Kungas. É este o nome que se dá a um equídeo parecido com burro que há cinco mil anos, durante a Idade do Bronze, era utilizado no Próximo e Médio Oriente (na antiga Mesopotâmia) para todos os fins: da agricultura e transporte à guerra, passando por atos cerimoniais e diplomáticos.

Naquela época e zona do globo – foi na região da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, que surgiu a mais antiga civilização de que há registo histórico e arqueológico – os cavalos ainda não tinham sido domesticados, algo que só aconteceu no final do terceiro milénio antes de Cristo (a.C.). No entanto, existem registos, sob forma de tabuinhas de argila escritas em língua cuneiforme que duraram até aos dias de hoje, sobre a hibridação que era intencionalmente feita para criar uma peculiar raça de animais equídeos, grupo do qual fazem parte os cavalos, zebras e os burros, por exemplo.

Sabe-se, igualmente a partir destes pedaços de argila, que os híbridos em causa, a que se deu o nome de kungas, eram muito estimados pelas elites e tinham um enorme valor comercial, chegando a custar seis vezes mais do que um burro doméstico normal.

A crer no que está documentando, os kungas eram fortes e entroncados, atributos que levavam os indivíduos mais ricos e poderosos a querer tê-los: existem ainda alguns indícios de que poderiam ser mais rápidos do que os restantes burros domésticos. Os textos antigos que foram encontrados vão mais longe, descrevendo, inclusive, a existência de um complexo programa de acasalamento destinado a criar kungas a partir de dois espécimes de equídeos.

Todavia, não foi encontrada qualquer informação sobre que diferentes animais eram acasalados para dar origem a estes híbridos. As teorias existentes apontavam para um cruzamento entre o burro doméstico e uma espécie desconhecida de equídeo, mas face à inexistência de provas concretas apenas se podia especular. A única certeza absoluta é que os kungas já se extinguiram.

O Estandarte de Ur é um mosaico com 4600 anos que estava na tumba de um rei sumério. Na ultima faixa (em baixo) surgem representados os míticos kungas, a puxar carros de guerra. Este artefacto pode ser visto no Museu Britânico, em Londres

Tudo mudou em meados de janeiro deste ano, quando uma equipa internacional de investigadores publicou na revista científica Science Advances os resultados de uma análise ao ADN de ossadas com 4500 anos de 44 espécimes dos míticos kungas, vestígios estes que foram escavados e encontrados na Síria em 2006. O que concluíram através deste estudo genético?

Os animais, a quem pertencem os milenares esqueletos, são fruto do acasalamento entre um burro doméstico do sexo feminino e o um macho da subespécie Equus hemionus hemippus, mais conhecido pelo nome de Burro Selvagem Sírio. Provou-se, de acordo com esta pesquisa, que os kungas são os primeiros animais híbridos criados pelos seres humanos de que há registo arqueológico. Um momento histórico.

Uma cidade da Idade do Bronze onde a opulenta elite queria ser enterrada ao lado de joias e... kungas e crianças sacrificadas

Na Planície de Jabbul, no nordeste da Síria (a leste da cidade de Alepo), os arqueólogos começaram a encontrar nas décadas de 1970 e 1980 um complexo formado por túmulos onde estavam enterradas as elites de uma antiga e florescente cidade cujo apogeu data de inícios da Idade do Bronze (entre há cinco mil e quatro mil anos). Hoje em dia, o local onde se encontram estes vestígios arqueológicos situa-se na vila de Umm el-Marra, mas julga-se – embora não esteja cabalmente provado – que no passado ele fez parte da acrópole (o centro) da antiga cidade de Tuba, mencionada em inscrições egípcias após ter sido atacada e invadida durante uma campanha militar pelo faraó Tutemósis III, que reinou sobre o Antigo Egito há cerca de 4500 anos.

Não se sabe o que levou ao posterior colapso e abandono da cidade de Tuba, já no final da Idade do Bronze, mas há pistas que apontam para períodos longos de seca que conduziram a maus anos agrícolas, o que impossibilitou manter uma população que terá chegado aos cinco mil habitantes.

As escavações feitas em Umm el-Marra nas últimas décadas provam que as elites ali enterradas eram opulentas e detinham uma grande influência. Como se chegou a esta conclusão? Os seus túmulos, além de serem monumentais para os padrões da época, continham joias em prata, ouro e lápis lazúli (uma rocha de grande valor e muito apreciada na região devido à sua cor intensa), assim como ferro proveniente de meteoritos – o método de produção do ferro ainda era desconhecido.

Mas existe um outro pormenor que denota a estatuto social que era dado às pessoas ali enterradas. O complexo, de acordo com investigadores da Universidade Johns Hopkins (EUA) e da Universidade de Amesterdão (Países Baixos) também inclui locais onde eram sacrificados e sepultados equídeos e crianças humanas, tudo parte de uma ideologia e de rituais funerários associados a uma elite.

Em 2006, uma das escavações feitas em Umm el-Marra revelou um conjunto de enigmáticas ossadas de burro: não se assemelhavam a nenhuma espécie conhecida. Não obstante, por causa do local onde estavam as ossadas e à forma cerimonial como estavam dispostos os corpos dos animais na altura do enterro, os arqueólogos colocaram em cima da mesa a hipótese de aqueles esqueletos pertencerem aos kungas mencionados nos escritos antigos em argila. Além do mais, existem sinais de que muitos destes animais terão sido sacrificados, provavelmente devido à crença de que se juntariam aos seus donos humanos na ‘vida’ após a morte.

Túmulo em Umm el-Marra com ossadas de equídeos sacrificados Glenn Schwartz / Universidade Johns Hopkins

Ou seja, “estes animais devem ter sido muito especiais”, resume a geneticista Eva-Maria Geigl, do Instituto Jacques Monod, em Paris, à revista Science. Foi precisamente Geigl, cujo nome está entre os que assinam o estudo recentemente publicado, quem recebeu mais tarde as ossadas, para as estudar e tentar identificar a que animais realmente pertenciam.

Estudar ADN antigo a partir de ossos que mais parecem feitos de giz

O problema que ela e a sua equipa enfrentava era de monta. Após milhares de anos e devido ao ambiente tórrido no deserto sírio “os ossos pareciam giz”, explica Geigl, pelo que o material genético presente nos ossos estava em péssimo estado de preservação.

Felizmente para a equipa de investigadores, a tecnologia e as ferramentas que neste momento existem permitiu-lhes recorrer a “métodos de sequenciação altamente sensíveis para analisar o ADN nuclear [o ADN que existe no núcleo das células] dos vestígios” encontrados, “ao mesmo tempo que olharam para as regiões [do ADN] das linhagens maternal e paternal do animal”, explica a Science. O passo seguinte passou por “comparar o possível ADN do kunga com os genomas de outros equídeos, incluindo cavalos modernos, burros domésticos e o extinto Burro Selvagem Sírio”.

Foi assim que se concluiu que as ossadas destes animais era fruto de uma hibridação entre um burro doméstico e o seu parente selvagem da Síria.

Outro pormenor que o estudo salienta é a capacidade técnica, detida pelas sociedades mesopotâmicas da Idade do Bronze, para capturar um animal como o Burro Selvagem Síria, sobre o qual se sabe que era bastante difícil de controlar (quanto mais amansar), e conseguir que acasale com burros domésticos. Fazê-lo em larga escala, como mencionam os textos em cuneiforme, a que se junta a cuidadosa escolha de usar um burro domesticado como mãe, revela a “sofisticação dos seus esquemas de acasalamento”: uma mãe domesticada é mais fácil de manter em cativeiro, assim como as suas crias, sendo que as crias neste caso eram kungas, diz Thierry Grange, geneticista – também do Instituto Jacques Monod – que liderou a investigação juntamente com Maria Geigl.

Relevo em pedra com cerca de 2650 anos onde surgem burros selvagens a serem caçados. A imagem foi encontrada nas ruínas de Nínive (atual Mossul, no Iraque), capital do antigo império neo-assírio Eva-Maria Geigl / IJM / CNRS-Universidade de Paris

Olhando para o quadro maior em que esta descoberta se fez, o que se pode aferir sobre os nossos antepassados? Para Geigl, encontrar estes vestígios de híbridos com 4500 anos mostra que, “muito provavelmente, os humanos estavam a cruzar burros domésticos com outros animais aparentados desde bem cedo, no Próximo Oriente”, para os usar na agricultura e na guerra.

O triste destino de um burro que sobreviveu durante 11 mil anos aos humanos

O Burro Selvagem Sírio (o Equus hemionus hemippus), que lhe aconteceu? Desapareceu por completo no final da década de 1920. Este animal, cujos primeiros vestígios conhecidos datam de há 11 mil anos – encontrados na Turquia, em Göbekli Tepe, o famoso local de escavaçao arqueológica do Neolítico – começou a ser exterminado em grande número, pelos humanos, nos séculos XVIII e XIX, de acordo com os relatos existentes.

A Primeira Guerra Mundial tornou-se no grande carrasco deste burro, pois toda a região do Próximo e Médio Oriente estava pejada de soldados otomanos (turcos), beduínos e tropas britânicas, que a bordo de veículos motorizados e equipados com armas de fogo conseguiam caçá-los mais facilmente nos locais onde ainda resistiam.

Rara fotografia de um Burro Selvagem Sírio. Esta imagem foi obtida em 1915, num jardim zoológico de Viena.

O último Burro Selvagem Sírio, acredita-se, morreu em 1927 num jardim zoológico de Viena, embora não seja totalmente claro se ainda existiam alguns sobreviventes. Contudo, é consensual que por volta desta data todos os Equus hemionus hemippus  acabaram por desaparecer do globo. Conseguiram sobreviver mais tempo que os kungas, portanto, mas não escaparam ao mesmo fim.

O que sabemos sobre os burros em Portugal e a sua linhagem?

“Em Portugal, atualmente, só existem duas raças de burros domésticos”, frisa o biólogo português Albano Beja-Pereira, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio), ligado à Universidade do Porto. São eles o Burro de Miranda, animal autóctone da região a que se dá o nome histórico de Terra de Miranda (no nordeste transmontano), e o Burro da Graciosa, que ainda sobrevive na ilha do Arquipélago dos Açores que lhe dá o nome.

“No passado existiam muitas referencias literárias ao Burro Algarvio, algumas delas anedóticas, resultantes do seu comportamento «manhoso». Mas hoje em dia nada há sobre esse animal, que deveria ser muito parecido com o Burro Andaluz que ainda existe em Espanha”, adianta Albano Beja-Pereira.

No entanto, e de acordo com este investigador português, que estuda o impacto da domesticação no genoma e na estrutura populacional das espécies (animais e vegetais) domesticadas, sabe-se que até entre há cinco mil e seis mil anos (durante o período do Neolítico) existiu em Portugal o Equus hydruntinus, uma subespécie de burro selvagem.

Quanto aos burros domésticos, a que se dá o nome científico Equus asinus, os que atualmente existem “descendem exclusivamente do burro selvagem africano, daí que sejam classificados como Equus africanus asinus”, assinala.

Um Burro de Miranda adulto, com a sua típica pelagem comprida e grossa, de cor castanha, junto a uma cria créditos: AEPGA

Para evitar confusões, façamos algumas distinções importantes:

“Todas as espécies de equídeos existentes agrupam-se num só género, o Equus”, começa por explanar Albano Beja-Pereira. “Em termos vernáculos, este género divide-se em três grupos de espécies: cavalos, burros e zebras. Os burros selvagens que sobreviveram até ao momento são o Burro Selvagem Asiático (Equus hemionus), o Quiangue [ou Burro Selvagem Tibetano] (o Equus kiang) e o Burro Selvagem Africano (Equus africanus). No passado, tal como já referi, existiu o Burro Selvagem Europeu, o dito Equus hydruntinus, mas ele extinguiu-se no Neolítico”.

E o zebro, espécie já extinta que por vezes é referida em algumas publicações nacionais como tendo sido um burro selvagem que andou pelo nosso território? Sobre esse animal, o investigador do Cibio é lapidar: “Já foi demonstrado cientificamente [através de um estudo publicado em 2013], recorrendo a ADN antigo e usando as mesmas técnicas que o estudo sobre os kungas, que o zebro era um burro doméstico e não uma espécie selvagem de burro que teria sobrevivido até à Idade Média, como alguns defendiam”.