Do centro do palco diz-se bem alto, para que se ouça: estrangeiros não são bem-vindos aqui. Ao mesmo tempo, nos bastidores, ouve-se outra mensagem: precisamos de estrangeiros para trabalhar, mas preferimo-los sem direitos.

O pano abre. Acto um. O primeiro-ministro Luis Montenegro afirma que "precisamos de ter um país aberto à imigração, mas cuidado que precisamos também de ter um país seguro".

Acto dois. A PSP conduz uma operação policial no Martim Moniz, em Lisboa, com o objectivo de averiguar “situações criminais, como a imigração ilegal e tráfico de seres humanos”. O ministro Leitão Amaro diz a respeito da operação que quem se encontra irregular em Portugal “tem de ter consequências”.

Acto três. Um aparato policial imenso invade de novo o Martim Moniz e fecha a Rua do Benformoso. Encostam dezenas de migrantes à parede. Põem-nos em fila e revistam-nos. Montenegro louva a nova operação e descreve-a como “importante” para combater “as condutas criminosas”.

Acto quatro. Em vésperas de eleições legislativas, o governo anuncia que 18 mil pessoas serão notificadas para abandonarem o país com um prazo legal de 20 dias. Faz questão de sublinhar que os migrantes em questão serão levados sob escolta policial se necessário.

É um espectáculo posto em cena para que toda a gente o veja, tanto estrangeiros como portugueses, e foi escrito por dois motivos. O primeiro é o de criar a sensação de que estamos em perigo. Que há algo de anormal relativamente à imigração em Portugal, e que essa imigração representa um risco. Quer seja a nossa segurança física que está em risco, quer seja o estado social (raras vezes o discurso é concreto), a mensagem é que a migração é uma ameaça, a já infame “percepção de insegurança”. Não vou analisar aqui os factos, repetidos já quase até perderem o significado, de que não existe qualquer ligação entre migração e criminalidade e que os migrantes contribuem mais para a Segurança Social do que beneficiam dela.

O segundo motivo consiste em dar ao governo uma aparência de controlo sobre o tal perigo. Ao pôr os holofotes sobre a violência infligida a migrantes, o governo mostra-nos que tem a coragem de fazer o que é preciso fazer. A própria violência torna-se o espectáculo. É uma performance de crueldade. O governo gera a percepção de uma ameaça, para se poder apresentar como a única forma de a combater.

Mas esta performance tem uma particularidade. A violência que vemos em palco é real. Por muito que o que motiva este espectáculo seja a relação com o espectador, as suas vítimas são-no de verdade. Quem recebe uma notificação de abandono voluntário terá mesmo apenas mais 20 dias de estada legal no país. Quem for detido e deportado sofrerá as consequências dessa violência por inteiro.

Note-se que este não é um espectáculo português. Longe disso. Nos últimos anos, esteve em cena em quase todo o mundo ocidental. Esteve em cena quando o governo britânico anunciou que iria deportar requerentes de asilo para o Ruanda ou prendê-los num barco ao largo da sua costa. Esteve em cena também quando o governo italiano construiu centros de detenção de migrantes na Albânia, bem como de todas as vezes que Donald Trump prometeu construir uma big fat wall na fronteira com o México. Os exemplos são incontáveis.

Mas não é possível entender verdadeiramente o que se passa em palco sem saber o que acontece nos bastidores. Por detrás da violência, por detrás de toda esta performance de crueldade, está o facto bem conhecido pelos governos destes países de as nossas economias dependerem do trabalho migrante. Para que não restem dúvidas do quão cientes os nossos governos estão desta necessidade, basta que nos lembremos do que aconteceu quando Itália fechou as suas fronteiras em 2020 por causa da pandemia. Com o Verão a aproximar-se, e na impossibilidade de usufruir da habitual força de trabalho sazonal de migrantes da Europa de Leste na apanha de fruta e vegetais, o governo italiano apressou-se a regularizar temporariamente 200 mil migrantes africanos que já se encontravam no país. Algo semelhante aconteceu na Grécia.

Por outro lado, se os governos estivessem verdadeiramente interessados em reduzir a imigração irregular, veríamos mais rusgas em quintas e fábricas, mais pessoas detidas e mais pessoas deportadas. Mas não há nenhum país no mundo que faça um número de deportações comparável ao número de imigrantes em situação irregular presentes no seu território. Além disso, praticamente não se fazem rusgas em locais de trabalho. Segundo o sociólogo Hein de Haas, nos EUA, a probabilidade de ser detido por trabalhar ilegalmente é semelhante à de ser atingido por um relâmpago. Os governos dos países ocidentais toleram o trabalho de migrantes irregulares porque isso significa mão-de-obra barata em sectores fundamentais como a agricultura, o turismo e o trabalho doméstico.

Também o governo português está ciente da sua dependência de trabalho migrante. De que outro modo se explicaria que a sua retórica anti-imigração venha acompanhada de acordos para acelerar a contratação de estrangeiros para trabalhar em Portugal?

É notório, no entanto, que as medidas que visam a entrada de migrantes em território nacional escapam quase por completo à luz dos holofotes. Acontecem quase sempre nos bastidores e, por isso, praticamente não se fala sobre elas. Uma pergunta impõe-se: se as economias do mundo ocidental estão tão dependentes de trabalho migrante, porque vemos um discurso cada vez mais inflamado no que toca à imigração? Ou, dito de outro modo: porquê espectacularizar a violência sobre pessoas de cuja presença nós necessitamos?

O discurso anti-imigração, acompanhado de violência sobre migrantes, naturaliza aos poucos a diferença de tratamento entre nacionais e estrangeiros. A nacionalidade passa a ser um critério aceitável para definir quem tem direito a ter direitos. Como tal, serve como critério para a exploração do trabalho migrante. Nas palavras do antropólogo Ghassan Hage, “[os migrantes] são mais desejados quando indesejados”.

É que as vítimas desta performance de crueldade não são só as pessoas encostadas à parede, nem são só as pessoas detidas e deportadas, mas todas as pessoas passíveis de sofrer essa violência. Os alvos da deportação não são tanto aqueles que acabam deportados, mas todos aqueles que permanecem deportáveis. E a mensagem do espectáculo é dirigida a todos nós. Do centro do palco diz-se bem alto, para que se ouça: estrangeiros não são bem-vindos aqui. Ao mesmo tempo, nos bastidores, ouve-se outra mensagem: precisamos de estrangeiros para trabalhar, mas preferimo-los sem direitos.

A performance de crueldade engana-nos culpando alguns de nós pelos problemas de todos. Só vendo para lá deste espectáculo conseguiremos voltar a reconhecer-nos uns nos outros e rejeitar de uma vez por todas a violência que ele implica.