O preocupante silêncio sobre fraudes eleitorais nos partidos

Uma democracia em que partidos políticos são protagonistas de fraudes eleitorais internas mais ou menos vastas que já nem se dão ao trabalho de disfarçar nunca pode ser uma democracia saudável.

Ao que parece, a generalidade dos partidos com representação parlamentar está disposta a reforçar as regras da transparências no exercício dos cargos públicos. É, obviamente, uma boa intenção, sobretudo se passar ao mesmo tempo pela regulamentação do lóbi, o elefante que sempre esteve dentro da sala mas toda a gente fingiu que não viu até agora.

Estou sempre disponível para mudar de opinião, mas confesso à partida o meu cepticismo sobre os reais resultados destas iniciativas. E quando falo de reais resultados não me refiro a um conjunto de leis, todas com imensos artigos a definir regras e procedimentos, no meio de umas quantas revogações de outras leis. Nisso somos muito bons e não duvido que os deputados, experientes na matéria, consigam produzir uma carrada de leis vistosas sobre o assunto, daquelas que abrilhantam qualquer edição do Diário da República.

Os resultados a que me refiro são mesmo reais, no sentido da mudança de atitudes e de práticas, do reforço da transparência e da possibilidade de escrutínio, de meios de fiscalização que sejam eficazes e, quando for caso disso, de penalizações para quem violar as regras.

A experiência que temos nestas e em muitas outras matérias é que em Portugal há muitas leis que “não pegam”. Elas existem, são conhecidas, ficam bem em qualquer manual de boas práticas de Estados democráticos de direito, muitas vezes até nos dão aquele toque nórdico de decência política e social mas depois sabemos que não são aplicadas. São letras mortas. E se é para isso, então mais vale não as fazer, porque as leis não cumpridas são uma das principais causas de degradação da autoridade e prestígio do Estado e das suas instituições.

Acresce que, por estes dias, a minha crença na boa vontade dos partidos e das suas “máquinas” em relação aos valores éticos, transparência de processos, verdade democrática e, no fundo, respeito pelos cidadãos, anda em níveis mínimos históricos. E já nem falo do “golpe” legislativo para aumentar o financiamento público dos partidos, ao mesmo tempo que se aboliam limites para o financiamento privado anónimo.

Poucas horas após as eleições directas no PSD, o Observador mostrava, com vídeo e tudo, a angariação de votos, em Ovar, para a lista de Rui Rio. Com a participação do chefe de campanha do candidato que viria a ser vencedor e com recurso a uma carrinha de uma associação subsidiada pela Junta de Freguesia – e, portanto, paga com ajuda do dinheiro dos contribuintes – encontramos aí uma série de práticas que até podem violar algumas leis.

Este fim-de-semana, a edição do Expresso começava assim uma notícia: “Um dos caciques do PSD no concelho de Lisboa que deveria apoiar Rui Rio roeu a corda a poucos dias das directas e, com isso, acabou por dar a vitória na cidade a Santana Lopes. Ismael Ferreira, pastor evangélico, deveria ter garantido cerca de duzentos votos na capital ao lado de Rio (…). Os apoiantes de Rio tinham as contas feitas e contavam com três vitórias na cidade, mas acumularam três derrotas, por terem visto fugir o sindicato de votos controlado pelo pastor Ismael. Razão apresentada: o apoio de Rui Rio à legalização da eutanásia”.

E sabe-se que no último dia do prazo foram pagas as quotas em atraso de 20 mil militantes – de um total de 70 mil eleitores internos (quase 30% dos votos…). Quem, como e por que foram pagas estas quotas, ninguém sabe. O que se sabe é que, de acordo com os ficheiros dos partido, há grandes grupos de militantes a partilhar o mesmo apartamento, muitas vezes em moradas que não existem.

Bem sei que estas trafulhices não são de hoje e que foram certamente praticadas por ambas as candidaturas nesta eleição como, aliás, o episódio do pastor Ismael demonstra. As compras de apoios, os sindicatos de voto e a utilização de meios do Estado a favor de candidaturas partidárias beneficiaram mais quem, Rio ou Santana? Não sabemos, nunca saberemos.

É assim no PSD hoje, como foi no passado. Como também acontece no PS e, certamente, noutros partidos. E isto passa-se na eleição do líder do partido mas é uma prática que é treinada cedo. Começa nas “jotas”, onde até há urnas de voto que são atiradas pela janela, e nas associações académicas que as estruturas partidárias muitas vezes tomam de assalto.

Dir-se-á que o método da eleição por congressistas também é dado a estes tráficos e compra de votos. É verdade, mas pelo menos nos congressos não se faz um simulacro de democracia directa, não se finge a transparência nem o falso respeito pela vontade e juízo individuais dos militantes. Foi este tipo de argumentos que fizeram os dois maiores partidos portugueses avançar para a eleição directa dos líderes. Sonsice e populismo a rodos, como se vê.

Que tudo isto se passe sem que haja escândalo, uma indignação, uma preocupação que seja é, só por si, tão grave como os próprios factos. Já assumimos este tipo de práticas como normais. É mesmo assim, é o padrão partidário. Ninguém está preocupado com os indícios de fraude eleitoral, que até podem configurar a prática de crime. É assumida como legítima a compra de votos. A verdade democrática da eleição é um detalhe sem importância. A separação entre entidades e meios públicos e os fins partidários é, obviamente, uma embirração sem sentido vinda de pessoas com má vontade.

Aos do partido não interessa, naturalmente, fazer ondas. Uns porque ganharam, outros porque perderam mas fizeram rigorosamente o mesmo com a agravante de terem sido incompetentes e menos eficazes. E todos sabem uns dos outros.

Os outros partidos reservam também sobre estas matérias um prudente e pragmático silêncio, com o argumento excelente que anda sempre no bolso: “não nos intrometemos na vida interna dos outros partidos”. Garantem assim que os seus telhados de vidro estão a salvo e contam com a simpática colaboração dos outros partidos quando têm alguma questão deste género para resolver, a precisar, por exemplo, de uma lei à medida. Uma mão lava sempre a outra.

Uma democracia em que uma parte importante dos seus pilares, partidos políticos, são protagonistas de fraudes eleitorais internas mais ou menos vastas que já nem se dão ao trabalho de disfarçar nunca pode ser uma democracia saudável.

Porque esta forma de estar na vida e na política não termina, obviamente, no momento em que se assumem cargos públicos, se é eleito para uma autarquia, se chega a deputado ou a membro do governo. Não há um botão “on-off” para a ética e a transparência e os caciques que arregimentam e compram votos cobram pelos seus serviços.

Em vez de se vitimizarem com “choradinhos” como fizeram com a questão do financiamento, era mais útil aos partidos olharem para as suas práticas internas e para os valores que transmitem à sociedade. É fácil criticar os partidos? Mais do que fácil, é uma obrigação fazer a denúncia destas práticas que, nalguns casos, configuram casos de polícia.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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