Toxoplasma gondii, eis o nome de um parasita que à primeira vista parece ser o melhor amigo dos felídeos. Os animais por ele infetados, como é o caso dos roedores, parecem perder o medo inato por predadores naturais como os gatos, pelo que arriscam mais e progridem pelas zonas onde estes animais fazem a sua vida. Ou seja, o azar destes roedores é a sorte dos bichos que pertencem à família dos felídeos. Contudo, há um segredo que todos estes animais parecem desconhecer, mas que os humanos há muito descortinaram: os felídeos são os principais disseminadores do Toxoplasma gondii, pois as suas fezes contêm óvulos deste parasita que depois podem, por estarem espalhados no ambiente, entrar no organismo de outros animais.

Aqui, os seres humanos estão incluídos entre as vítimas. A toxoplasmose é a infeção causada por esse parasita quando entra no organismo animal, incluindo o corpo humano, podendo provocar, sob a sua forma mais crónica, lesões sérias nos dois órgãos da visão, desde uma inflamação na retina a cicatrizes permanentes nesta parte do olho. Entre os sintomas está a visão turva e a sua perda permanente. Em alguns casos, quando a infeção é severa e afeta fortemente o organismo de um ser humano, especialmente de quem tem uma resposta imunitária pouco eficiente, ela pode ser fatal. Nas grávidas, por exemplo, a toxoplasmose aguda pode comprometer o desenvolvimento normal e saudável dos embriões e dos fetos, e até conduzir a um aborto espontâneo ou à morte neonatal.

Segundo um estudo datado de 2012, entre 30% a 50% da população mundial tem toxoplasmose, mas é preciso ter em conta que esta infeção pode ser assintomática, pelo que só um exame serológico – para detetar os anticorpos que o nosso sistema imunológico gera quando combate esta infeção – pode comprovar se a temos, ou não. Contudo, e tal como informa o website da rede de hospitais e clínicas CUF, “a sua prevalência nos países industrializados tem vindo a diminuir nos últimos 30 anos, com uma incidência nos indivíduos entre os 15 e os 45 anos de 10% a 50%”.

Portugal? A crer numa investigação publicada em 2016 pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (o INSA), nos anos de 1979 e 1980 cerca de 47% da população portuguesa estaria infetada com Toxoplasma gondii, com a percentagem a descer para 36% nos anos de 2002 e 2003, sendo que em 2013 a estimativa cifrou-se nos 22%. Este último valor não foge muito ao registado em outros países mediterrânicos, como Espanha, Itália e Grécia. Todos estes números tiveram como base uma amostra populacional e os seus resultados serológicos.

Não existe uma vacina capaz de prevenir a toxoplasmose em humanos e animais, daí que a prevenção seja indicada como a principal ferramenta para evitar que se espalhe pela população, nomeadamente junto de dois grupos de risco. Quais são eles? Este estudo de 2016, assim como o boletim epidemiológico publicado em 2015 pelo INSA, “reforçam” e “demonstram” a “importância da vigilância ativa e sistemática desta infeção, em particular na mulher grávida e nos indivíduos imunocomprometidos, por serem grupos populacionais onde esta parasitose é responsável por taxas de morbilidade e letalidade elevadas”.

Lobos infetados perdem o medo e tendem a chegar à liderança, mas também podem morrer mais depressa por arriscar em demasia

Viremos a atenção para uma investigação bem mais recente, cujas conclusões fazem-nos olhar para o Toxoplasma gondii de uma outra forma: lobos infetados por este parasita podem revelar padrões de comportamento em que arriscam muito mais que o normal, algo que lhes pode ser vantajoso, mas que também pode levar a uma morte precoce. Igualmente curioso é que o comportamento de um só animal infetado, nomeadamente quando se trata do líder, pode levar a todo um comportamento de mimetismo da alcateia que lidera, mesmo que os restantes elementos não estejam infetados. Foi precisamente isto que se verificou nos lobos-cinzentos que vivem no Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos da América.

Esta não é a história do Capuchinho Vermelho. Na imagem, lobos-cinzentos do Parque Nacional de Yellowstone, durante o Inverno. Créditos: Jeremy Weber / Flickr

“Um lobo que tenha [testado] positivo para o Toxoplasma têm uma probabilidade onze vezes maior de se dispersar do que um lobo que esteja negativo”, começa por explicar à CNN a bióloga Kira Cassidy, investigadora do programa Yellowstone Wolf Project – que monitoriza a reintrodução dos lobos cinzentos no Parque de Yellowstone – e também coautora do estudo publicado em novembro do ano passado na «Communications Biology», uma publicação científica ligada ao grupo «Nature».

Contudo, adianta a cientista, o maior impacto verificou-se na capacidade de chegar à liderança: “um lobo que estivesse positivo tinha uma probabilidade 46 vezes maior de se tornar no líder da alcateia do que um lobo que fosse negativo”.

A grande suspeita é que, do ponto de vista da sobrevivência destes animais, o Toxoplasma gondii pode estar a conduzir a padrões de comportamento em que o risco de mortalidade é maior, tal como sucede com outros animais infetados por este parasita. Connor Meyer, outra das coautoras do estudo, resumiu para a CNN a questão: “assumimos que possa existir algum tipo de ligação entre a ousadia causada pelo Toxoplasma e o estar mais disposto a deixar a área em que se vive, indo para o território de outro lobo e possivelmente ser morto”.

Como chegaram os investigadores a estas impressionantes conclusões? Antes de mais, há que salientar que os lobos-cinzentos foram reintroduzidos no Parque de Yellowstone em 1995, o que levou a que tivessem sido colocadas câmaras ao longo dos pontos que percorrem e seja feita uma monotorização aérea a esta espécie, além de que um quarto dos lobos aí presentes tem uma coleira de localização e é sujeito a testes serológicos. Toda esta parafernália, destinada a estudar os seus comportamentos à medida que se reinstalam no parque, assim como os dados recolhidos ao longo de 25 anos, foi imprescindível para a análise que se fez a esta população animal.

Um tesouro a céu aberto. O Parque Nacional de Yellowstone tem cerca de 100 quilómetros de norte a sul, e 90 quilómetros de este a oeste. Desde 1978 que é considerado pela UNESCO como Património Mundial. Créditos: Steve Voght / Flickr

O que se verificou ao longo do último quarto de século, de acordo com o estudo publicado, é que quanto mais os territórios dos lobos-cinzentos do Yellowstone se embrenham pela área povoada pelos pumas, maior a probabilidade de estarem infetados com o parasita.

“Os lobos cinzentos e os pumas são competidores que evoluíram simultaneamente na América do Norte. Estes dois carnívoros geralmente caçam as mesmas espécies, todavia, o conflito interespecífico é mitigado através do uso particionado do tempo e do espaço, bem como pela evitação ativa um do outro”, especifica o artigo científico.

No entanto, e de acordo com os autores do estudo, o que se verifica no Yellowstone, e tendo em conta o “forte impacto de sobreposição” do território dos pumas com as áreas onde há mais lobos-cinzentos infetados, é que estes últimos “provavelmente estão a contrair o parasita através do contacto direto com pumas infetados ou com os seus oocistos fecais” – explicando de forma mais rudimentar, através do contacto com os ovos do parasita que se encontram nas fezes dos felídeos.

"Que grande gato". Um puma («Puma concolor», em latim) pode medir entre 150 a 275 centímetros, da ponta do nariz ao extremo da cauda. Os machos podem chegar a pesar cem quilogramas. Créditos: Yellowstone National Park / Flickr

Os cientistas descartaram a hipótese de a infeção ocorrer por via da ingestão, tanto pelos pumas como pelos lobos, de uma espécie intermédia que sirva de hóspede ao parasita.

Toxoplasmose: uma história de testosterona a mais, maior agressividade e de influência desproporcional sobre os outros. Isto traz alguma vantagem evolutiva?

“Este estudo é o primeiro a examinar a relação entre a infeção por Toxoplasma gondii e o comportamento dos lobos e as suas tomadas de decisão, tendo encontrado uma ligação entre infeção parasitária e ecologia do lobo”, destaca o artigo onde a investigação e as conclusões surgem detalhadas.

“A dispersão é uma função importante da dinâmica populacional do lobo, mas representa uma decisão arriscada, pois aqueles que se dispersam sofrem taxas de mortalidade mais altas. Não obstante, se um indivíduo sobrevive ao processo de dispersão, por norma encontra maiores oportunidades de reprodução. Uma vez que os lobos seropositivos são mais propensos a dispersarem-se, isto representa um potencial para os lobos com Toxoplasma gondii preencherem lugares em territórios desocupados ou para tentarem estabelecer populações em novas áreas.”

Gregário, solitário e um sobrevivente. Eis o lobo-cinzento (o «Canis lupus», em latim), animal que, segundo os registo fósseis existentes, surgiu na Europa há 800 mil anos, tendo sobrevivido aos períodos glaciais que cobriram com espessas camadas de gelo o hemisfério norte. Créditos: Yellowstone National Park / Flickr

Além do mais, e tal como já antes foi referido, os lobos-cinzentos infetados têm o dobro da probabilidade de se tornarem nos líderes da alcateia. A explicação esconde-se na bioquímica dos seus organismos. “Ter o parasita Toxoplasma gondii pode aumentar os níveis de testosterona, conduzindo a uma maior agressividade e a uma seleção sexual preferencial [das lobas com quem vão acasalar].”

Mais. “Se os lobos seropositivos são mais agressivos durante as interações no seio das alcateias, eles podem mais facilmente tornar-se nos líderes da alcateia.” Em síntese: “o aumento da agressividade e dominância, combinados com uma possível seleção sexual preferencial, pode explicar o mecanismo entre toxoplasmose e liderança” nos lobos-cinzentos do Parque de Yellowstone.

Eis que chegamos à parte em que um só lobo infetado pode conseguir liderar e dominar todo um grupo – mesmo que a maioria seja composta por animais seronegativos –, levando a que mimetizem os seus comportamentos arriscados. A longo prazo estes comportamentos podem revelar-se uma vantagem adaptativa, mas também conduzir a mais mortes prematuras e colocar em perigo a reprodução de toda uma população, isto porque “devido à estrutura de vida em grupo das alcateias de lobos cinzentos, os líderes têm uma influência desproporcional sobre os seus companheiros e nas decisões do grupo”.

Possíveis consequências? Talvez mais importante seja o facto de, através da aprendizagem social, os lobos-cinzentos prestarem mais atenção ao que o líder faz e tentarem imitá-lo. Isso significa que toda uma alcateia pode acabar por adotar uma cultura onde é normal aceitar riscos, mesmo quando apenas alguns dos seus indivíduos-chave estão infetados. Ao mesmo tempo, se os líderes decidirem seguir o odor de felídeos “isto pode aumentar a probabilidade de lobos não infetados encontrarem pumas infetados ou os seus oocistos fecais”. Segundo os investigadores, “ambos os caminhos podem aumentar as infeções por Toxoplasma gondii nos lobos, por meio de aumentos na sobreposição espacial ou até de interações diretas com os pumas”.

À primeira vista, estão assim criadas as condições para o que parece ser um “ciclo de realimentação”: os lobos ficam infetados; devido ao parasita estes acabam por arriscar mais, levando a um maior número de indivíduos com toxoplasmose; em consequência aumentam os comportamentos de maior risco da matilha; e por aí adiante, sempre em crescendo. Mas, será mesmo assim?

"Cuidado com a cornadura". O uapiti, uma espécie de veado de grande porte, é a principal presa e fonte de alimento do lobo-cinzento. Todavia, a poderosa galhada (as hastes) do «Cervus canadensis» (nome em latim) podem provocar feridas mortais durante a caça. Também é preciso ter em conta que um macho pode chegar a pesar perto de meia-tonelada. Créditos: Yellowstone National Park / Flickr

Tal como ressalva a investigação realizada a estes carnívoros do Yellowstone, “é quase certo que existam limites evolucionários para moderar este ciclo de realimentação”. Para começar, a toxoplasmose aguda durante a gravidez “pode causar complicações no desenvolvimento dos embriões e dos fetos”, assim como a morte do feto ou do animal recém-nascido. Logo aqui, estamos perante uma situação que “diminuiria severamente o sucesso reprodutivo” dos lobos “e seria evolutivamente desvantajoso para os indivíduos infetados”, concluem.

Outro limite prende-se com a natureza (a consequência) intrínseca de se privilegiar comportamentos de riscos em doses contínuas ou cada vez maiores: a probabilidade de algo correr mal cresce proporcionalmente.

“É raro que um lobo morra de uma causa que comporte pouco ou nenhum risco”, explicam os autores da investigação. Por exemplo, as três maiores causas de morte de lobos no Parque Nacional de Yellowstone devem-se a lutas entre elementos da mesma espécie, aos seres humanos – desde a caça ao atropelamento por veículos, quando os lobos atravessam uma estrada – e a ferimentos que sofrem quando caçam presas de maior porte. “Se os lobos infetados (ou aqueles que aprenderam através de líderes infetados) tomarem grandes riscos, é provável que a sua sobrevivência seja menor do que aqueles que evitam riscos.”

"Quem se mete por atalhos, mete-se em trabalhos". Um lobo-cinzento caminha ao longo de uma estrada no Parque Nacional de Yellowstone. Um perigo, pois os atropelamentos são uma das três maiores causas de morte destes carnívoros no parque. Créditos: Yellowstone National Park / Flickr

Dito de outra forma, o “ciclo de realimentação” de que antes se falou é apenas uma hipótese que, a existir, dependerá do equilíbrio entre dois tipos de risco a que estão sujeitos os lobos infetados. Por um lado, temos os riscos que promovem uma vantagem evolucionária (nomeadamente a maior probabilidade de chegar à liderança da matilha e de se ter um maior sucesso reprodutivo), por outro lado, há que contar com os riscos de uma morte prematura. Todo um cenário que precisa de ser mais bem estudado e compreendido em futuras investigações.

Humanos infetados com toxoplasmose podem desenvolver estes mesmos comportamentos?

Que fique desde já esclarecido, para evitar confusões. Até ao momento, e tal como enuncia o estudo publicado na «Communications Biology», só se encontraram “ligações” entre o Toxoplasma gondii e um aumento de comportamentos de risco em quatro animais: roedores, chimpanzés, hienas e, com esta nova investigação, nos lobos-cinzentos. Ponto final.

Sim, surgiram alguns estudos, acompanhados de alguma atenção mediática em seu redor, a sugerir que a toxoplasmose também pode afetar o comportamento dos seres humanos. Que tipo de comportamentos? Em 2020, foi publicado um artigo no «Journal Français d'Ophtalmologie» que tentou fazer uma espécie de revisão da literatura científica sobre esta questão. Segundo o autor, há investigações que associam a toxoplasmose à esquizofrenia, à tentativa de suicídio e à chamada “raiva da estrada” (o comportamento agressivo que muitos condutores revelam). Menção ainda para um estudo no qual se afiança que a prevalência da infeção está ligada, de forma “consistente e positiva”, ao empreendedorismo – pois os infetados têm menos medo de falhar e arriscam mais do que os outros.

O problema é que nenhum destes estudos consegue apresentar evidências, minimamente robustas, capazes de mudar a opinião da maior parte dos especialistas em doenças infeciosas e em parasitologia: e essa opinião é a de que uma vez infetado com o Toxoplasma gondii nenhuma dessas mudanças de comportamento aparenta surgir em humanos. Além da ausência de evidências convincentes, os referidos estudos não são capazes de explicar que mecanismos podem entrar em ação, despoletados pelo parasita, para colocar em marcha essas alterações comportamentais. Em suma, só pesquisas mais rigorosas, profundas e longitudinais (que analisem amostras populacionais por um longo período) poderão vir a agitar ou mudar o consenso que por agora existe.