A região de Amhara, no Norte da Etiópia, enfrenta uma grave crise humanitária, com acesso limitado a alimentos, água potável e cuidados de saúde. O conflito em curso agravou a situação, tornando difícil o acesso a tratamentos para doenças como envenenamento por mordedura de cobra e leishmaniose visceral. A Médicos Sem Fronteiras (MSF) é a única entidade a prestar apoio nesta área, mas enfrenta desafios devido à insegurança na região.

“Vim há cinco anos. A vida aqui é só sofrimento”, confessa Mohamed Tefera, que está a viver no campo de Mekan Eyesus, na região de Amhara da Etiópia. “Para nós, pessoas deslocadas, o maior desafio é a fome. Se uma pessoa não come ou bebe, a sobrevivência torna-se impossível."

Em Amhara, no Norte da Etiópia, o acesso a qualquer tipo de bem essencial é extremamente limitado, quer sejam alimentos, água potável ou cuidados de saúde. As comunidades que aqui vivem enfrentam gravíssimos desafios, exacerbados por um conflito que tem causado uma crise humanitária em larga escala. Pensar no futuro com esperança torna-se impossível, quando os abrigos são insalubres e as condições de vida insuportáveis.

Metasebia Teshome

“Temos muito a dizer, mas falar é inútil quando não muda nada”, avança Mohamed. “Quando adoecemos, há clínicas e hospitais perto. Mas se nos disserem para comprar analgésicos ou medicamentos, muitos deles custam 2 a 3 mil birr (entre 12 a 18 euros) e quase ninguém consegue pagar isso. Chegamos a casa de mãos a abanar."

O acesso a cuidados de saúde adequados é um problema bem presente no quotidiano das pessoas que vivem no Noroeste de Amhara, em áreas como Abdurafi, onde, muitas vezes, chegar a um hospital implica caminhar quilómetros e quilómetros de distância por caminhos perigosos.

Dawit Hailu, um agricultor com 30 anos, recorda as dificuldades que teve em aceder a cuidados médicos.

“Conhecia os riscos do envenenamento por mordedura de cobra e sabia que existia uma clínica da MSF em Abdurafi, mas obter transporte é incrivelmente difícil por causa da insegurança na minha área. Não tive outra escolha senão ser carregado pelos meus amigos durante 11 quilómetros."

Dawit foi mordido por uma cobra enquanto procurava lenha. “Eventualmente, o meu irmão conseguiu encontrar uma mota e conseguimos chegar à clínica da MSF mais ou menos à meia noite."

Barreiras no acesso a cuidados salva-vidas

Tanto o envenenamento por mordedura de cobra como a leishmaniose visceral (ou kala-azar) são endémicos na Etiópia e estão entre as doenças mais negligenciadas no globo. Porém, desde meados de 2023, o conflito em curso em Amhara tem fragilizado ainda mais o sistema de saúde da região, que não consegue responder a estes problemas: a insegurança generalizada significa que a circulação de pessoas é restrita e que os transportes adequados para instalações médicas são cada vez mais escassos.

A MSF está presente em Abdurafi desde 2003, providenciando cuidados médicos contra o envenenamento por mordedura de cobra e contra a leishmaniose visceral – condições que podem ser fatais se não forem tratadas de forma adequada e atempada.

Metasebia Teshome

Todos os anos, de junho a outubro, a região regista um aumento de casos durante a temporada das chuvas e o período de colheitas. Com o conflito em curso, os pacientes na instalação da MSF descrevem uma sensação generalizada de medo e insegurança, mas também lembram que existem obstáculos financeiros significativos que os impedem de aceder a cuidados de saúde quando mais necessitam.

“Os desafios com os transportes e a segurança levam muitas pessoas a ter dificuldades em chegar até aqui. Algumas dizem-nos que pagam até 5 mil birr [cerca de 31 euros] por uma boleia que devia custar 200 birr [1,25 euros]. Isto faz com que seja praticamente impossível aceder a cuidados médicos para todos aqueles que não conseguem pagar estes preços”, explica o coordenador do projeto da MSF, Moses Malual.

Com todos estes fatores agravantes combinados, o medo de não conseguir sobreviver ao envenenamento por mordedura de cobra torna-se bem real. “Eu estava mesmo muito assustado, porque, há pouco tempo, morreu uma pessoa na nossa aldeia depois de ter sida mordida. Sei que o mesmo podia ter acontecido comigo”, conta Gebrehiwot, paciente da MSF.

Engda, também paciente da organização médica e humanitária, recorda as dificuldades que enfrentou após ter sido mordida. “Senti dor, tentei descansar, porque não havia transporte disponível à noite. Não tive escolha a não ser esperar até de manhã”, lembra.

Um sistema de saúde por um fio

Semere Sisay, mecânico de 36 anos e paciente de leishmaniose visceral, não se recorda exatamente de quando começou a adoecer. Lembra-se, porém, de sentir uma febre alta e de perder cada vez mais peso. “Estou doente e não tenho ninguém à minha volta – a minha mulher e filhos tiveram de fugir para o Sudão, por causa da guerra”, conta Semere.

A MSF é a única fornecedora do medicamento de que preciso. Se não fosse por isso, tenho a certeza de que não estaria vivo hoje. Estou agora a ser tratado pela sexta vez”, explica Semere. “Vou ser acompanhado nos próximos tempos e, depois disso, espero trabalhar novamente para começar a pagar as minhas contas. Neste momento, sinto-me sem esperança, mas quando estou com a MSF ganho um pouco de motivação.”

“Não sei o que vai acontecer a seguir. O meu corpo está fraco, e eu não tenho ninguém para me ajudar. Mas continuo a sobreviver... sobreviver com esperança”, conclui Semere.

Em Amhara, as instalações de saúde enfrentam uma pressão crescente, à medida que os medicamentos essenciais vão ficando cada vez mais escassos e as cadeias de fornecimento vão sendo cortadas. Os serviços móveis de saúde, que outrora desempenhavam um papel fundamental na prestação de apoio a pacientes em áreas remotas foram reduzidos ou suspensos devido a questões de segurança.

SIC Notícias

Chegam atrasados pacientes com mordeduras de cobra e leishmaniose visceral que deveriam ter procurado cuidados dias antes”, frisa a vice-coordenadora médica da MSF, Ana Banda. “Atrasos nos cuidados levam a complicações mais graves e, em alguns casos, torna-se tarde demais para ajudar.”

“Sem uma ação urgente, as mortes evitáveis por condições tratáveis continuarão a aumentar à medida que o pico sazonal da mordedura de cobra e da leishmaniose visceral se aproxima”, alerta a vice-coordenadora médica.

A MSF é a única entidade a prestar apoio a pacientes com leishmaniose visceral e envenenamento por mordedura de cobra nesta região da Etiópia. Entre janeiro e maio de 2025, as equipas da organização trataram 61 pacientes com leishmaniose e 363 casos de mordedura de cobra no centro de Abdurafi.

Devido à insegurança na área, a MSF teve de suspender as atividades de promoção de saúde e consciencialização. Além disso, a organização foi também forçada a interromper o encaminhamento de pacientes em estado crítico para unidades de saúde mais especializadas, agravando os desafios enfrentados por aqueles que precisam de cuidados urgentes.

Apesar do trabalho da MSF na região de Amhara, continuará a existir uma necessidade crítica de reforçar o acesso a serviços de saúde, particularmente o fornecimento consistente de anti-venenos e de cuidados para a leishmaniose em instalações de saúde.

“As equipas tinham tudo o que eu precisava e, por isso, estou-lhes grato”, lembra Dawit Hailu, em gesto de conclusão. “Mas eu tenho uma sugestão: será que é possível tornar a MSF ainda mais fácil de aceder para toda a gente?”