisson conseguiu contrariar todos os prognósticos de uma saída precoce (expetável) do torneio numa primeira ronda bastante difícil contra a tenaz belga Elise Mertens, confortavelmente instalada no top 30 mundial.
Boisson conseguiu superar esse obstáculo e avançou de ronda na sua primeira participação num quadro principal de um torneio do Grand Slam.
Posteriormente, conseguiu derrotar a ucraniana Anhelina Kalinina na segunda ronda, a sua compatriota Elsa Jacquemot (outra das grandes histórias que nos deixou este Roland Garros) na terceira ronda e garantir uma já surpreendente e fantástica presença nos oitavos-de-final do torneio.
Naquele que foi sem dúvida um dos grandes jogos do torneio, Boisson surpreendeu a número três mundial Jessica Pegula numa emocionante batalha de três sets, após mais de 2h40. O uso inteligente dos ângulos, o seu atleticismo e excecional trabalho de pés, e a sua direita tiveram o condão de levantar por diversas vezes o público presente no court Philippe Chatrier.
A servir para fechar o jogo, Boisson ainda teve de superar uns intermináveis 10 (!) minutos de jogo de serviço e salvar quatro pontos de break, até conseguir levar de vencida a sempre complicada e muito sólida tenista norte-americana.
Todos ficaram atónitos com essa exibição de uma wildcard classificada fora do top 350 antes do torneio começar, e que acabava de derrotar uma das jogadoras mais consistentes do circuito.
Seguir-se-ia o prodígio Mirra Andreeva, a tenista russa que tem sido uma das melhores do ano, com dois títulos WTA 1000 no Dubai e em Indian Wells. A terra batida não é a maior especialidade nem a melhor superfície de Andreeva, mas não deixa de ser uma tenista estabelecida no top 10 mundial, uma tenista com imenso talento, e uma grande lutadora, que não dá uma bola por perdida.
Boisson fez mais uma exibição de grande qualidade. Esteve a perder por 5-3 no primeiro set, salvou dois pontos de set antes de conseguir ganhar num tie-break impróprio para cardíacos.
No segundo set, Boisson teve igualmente de recuperar de uma desvantagem de 3-0 e de salvar dois pontos de break com 4-3 a seu favor no marcador, depois de já ter conseguido quebrar o serviço de Andreeva.
A servir sob imensa pressão para se manter na partida e forçar Boisson a servir para fechar o encontro, Andreeva colapsou e cedeu o seu serviço em branco, sucumbindo perante um Philippe Chatrier totalmente incendiado, cujo público francês é por vezes bastante desrespeitoso (diga-se de passagem) com jogadores/as que defrontam tenistas da casa.
Quando acabou, Boisson caiu no chão, com as costas na terra batida de Paris e as pernas esticadas, tremendo incontrolavelmente enquanto cobria o rosto com as mãos. Uma das imagens do torneio é a de Boisson com a cara coberta de pó de tijolo, dirigindo-se a Andreeva, que reconheceu o talento da sua oponente com um abraço fraterno à rede.
“Estamos a assistir ao nascimento de uma estrela mesmo à frente dos nossos olhos”, disse Chris Evert, 18 vezes campeã de Grand Slam, na transmissão televisiva.
Ainda no court, Boisson demonstrou na entrevista pós-jogo toda a sua ambição e crença nas suas capacidades, deixando claro que estava longe de se contentar com o que já tinha feito. “Sim, é um sonho”, começou por dizer Boisson. “Com certeza vou tentar realizar o sonho, porque o meu sonho é ganhar o torneio, não estar na meia-final. Por isso, vou tentar dar o meu melhor para o conseguir”.
E acredito que essa hipotética presença na final foi bastante condicionada pelo fato de ter ficado do outro lado do quadro (não tendo qualquer dia de descanso entre a partida dos quartos-de-final e das meias-finais), onde foi evidente o cansaço físico e psicológico.
Boisson não se conseguiu exibir ao mesmo nível de rondas anteriores contra a número dois mundial Coco Gauff, principalmente se compararmos com as suas monumentais exibições de rondas anteriores, já devidamente dissecadas.
Gauff atuou em estado de graça, não dando quaisquer hipóteses à tenista da casa, interrompendo dessa forma o sonho de Boisson, mas todos os adjetivos serão insuficientes para qualificar a sua prestação no torneio.
“Não consegui fazer o meu jogo funcionar, mas tirando o jogo de hoje, que não foi totalmente positivo, o torneio no geral foi muito positivo e mesmo hoje, apesar de ser dececionante, tudo é positivo. Simplesmente foi demasiado duro para mim. Nunca tinha vivido uma semana tão intensa, tanto física como emocionalmente. Por isso, acho que é muito importante tirar algum tempo para recuperar.”, disse Boisson na conferência de imprensa posterior ao seu encontro das meias-finais.
Boisson tem que estar orgulhosíssima de ter conseguido estar no grupo restrito de semi-finalistas de Roland Garros. As restantes três tenistas que a acompanharam foram “apenas e só” a tricampeã do torneio Iga Swiatek, a número dois mundial Coco Gauff e a número um mundial Aryna Sabalenka.
Independentemente de não ter conseguido marcar presença na final, Boisson é apenas a terceira jogadora desde 1980 a atingir as meias-finais de um Grand Slam na sua primeira participação num quadro principal de um Grand Slam. Lois Boisson tornou-se também na primeira francesa a chegar às meias-finais de singulares femininos desde Marion Bartoli… em 2011!
Para que se tenha noção daquilo que Boisson conseguiu neste Roland Garros, este feito é tão especial que se trata apenas da segunda jogadora a chegar a esta fase do Grand Slam francês com um convite da organização, juntando-se a Mary Pierce (vencedora do torneio em 2000), que também alcançou essa ronda em 2002.
A história de Lois Boisson não é apenas sobre um torneio. É sobre esperança e segundas oportunidades. Dum convite da organização a ser semifinalista, a tenista francesa revolucionou o ténis francês (sedento de uma nova grande estrela) e veio-nos recordar a todos que a resiliência é uma das bases mais fortes do sucesso.
Com estas vitórias no quadro principal de Roland Garros, Boisson já assegurou a subida para o top 70 e 690 mil euros, quatro vezes mais do que o prémio monetário total da sua carreira.
Costuma-se dizer que o céu é o limite, e no caso da tenista gaulesa, com esta fenomenal prestação, quase toca o céu em Paris.
Quando esta edição de Roland Garros terminar, estou convicto de que o mundo do ténis não esquecerá tão cedo o nome de Lois Boisson, e a França poderá ter finalmente encontrado a sua próxima grande figura no ténis.