Nos incêndios faltou água, cloreto de sódio e humildade

Costa começou a semana sentado no alto da arrogância a dizer a uma jornalista: “minha senhora, não me faça rir”. E terminou quase a chorar, deitado num divã a explicar como é que lida com as emoções.

Constança Urbano de Sousa voltou a emocionar-se na hora da despedida e não conteve uma lágrima quando recebeu um abraço sentido de Marcelo Rebelo de Sousa. Como aqui nos recorda a TSF, já tinha chorado quando abraçou e entregou um louvor póstumo à mãe de um agente da PSP morto em serviço e voltou a emocionar-se, no Parlamento, logo depois dos fogos de Pedrógão Grande, quando considerou aquele “o momento mais difícil” da sua vida.

Apesar das muitas lágrimas vertidas, os portugueses não perdoam a Constança Urbano de Sousa o desnorte. Como muitos não perdoam a António Costa a ausência de lágrimas na segunda-feira, quando falou ao país num discurso mecanizado, institucionalizado, árido e despido de emoções para uma plateia em estado de choque e a precisar de conforto após o 17 de junho e o 15 de outubro.

Muitos, como António Gedeão, dirão que lágrimas são “só água (quase tudo) e cloreto de sódio”. Outros, como o Presidente dos Afetos, dirão que é um elemento fundamental para governar. Por isso é que António Costa terminou a semana, numa espécie de ato de contrição, sentado num divã explicar aos portugueses: “cada um de nós vive as emoções de um modo próprio […]. Lamento ter errado. Gostava muito mais que alguém tivesse dito que eu tinha abusado das minhas emoções”.

No início da semana, o país atónito sustinha a respiração ao ouvir António Costa dizer que “situações como esta vão repetir-se”. No dia seguinte, respirava de alívio quando Marcelo Rebelo de Sousa veio “dizer que reformar a pensar no médio e longo prazo não significa termos de conviver com novas tragédias até lá chegarmos”.

Durante uma semana, o país viveu um regime presidencialista e não correu mal. Marcelo mandou correr com Constança Urbano de Sousa, Costa correu. Belém pediu para se desencantar margem orçamental para a prevenção e combate aos incêndios, Costa desencantou. Pediu para se acelerar as indemnizações às vitimas, Costa acelerou. Reclamou uma reforma da floresta e do sistema de prevenção de incêndios e Costa terminou a semana a apresentar uma estratégia nacional para a Proteção Civil, com pés e cabeça.

Costa tem a seu favor dois fatores pelos quais merece crédito. Ainda antes do incêndio trágico deste ano, que matou 64 pessoas em Pedrógão Grande, Costa, já em 2016, precisamente em Pedrógão, falou da reforma das florestas, da necessidade de fazer cadastros, do ordenamento florestal, da floresta ter de “ser gerida, tratada, ordenada e certificada”, para que seja “uma fonte de riqueza e não uma ameaça” para pessoas, bens e habitações.

O primeiro-ministro apresentou há mais de um ano um pacote de reforma da floresta que culminou com a aprovação de quatro propostas para alterar o regime jurídico aplicável às ações de arborização e rearborização, para criar o Banco de Terras, alterar o Sistema de Defesa da Floresta contra Incêndios e criar um sistema de informação cadastral simplificado.

Só que foi preciso acontecer a tragédia de Pedrógão para que o Parlamento fizesse uma maratona de 15 horas para aprovar as medidas que tinham sido proposta há mais de um ano. Muitos dos deputados e deputadas que agora parecem umas carpideiras, tiveram um ano a pedir reversões e reposições de rendimentos, sem se lembrarem de que havia algo mais importante para aprovar.

Foi com uma outra maratona de 11 horas que este domingo o Conselho de Ministros Extraordinário aprovou um novo pacote de medidas muito coladas às recomendações da Comissão Técnica Independente. E aqui, Costa também merece crédito. Depois de Pedrógão, teve a humildade (que lhe faltou em outras alturas) e a inteligência de aceitar, sem reservas, a proposta do PSD de criar um comissão de especialistas para perceber o que correu mal em Pedrógão. Foi este relatório que agora lhe serviu de boia de salvação.

A reforma apresentada este domingo, que como disse Costa implica “investimentos significativos”, tem pés e cabeça e nem o mais acérrimo defensor da ortodoxia financeira levará a mal que o défice derrape umas décimas para a poder concretizar. Até Bruxelas já disse que sim. Foi assim em Itália, com os terramotos de Amatrice, em França depois dos atentados terroristas em Paris, e na Grécia, quando Lesbos teve de acolher um grande número de refugiados.

Das medidas apresentadas este domingo por António Costa, há duas, talvez as as mais baratas, que vão salvar muitas vidas no futuro. Por um lado, o Governo anunciou que, através da conversão de créditos em capital, o Estado vai ser acionista do SIRESP. É uma vergonha aquilo que se passou nos últimos meses com este sistema de comunicações (e já é muito simpatia da minha parte chamá-lo de sistema de comunicações) que tem falhado sucessivamente quando os bombeiros e autoridades mais precisam dele.

A entrada do Estado no capital do SIRESP não pode servir apenas para nomear mais uns quantos boys para a administração, mas sim para modernizá-lo. A comissão técnica independente já classificou a tecnologia Tetra usada pelo SIRESP de “obsoleta”, recomendando outros sistemas alternativos como o 3G e o 4G. O país do ‘choque tecnológico’ e da Web Summit não pode usar tecnologia 2G para salvar vidas.

E por falar em boys, a outra medida económica, mas eficaz, anunciada por António Costa é o anúncio de que a Proteção Civil passará a ter dirigentes nomeados por concurso. Um dos maiores erros deste Governo (e de outros governos que lhe antecederam) foi tratar os cargos de responsabilidade e de chefias na administração pública como se de uma agência de empregos se tratasse para colocar os amigos com cartões partidários. O presidente da Liga de Bombeiros Portugueses dizia este domingo: “mal vai um país quando é governado por emoções”. Apetece responder que mais vale ser governado por emoções do que com cartões.

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